A CAOLHA - Conto Clássico Cruel - Júlia Lopes de Almeida
A CAOLHA
Júlia
Lopes de Almeida
(1862
– 1934)
A
caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto arqueado,
braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos pulsos; mãos
grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho; unhas grossas,
chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o branco sujo e o
louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser áspero e espinhento;
boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço longo, engelhado, como o
pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O
seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela
sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito
horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada,
deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
Era
essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa destilação
incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente.
Morava
numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa oficina de alfaiate;
ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo o serviço da casa
inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia os pobres jantares
feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção que ia crescendo,
ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a repugnância por essa
comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho, declarou à mãe que, por
conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela
fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele
filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que
lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe apagasse com um
beijo todas as amarguras da existência? Um beijo dele era melhor que um dia de
sol, era a suprema carícia para o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos
foram escasseando também, com o crescimento do Antonico! Em criança ele
apertava-a nos bracinhos e enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a
beijá-la só na face direita, aquela onde não havia vestígios de doença; agora,
limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela
compreendia tudo e calava-se.
O
filho não sofria menos.
Quando
em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo os
colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo ― o filho da caolha.
Aquilo
exasperava-o; respondia sempre.
Os
outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os mestres
ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los ― mas a alcunha pegou,
já não era só na escola que o chamavam assim.
Na
rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o filho da
caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram
as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas pelos
irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As
quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o lunch,
aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes, afastando os
pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo uma mancheia de
araçás, com piedade e simpatia:
―
Taí, isso é pra o filho da caolha!
O
Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de tais palavras;
tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar, cantando em coro, num
estribilho já combinado:
―
Filho da caolha, filho da caolha!
O
Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito vermelho,
contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio os
companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico e faziam
caretas de náuseas!
A
caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos
onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com os
condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para uma
oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam depressa a
chamá-lo ― o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além
de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e desmaios.
Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas agrupavam-se à
porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o caixeiro embora,
tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz expostos à porta
nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais sobre o pobre
Antonico!
Depois
disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo, deitado pelos cantos,
dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante!
Evitava
sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta poupava-o: tinha medo
de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos braços, e por isso nem
sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais forte, pediu e
obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate.
A
infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que não
deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico
encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos companheiros;
quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso mal oculto nos
lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse sorriso, se foi
desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram
alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até aí, numa ou outra
pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre uma resistência que o
desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes mágoas. Agora, porém, a coisa
era diversa: ele amava! amava como um louco a linda moreninha da esquina
fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos negros como veludo e boca fresca
como um botão de rosa. O Antonico voltou a ser assíduo em casa e expandia-se
mais carinhosamente com a mãe; um dia, em que viu os olhos da morena fixarem os
seus, entrou como um louco no quarto da caolha e beijou-a mesmo na face
esquerda, num transbordamento de esquecida ternura!
Aquele
beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a encontrar o seu
querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite, ao adormecer, dizia
consigo:
―
Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto,
o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor à vizinha. No dia
seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar.
Durante
muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
Ao
princípio pensava:
―
"É o pudor". Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim
recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua
mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações confusas,
mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito conhecido por
filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia sujeitar a ser
alcunhada em breve de ― nora da caolha, ou coisa semelhante!
O
Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha tivesse
pensamentos tão práticos!
Depois
o seu rancor voltou-se para a mãe.
Ela
era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a sua
infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante sonho
de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de mulher tão
feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia humilhado
continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe, vindo de vez em
quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava
assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo, consagraria à sua amada
a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento e amor...
Passou
um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto e a decisão
de o expor à mãe.
A
velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar
minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas
palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha
levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
―
Limpe a cara, mãe...
Ela
sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
―
Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
―
Foi uma doença, ― respondeu sufocadamente a mãe ― é melhor não lembrar isso!
―
E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê? ― Porque não
vale a pena; nada se remedeia...
―
Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu vá dormir na
vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui e eu virei
todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma coisa... É
por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele,
magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos, delgado e amarelo
como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde o trabalho começa
cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras toda a sua energia,
e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e medroso.
A
caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível, respondeu com
doloroso desdém:
―
Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que eu também já
sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O
rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a mãe, até
então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente, obedecendo à ordem
que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela
acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só, encostou-se
cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O
Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na
manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve coragem;
via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados pelo ódio,
narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o fundo do
coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho ― e sujo de pus; via a sua atitude
altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe com energia a
porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o grande fôlego que
ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que lhe atirara no
rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar com o perigo de
outra semelhante.
Providencialmente,
lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha, mas que, entretanto, raramente a
procurava.
Foi
pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que houvera.
A
madrinha escutou-o comovida; depois disse:
―
Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse a verdade
inteira; ela não quis, aí está!
―
Que verdade, madrinha? ― Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá!
Encontraram
a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho ― queria mandar-lhe a roupa
limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que dissera e tinha passado
toda a noite à janela, esperando que o Antonico voltasse ou passasse apenas...
Via o porvir negro e vazio e já se queixava de si! Quando a amiga e o filho
entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria amarraram-lhe toda a ação.
A
madrinha do Antonico começou logo:
―
O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve aqui
ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já deverias
ter-lhe dito!
―
Cala-te! ― murmurou com voz apagada a caolha.
―
Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha! rapaz, quem cegou
tua mãe foste tu!
O
afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
―
Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao almoço, levantaste
na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que eu pudesse evitar a
catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda tenho no ouvido o grito
de dor que ela deu!
O
Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe acercou-se
rapidamente dele, murmurando trêmula:
―
Pobre filho! vês? era por isto que eu não queria dizer nada!
Conto publicado na “Revista da Semana”, edição de 30 de dezembro de 1922.
Conto publicado na “Revista da Semana”, edição de 30 de dezembro de 1922.
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