A DAMA DA ROSA BRANCA - Conto Clássico de Terror - Anônimo do séc. XX
A DAMA DA ROSA BRANCA
Anônimo
do séc. XX
Embora pareça conto, não é, mesmo que o
protagonista do caso, quando o narrava, o fizesse cheio de uma funda emoção,
recordando a indubitável realidade do acontecimento. Deu-se o fato com um jovem
diplomata alemão, que vivia em Madri durante os turbulentos dias em que o conde
de São Luiz concitava sobre sua pessoa as iras liberais e preparava um grande movimento
revolucionário, que se esperava a todo momento.
Nessa sociedade, de uma aristocracia e
distinção sem par, sentia-se encantado o diplomata alemão, porquanto bem
recebido e tratado em toda parte. Era amigo das mais esplêndidas belezas; da
duquesa Angela de Medinaceli, a morena andaluza; de Maria Bushentai a
espirituosa, e de Carolina Coronacio, a insigne poetisa. Osuna e Salamanca tinham
para ele um lugar em sua mesa, em sua carruagem e em seu palco.
Uma noite, havia baile de máscaras no
Real. O diplomata, a quem a princípio havia divertido o espetáculo do salão
cheio de várias elegantes e luxuosas fantasias, acabou por sentir-se entediado
e resolveu refugiar-se no palco de Salamanca, onde se sentou junto de uma
porta. Estava sozinho e não tardou em ver que a porta se abria e uma gentil
mascarada levantava a cortina. Era uma linda figura vestida de preto. Preta era
também a máscara. Só as luvas eram brancas. Branca era também uma rosa que tinha
em uma das mãos.
Sem que lhe dissesse palavra, a jovem fez-lhe
um gesto imperioso, para que a acompanhasse. Dependurou-se ao braço do
cavalheiro, que o acolheu, e desceram ambos ao salão. A mascarada era muito bela,
porém muda. Lindas e pequenas eram suas mãos, assim como seus pés. Seu porte,
gracioso e esbeltíssimo. Seus olhos, muito negros, brilhavam debaixo da máscara.
Com um orgulho galante, de sobejo justificado,
sentia-se satisfeito o cavalheiro por levar pelo braço tão gentil moça, que
deveria pertencer, sem dúvida alguma, a uma das principais famílias da corte,
pela graça aristocrática de seu porte e pela extraordinária riqueza de seu
vestuário. Mas, intrigava-o o mistério da bela desconhecida, que não se lhe
acercara com atitude carnavalesca, nem dirigia a quem quer que fosse pilhérias
nem palavra alguma. Apenas de quando em quando cravava em seu companheiro o
fulgor penetrante de seus formosos olhos negros.
Nenhuma aventura poderia agradar mais
ao cavalheiro do que aquela, que tão pouco se assemelhava às que podia esperar
no baile. Aguçada, sua curiosidade dizia-lhe de quando em vez quem acreditava
que ela pudesse ser, repassando em sua memória os nomes de todas as formosuras aristocratas,
da idade e do talhe de sua misteriosa companheira. Porém, a quantos títulos ele
citava de duquesitas e marquesitas que lhe acudiam à lembrança, ia ela
respondendo que não. E não respondia com a voz, e sim, apenas com um movimento
de cabeça, que começava a desconcertar o afortunado rapaz.
Por fim, a mascarada falou:
—Serias capaz de vir comigo aonde eu te
quisesse levar?
Finalmente, ouvira a voz da elegante desconhecida
e, por felicidade, ela se lhe dirigia com tal convite, que o fazia ditoso.
— Como poderia eu deixar de acompanhar-te?
— respondeu. — Irei contigo aonde quiseres.
— Seriamente?
— Seriamente!
Saíram para o vestíbulo, e a mascarada arrastou
o companheiro para a rua.
Não temos carro — advertiu-lhe ele.
— A mim pouco importa —replicou ela. — Amanhã, sim, eu terei uma
das mais belas carruagens de Madri.
O cavalheiro saíra como estava, porque
a mascarada não o deixara chegar ao vestiário, e ela também não levava abrigo
algum. E como ele lhe observasse o frio que fazia, ela lhe respondeu:
— Estou mais fria do que a noite.
O cavalheiro não quis prosseguir e intimou
a mascarada, já demasiado misteriosa, a declinar de uma vez seu some e
qualidade. Ela, todavia, não lhe atendeu às palavras e continuou arrastando-o a
seu lado.
Passaram a rua do Areal e desembocaram na
Puerta de Sol. Alguns mascarados dirigiam-se a outros bailes de categoria
inferior e rodearam-nos cantando e saltando. Diziam-lhes:
— Divirtam-se muito!
— Não é preciso tanta pressa, que para
onde vão dá no mesmo.
— Deixemo-los, porque vão pensando na
vida.
— Mas que par triste!
— Ninguém diria que vão de troça!
E entre vaias ao par misterioso e gritos
e piruetas, o bando de mascarados alvoroçados torceu para as bandas do
Principal, enquanto o intrigado galã e a dama negra da rosa branca seguiam para
onde só ela sabia.
Enveredaram pela rua de Alcalá. À porta
do teatro do Museu, que ocupava o antigo convento das Vallecas, deteve-os outro
bando de gente que entrava para o baile. Um demônio convidava-o a passar.
— Olá! Aonde vais por aí abaixo? Já não
são horas de ir ao Prado.
Outros mascarados fizeram-no calar-se. A
distinção da negra mascarada, e o porte de seu amigo inspirava-lhes certo
respeito. Uma beata gritou-lhes:
— Andai, andai, que ides ficar melhor do
que nós!
E entrou no teatro.
O par misterioso prosseguia. Ao passar por
diante das Calatravas, ouviu-se o toque do sino conventual que chamava para as
orações religiosas.
Aquelas badaladas tinham algo de lúgubre,
soando no ambiente da noite alta, e o cavalheiro sentiu que o braço da
desconhecida apertava convulsivamente o seu, ao ouvir a voz do sino.
Era por uma dessas claras, frias e
diáfanas noites de fevereiro madrileno. O diplomata inquietava-se cada vez
mais, observando o caminho que levavam.
Poucas casas havia para aquele lado,
embora fossem todas senhoriais, e era natural que se pudesse pensar em que a
mascarada tivesse residência em alguma delas. Chegavam já diante da casa dos
Heros e da hospedaria de S. Bruno. Não era crível que para ali o conduzisse a
dama misteriosa. Em seguida, a casa dos Alfinetes, que Rieza adquirira pouco
antes, e depois a casa de Santamarca, a de Alcanices e o Prado. O muro da Boa
Vista limitava o extremo do caminho que seguiam, e mais além o Posito de um
lado e a fronde do Retiro do outro. Ao centro, no alto, a Porta de Alcalá
fechava o quadro, com a infinita elegância de suas linhas.
Terminava Madri. Para onde iriam? Onde
ficaria a casa da dama, tão misteriosa como a própria mascarada? Internar-se-iam
em demanda de algum palácio do bairro Barquillo?
— Estamos longe? — atreveu-se ele a
perguntar, finalmente.
E ela respondeu calmamente:
— Não podemos estar mais perto.
Encontravam-se, naquele instante, à porta
de São José, e ali a dama negra da rosa branca deteve-se.
— Vens? — perguntou-lhe, indicando-lhe a igreja.
Ele estremeceu diante daquilo que julgava
uma indizível extravagância, e observou a inoportunidade da ocasião. À luz da
lua, desenhava-se, estranhamente, sobre a pedra da facha da, a silhueta da
negra mascarada, com seu vestido riquíssimo, coberto de vidrilhos que brilhavam
com um raro fulgor de pontos fosforescentes.
O cavalheiro, porém, embora aturdido, não
podia demonstrar temores indignos de sua pessoa. Novamente a dama interrogou:
— Vens?
E ele respondeu:
— Vamos. Parece-me, porém, esquisito
querer entrar agora na igreja.
A porta principal estava cerrada.
Desceram a escadaria, com certo
contentamento da parte dela; ela, porém, tomando-lhe outra vez o braço e
disposta a segurá-lo, fê-lo dobrar a esquina da rua das Torres e chegar à porta
das dependências do templo que aí vão dar.
Empurraram-na. O postigo cedeu.
Atravessaram o pátio e a perturbação do
cavalheiro aumentava, vendo como a dama negra o guiava através de um saguão e
de pequenas portas, até o recinto sagrado.
A igreja ostentava grandes panos negros
dependurados, e na parte central erguia-se um catafalco iluminado pela luz tíbia
e vacilante de uns círios.
— Esta manhã — disse a jovem misteriosa,
indicando o catafalco —, trouxeram-me e colocaram-me aqui. Amanhã tornarão outra vez, e será preciso que
me encontrem onde me deixaram.
E fez ao galã estupefato uma larga
reverência por sua companhia, dizendo enquanto se inclinava graciosamente:
— Cavalheiro...
Tirou a máscara, e deixou ver, ou antes
adivinhar, um lindo rosto pálido, de uma palidez morta! Os lábios assemelhavam-se
a uma gota de sangue que começava a secar. Então, ela ofereceu-lhe a rosa
branca que levava na mão. Moveram-se os largos panos que rodeavam o alto
catafalco; houve um momento em que a luz escassa dos círios pareceu
extinguir-se por completo, e a dama encantadora, a morta gentil, desapareceu
aos olhos do diplomata.
Febricitante e atônito, temendo ter-se encontrado
com uma louca, apressou-se o jovem em procurar a saída da igreja. Andou ao
acaso durante muitas horas, preocupado com a sua extraordinária aventura, e, ao
amanhecer, dirigiu-se de novo ao templo. Estavam tocando para a primeira missa,
e entrou.
Lá estava o catafalco, e sobre ele, sem
a menor dúvida, a inquietadora e linda misteriosa que lhe aparecera no palácio
de Salamanca. Com a claridade do dia pode recolhê-la perfeitamente. Era uma
linda condessinha com a qual havia dançado algumas vezes em casas nobres.
Estava morta, com certeza, e à sua cabeceira, havia uma coroa de rosas brancas.
O cavalheiro comparou-as à que tinha na mão e viu que eram iguais.
Perguntou ao sacristão, que lhe confirmou
ser a morta a tal condessinha.
Nota do editor: o presente conto é um excerto de uma
narrativa de autoria desconhecida, publicado na revista “Vida Policial” (RJ),
edição de 24 de junho de 1926.
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