A ALUCINAÇÃO DE STALEY FLEMING -Conto de Terror - Ambrose Bierce



A ALUCINAÇÃO DE STALEY FLEMING

Ambrose Bierce

(1842 —1914?)

Tradução de Paulo Soriano

 

Dos dois homens que conversavam, um era médico.

 

—Eu lhe pedi que viesse, doutor —disse o outro –, embora não creia que o senhor possa me ajudar. Talvez possa recomendar-me um psiquiatra. Imagino que esteja um tanto maluco.

 

—Mas você me parece muito bem - respondeu o médico.

 

—Julgue por si próprio: tenho alucinações. Todas as noites acordo e vejo, no quarto, olhando-me fixamente, um enorme cão terra-nova com uma parta dianteira branca.

 

—Você diz que acorda. Contudo, tem certeza disso? Às vezes, as alucinações residem apenas nos sonhos.

 

—Eu fico bem acordado. Às vezes, fico parado por muito tempo, contemplando o cão, e ele a mim, fixamente... Sempre deixo a luz acesa. Quando não o suporto mais, sento-me na cama... E não há nada no quarto!

 

—Hum... Qual a expressão do animal?

—Ela me parece bem sinistra. Sei, evidentemente que, salvo na arte, o rosto de um animal em repouso tem sempre a mesma expressão. Mas este não é um animal real. Como o senhor sabe, os cães terra-nova têm sempre um olhar muito doce. Qual o problema deste?

 

—Realmente, meu diagnóstico não teria valor algum: não vou tratar do cão.

 

O médico riu de sua própria brincadeira, mas não deixou de observar o paciente pelo canto do olho. Então disse:

 

—Fleming, a descrição que você deu ao animal corresponde ao cão do falecido Atwell Barton.

 

Fleming quase se ergueu da cadeira, mas voltou a sentar-se, esforçando-se por mostrar-se indiferente.

 

—Lembro-me de Barton —disse. —Acredito que era... Disseram que... Não houve algo de suspeito em sua morte?

 

Olhando agora diretamente nos olhos de seu paciente, o médico respondeu:

 

—Há três anos, o corpo de Atwel Barton, seu velho inimigo, foi encontrado num bosque, próximo de onde ele morava, e, também, de sua casa. Foi esfaqueado até a morte. Não houve prisões, já que nenhuma pista foi encontrada. Alguns tinham as suas “teorias”. Eu tenho a minha. E você?

 

—Eu? Pela sua bendita alma, o que eu poderia saber a respeito!? Você deve se lembrar que viajei à Europa quase que imediatamente após o incidente, retornando depois de um tempo considerável. Não é crível que, nas escassas semanas que decorreram desde o meu regresso, eu tenha elaborado alguma “teoria”. Na verdade, eu sequer havia pensado no assunto. Mas, e quanto ao cão?

 

—Foi quem encontrou o corpo. Morreu de fome sobre o túmulo do dono.

 

Desconhecemos a inexorável lei subjacente às coincidências. Se Staley Fleming a conhecesse, não teria, num salto, se erguido, quando o vento noturno propagou, a partir das janelas abertas, o longo e lastimoso uivo de um cão distante. Várias vezes Fleming atravessou a sala, sob o fixo olhar do médico, até que, detendo-se abruptamente, quase lhe gritou:

 

—O que isto tem a ver com o meu problema, doutor Halderman? O senhor está esquecendo o motivo pelo qual eu o chamei.

 

O médico se levantou, pôs a mão sobre o braço do paciente e lhe disse, com amabilidade:

 

—Perdoe-me. Assim, de improviso, não posso diagnosticar o seu transtorno. Talvez amanhã. Faça-me o favor de deitar-se, deixando a porta aberta. Passarei a noite aqui, com os seus livros. Poderá me chamar sem precisar levantar-se da cama?

 

—Sim, tenho uma campainha elétrica.

 

—Certo. Se algo incomodá-lo, pressione o botão, mas sem se levantar. Boa noite.

 

Confortavelmente sentado numa poltrona, o médico olhava os carvões incandescentes da lareira, meditando longa e profundamente. Mas o fazia, ao menos na aparência, sem algum propósito, porquanto, com frequência, erguia-se para abrir a porta que dava para a escada. Ali, escutava atentamente. Depois, voltava a sentar-se. Terminou por adormecer e, ao acordar, já passava da meia-noite. Atiçou o fogo, pegou um livro da mesa ao seu lado e leu o título. Eram as “Meditações de Denneker”. Abriu o livro ao acaso e começou a ler:

 

“Assim como foi ordenado por Deus que toda carne tenha espírito e adote, portanto, as faculdades espirituais, também o espírito conserva os poderes da carne, ainda que abandone o corpo e viva como algo independente: isto é confirmado por vários casos de violências perpetradas por fantasmas e espíritos dos mortos. Há quem diga esta propriedade não é exclusiva do ser humano, porque também os animais têm a mesma indução maligna, e...”

 

A leitura foi interrompida por uma perturbação na casa, como se um objeto pesado houvesse tombado. O leitor deixou cair o livro e saiu correndo pela sala. Subiu celeremente as escadas que levavam ao quarto de Fleming. Tentou abrir a porta, mas esta, em contrariedade às suas instruções, estava fechada. Empurrou com o ombro, imprimindo uma força tal que a porta cedeu. No chão, junto à cama desarrumada, vestido com seu pijama, jazia Fleming, agonizante.

 

O médico ergueu do chão a cabeça do moribundo e observou-lhe um ferimento na garganta.

 

—Eu devia ter pensado nisso —disse ele, acreditando que Fleming intentara o suicídio.

 

Quando o homem morreu, um exame revelou uma inconfundível marca de dentes de animal, profundamente mergulhada na veia jugular.

 

Mas nenhum animal havia ali.

 



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