A HISTÓRIA DE SIDI NOMAN - Conto Clássico de Terror das Mil e Uma Noites - Autor Anônimo


A HISTÓRIA DE SIDI NOMAN
(Das Mil e Uma Noites)
 Autor anônimo

 

“A História de Sidi Noman”, narrativa integrante das “Mil e Uma Noites” — escrita, portanto, entre os séculos IX e XVI —, é um conto que aborda seres perniciosos como feiticeiras e ghouls, estes últimos entidades demoníacas que atacam e devoram seres humanos e que, na falta dessas presas, alimentam-se de cadáveres exumados das entranhas dos cemitérios.

Foi sob a influência deste conto que o genial escritor alemão E. T. A. Hoffmann escreveu o episódio da narrativa “Os Irmãos Serafins” (“Die Serapionsbrüder”) por nós conhecido como “A Mulher Vampiro”.

 

O califa Harum Alraschid[1] encarou o jovem a quem, no dia anterior, havia visto maltratar uma égua, e perguntou-lhe o nome. O jovem respondeu que se chamava Sidi Noman.

— Sidi Noman — disse-lhe então o califa —, toda a minha vida tenho visto adestrar cavalos. Eu mesmo o faço, mas nunca do modo como te vi, ontem, maltratar uma égua, escandalizando os espectadores que estavam murmurando de ti. Não me aborreço menos que eles, e pouco faltou para que eu me desse a conhecer, contra meus desejos, para dar cabo daqueles excessos. Todavia, a tua aparência não é a de um homem bárbaro e cruel, e suponho que não ages assim estranhamente sem um motivo plausível. Pois sei que não é a primeira vez que maltratas a tua égua, e que faz tempo que diariamente dás a ela o mesmo maltrato. Quero saber a causa que o obriga a agir assim, e eu o convoquei aqui justamente para que me esclareças tal motivo. Conta-me tudo como verdadeiramente é, e não me escondas nada.

Sidi Noman compreendeu facilmente o que o califa exigia, mas, como isto lhe causava imensa aflição, mudou várias vezes de cor, e deu a entender quão grande era o apuro em que se encontrava. Todavia, tinha que obedecer. Assim, antes de falar, prostrou-se diante do califa, e, tendo-se levantado, tentou falar para satisfazer-lhe. Mas não conseguia, não tanto por estar diante do monarca, mas sobretudo pela estranheza de sua aventura.

Apesar da prontidão com que o califa exigia a obediência de seus súditos, não se aborreceu com o silêncio de Sidi Noman. Percebeu que o jovem não se atrevia explicar-se diante dele porque havia sido desencorajado pelo tom de voz com que emitira a ordem, ou porque que, em sua narrativa, haveria coisas que não queria revelar.

— Sidi Noman — disse o califa a fim de tranquilizá-lo —, não te inquietes. Comporta-te como quem não se dirige ao califa, mas a um amigo que te pede a palavra. Se há algo em teu relato pelo qual deves temer, ou que creias que possa ofender-me, desde agora eu te perdoo. Fala sem inquietação ou temor, abre para mim o teu coração, não me ocultando nada, como ao melhor de teus amigos.

Reanimado com as últimas palavras do califa, Sidi Noman tomou a palavra:

“— Comandante dos crentes, apesar do acanhamento que deve apoderar-se de quem quer que se aproxime de vossa majestade e ao esplendor de teu trono, não creio, contudo, que isto me tolhesse as palavras a ponto de faltar com a obediência que lhe devo, atendendo a seus desejos em qualquer outra particularidade que na atualidade exigisse de mim. Não me atreverei a dizer que eu seja um homem virtuoso, mas não sou tão perverso para cometer, sobretudo voluntariamente, qualquer ato que viole as leis, ou mesmo temer os seus rigores. Mas, por saudáveis que sejam as minhas intenções, reconheço que pequei por ignorância. Foi isto o que me aconteceu. Por isto, não me fio no perdão que vossa majestade houve de me conceder antes mesmo de ouvir-me. Ao contrário, eu me sujeito à sua justiça, e a ser castigado, se o merecer. Confesso que o trato que dou a minha égua há algum tempo, como vossa majestade bem presenciou, é singular, cruel e escandaloso. Mas, como tenho sobejantes motivos para assim proceder, creio que vossa majestade julgará que sou mais digno de compaixão do que de castigo. Mas não quero entreter vossa majestade com tão fastidiosos preâmbulos.

Eis aqui a minha história.

Não falarei a vossa majestade de meu nascimento, pois não é de elevada importância para atrair a sua atenção. Quanto aos meus bens, os meus antepassados, por meio de uma boa economia, deixaram-me o suficiente para que eu vivesse com honradez, sem servir de estorvo a ninguém.

Com estas vantagens, somente poderia desejar, para completar a minha felicidade, encontrar uma encantadora mulher a quem vincular o meu carinho, e que, amando-me verdadeiramente, correspondesse ao meu amor. Mas Deus não me quis concedê-la. Pelo contrário, deu-me uma que, no segundo dia depois das bodas, pôs-se a exasperar a minha paciência com tal intensidade que somente quem um dia se expôs a semelhante prova pode formar alguma ideia do meu aborrecimento.

Conforme nossos costumes, os casamentos se realizam sem que conheçamos as mulheres que serão as nossas esposas. Assim, não ignora vossa majestade que um marido não tem motivo de queixar-se quando acha que a mulher que lhe coube não é feia que aterrorize, que não é disforme e tem bons modos, pois seus talentos e boa conduta dissimulam alguma pequena imperfeição física que possa ter.

A primeira vez que vi a minha mulher com o rosto descoberto, quando a trouxeram à minha casa com as cerimônias costumeiras, alegrei-me. O relato que haviam feito de sua beleza não me enganara: seus traços me agradaram maravilhosamente.

No dia seguinte, serviram-nos uma refeição composta de vários manjares. Entrei na sala onde a mesa havia sido posta e, verificando que a minha mulher lá não estava, mandei que a chamassem. Depois de uma longa espera, ela finalmente chegou e, dissimulando a minha impaciência, sentamo-nos à mesa. Comecei pelo arroz, que comi, segundo o costume, com uma colher.

Minha mulher, ao contrário, em vez de servir-se dela como faz todo mundo, tirou de um estojo, que trazia numa bolsa, uma espécie de palito, com o qual comia o arroz de grão em grão, porque tal bocado era o que podia apanhar.

Atônito com aquele modo de comer, disse-lhe:

— Amina — este era o seu nome —, aprendestes, em vossa casa, a comer arroz desta maneira? Fazeis assim porque sois muito frugal, ou quereis contar os grãos para comer o mesmo número? Se o fazeis para economizar ou para ensinar-me a não ser pródigo, nada tendes a temer. Posso assegurar-vos que nunca nos arruinaremos por este rumo. Temos, graças a Deus, o suficiente para viver comodamente sem nos privarmos do necessário. Não façais cerimônias, querida Amina, e comei como eu o faço.

 A afabilidade com eu lhe fiz estas advertências parecia requerer uma resposta. Mas, sem me dirigir uma palavra, ela continuou a comer naquela sua peculiar maneira e, a fim de causar-me maior aflição, passou a comer ainda mais pausadamente, e, em vez de provar as outras iguarias, como eu, contentou-se a levar à boca, de tempo em tempo, um pouco de pão esmigalhado, aproximadamente na mesma quantidade que comeria um pardal.

A sua obstinação me escandalizou. Todavia, quis, para dar-lhe gosto e escusá-la, crer que ela não estava acostumada a comer com homens e, ainda mais, com um marido, ante o qual talvez a tivessem ensinado que deveria ser muito comedida, e que por necessidade exagerava a tal ponto. Imaginei que já teria almoçado, ou que, se não o havia feito, reservara-se fazê-lo a sós com toda liberdade. Estas considerações impediram-me de dizer-lhe algo que pudesse incomodá-la, ou causar-lhe algum constrangimento. Depois de comer, retirei-me como se o seu estranho comportamento não me importunasse, e a deixei sozinha.

O mesmo aconteceu à noite, no jantar. No dia seguinte, e em todas as demais refeições que fizemos juntos, ela se comportou do mesmo modo. Bem percebi que era impossível que minha mulher pudesse viver com o pouco alimento que tomava e que isto encerrava um mistério no qual eu não podia penetrar. Tomei a resolução de dissimular e aparentei não fazer caso de suas ações, nutrindo a esperança de que com o tempo ela se acostumaria a viver comigo na forma em que eu desejava. Mas a minha esperança era vã e não tardei a desiludir-me.

Numa noite, acreditando que eu estava profundamente adormecido, Amina se levantou cautelosamente e notei que se vestia, procurando não fazer o menor ruído, temendo despertar-me. Eu não podia adivinhar a causa que a obrigara a assim interromper o seu descanso, e a curiosidade de investigar quais eram as suas intenções me fez aparentar que dormia. Acabou de vestir-se e depois saiu do quarto no maior silêncio.

Mal havia ela saído, saltei da cama, lancei uma capa aos ombros e me aproximei de uma janela que dava para o pátio, a tempo de ver que Amina abria a porta da rua e saía.

Corri à porta, que ela havia deixado aberta, e, à luz da lua, pude segui-la até vê-la entrar num cemitério que não ficava distante da nossa casa. Subi, com todas as precauções para não ser visto, num muro que confinava com o cemitério, e divisei Amina com uma ghouleh[2].

Vossa majestade não ignora que os ghilan[3], de ambos os sexos, são demônios que vagam pelos campos. Habitam geralmente os edifícios em ruína de onde saem para surpreender os transeuntes, aos quais matam e devoram a carne. À falta destes, percorrem à noite os cemitérios para alimentar-se dos cadáveres, que eles mesmos desenterram.

Fiquei pasmado ao ver a minha mulher com aquela ghouleh. Elas desenterraram um morto que fora sepultado naquele mesmo dia, e a ghouleh arrancou pedaços de carne com as próprias unhas, que comeram juntas, sentadas à borda da sepultura. Conversavam tranquilamente, enquanto desfrutavam daquele banquete sangrento, cruel e desumano. Mas, como estavam elas muito distantes de mim, não me foi possível compreender uma só palavra do que diziam, e deveria ser algo tão estranho quanto a comida, cuja lembrança ainda me aterroriza.

Concluído o tenebroso banquete, elas lançaram os restos de cadáver na cova, enchendo-a com a terra que haviam removido. Saltei do muro e voltei a toda pressa para casa. Entrei, deixando a porta da rua entreaberta, como a havia encontrado, e, chegando ao quarto, deitei-me, aparentando que dormia.

Amina entrou pouco depois, sem fazer barulho. Despiu-se e deitou-se, muito contente, a meu ver, por ter-se saído tão bem em seu intento.

Eu não podia expulsar de minha imaginação a imagem daquela conduta tão bárbara e abominável, o que, unido à repugnância de estar deitado junto à autora da atrocidade que eu presenciara, me impediu de conciliar o sono. Todavia, adormeci, mas tão levemente que acordei tão logo realizou-se a primeira chamada das orações públicas matinais. Vesti-me e dirigi-me à mesquita.

Após as orações, saí da cidade e passei a manhã percorrendo os jardins, meditando sobre a resolução que haveria de tomar para obrigar minha mulher a mudar o seu modo de vida. Afastei todos os meios violentos que me vieram à mente e resolvi empregar não mais que a doçura para a desviar daquela pérfida inclinação. Tais pensamentos me conduziram insensivelmente à minha casa, onde cheguei justamente à hora da refeição.

Assim que me viu, Amina mandou servir a comida e nos sentamos à mesa. Quando vi que ela continuava a comer o arroz do mesmo modo, disse-lhe, com todo o comedimento possível:

— Amina, já sabeis o quanto estranhei, no dia seguinte às nossas núpcias, quando vi que comíeis apenas arroz, e em tão pequena quantidade e numa maneira tal que qualquer outro marido ficaria ofendido. Sabeis que me contentei também em apontar-vos a tristeza que me dava em vos ver agir assim, rogando-vos que provásseis as demais iguarias que nos serviam, e que os criados se esmeram em variar para conhecer os vossos gostos. Desde então, a nossa mesa é sempre abundante, e sempre variada nos manjares. Contudo, as minhas exortações têm sido infrutíferas, e, até agora, vós vos tendes comportado da mesma maneira, causando-me, com este jejum, indizível dor. Até aqui, tenho guardado silêncio, porquanto não vos queria forçar e sentiria pesar em dizer-vos o que agora vos digo. Dizei-me, todavia, Amina, eu vos suplico: preferis as carnes dos mortos às que aqui nos são servidas?

Mal pronunciei estas últimas palavras, Amina, percebendo claramente que eu havia descoberto as suas saídas noturnas, enfureceu-se de um modo extraordinário. Sua face parecia em brasa, seus olhos como se quisessem sair das órbitas, e os seus lábios espumavam de ódio.

Aterrorizado com aqueles horrendos extremos, fiquei imóvel e sem ação, sem resguardar-me da maldade que ela urdia contra mim e que surpreenderá Vossa Majestade. Em sua fúria, tomou um vaso d’água que estava ao alcance de suas mãos, nele molhou os dedos e, murmurando entre os dentes algumas palavras que eu não pude compreender, borrifou-me o rosto, dizendo-me, com furioso desdém:

— Desgraçado, recebe o castigo pela tua curiosidade e transforma-te em cão!

Assim que Amina, a quem eu ignorava que fosse feiticeira, vomitou estas diabólicas palavras, eu me encontrei transformado num cão. Atônito com esta mudança tão repentina e inesperada, não pensei prontamente em salvar-me fugindo, o que deu a ela tempo para apanhar uma vara para fustigar-me. Com efeito, ela deu-me tais golpes que não sei como não caí morto ali mesmo. Imaginei poder evitar a sua fúria fugindo ao pátio. Mas ali ela me perseguiu com o mesmo furor e, apesar de toda a minha agilidade, correndo de um lado para o outro, não pude evitá-la, e tive de valer-me de outros meios. Cansada de perseguir-me e lamentando não me ter matado como desejava, logrou uma nova ideia. Abriu a porta da rua com o intento de apanhar-me quando eu passasse. Mas, embora agora fosse um cão, suspeitei de seu pérfido desígnio. E, como o perigo dá ânimo para preservar a vida, tomei tão bem as minhas medidas, observando seu rosto e seus movimentos, que burlei a sua vigilância, fugindo com grande rapidez para salvar a vida e frustrar a sua maldade, e somente a minha cauda saiu um pouco machucada.

A dor que experimentei me fez uivar e ladrar, correndo pela rua, o que fez com que vários cães me perseguissem, dando-me algumas dentadas. Para evitá-los, meti-me na loja de um vendedor da cabeças, línguas e pés de carneiros cozidos, onde me refugiei.

Logo o meu anfitrião tomou a minha defesa, afugentando os cães que me perseguiam e queriam entrar em sua casa. Quanto a mim, cuidei de meter-me num recanto onde não pudesse ser descoberto. Todavia, não achei naquela casa o asilo e a proteção que esperava, pois o seu dono era um daqueles seres supersticiosos que, a pretexto de que os cães são imundos, não encontram água e sabão suficientes para lavar as suas vestes quando, casualmente, ao passar, tocam em algum. Quando os cães que me perseguiam se foram, o homem fez várias tentativas para expulsar-me da loja. Mas eu havia me escondido muito bem. Assim, passei a noite em sua loja, pois tinha grande necessidade de descanso para recobrar-me dos maus-tratos que havia recebido de Amina.

Não cansarei Vossa Majestade com a circunstanciada relação das reflexões que atormentaram minha mente por causa da metamorfose. Direi apenas que, de madrugada, tendo saído o meu anfitrião para prover de mercadorias a sua loja, voltou carregado de cabeças, línguas e pés de carneiro, e, depois de ter aberto as portas ao público, enquanto expunha à venda aquelas mercadorias, saí de meu esconderijo, e já me afastava, quando vi vários cães das imediações, atraídos pelo cheiro da carne, reunidos em volta da loja de meu anfitrião, esperando que lhes jogasse algumas sobras. Reuni-me a eles, assumindo a mesma postura suplicante.

 

Meu anfitrião, conforme me pareceu, em consideração ao fato de que eu não havia comido nada desde que havia entrado em sua casa, me distinguiu, lançando-me os maiores pedaços e em maior quantidade. Assim que acabou a sua generosidade, eu quis voltar à tenda, olhando-o e balançando a cauda em sinal de agradecimento e como que lhe suplicando que me recebesse. Mas ele se mostrou inflexível, opondo-se aos meus desejos com uma vara à mão, e com uma fisionomia tão pouco compassiva que me vi na necessidade de partir.

A alguns passos dali, parei diante da loja de um padeiro que, ao contrário do fatídico vendedor de cabeças de carneiro, me pareceu um homem alegre e franco, e não me enganei. Estava almoçando naquele momento e, embora eu não desse mostras de ter fome, nem por isto deixou de lançar-me um pedaço de pão. Em vez de apressar-me em abocanhá-lo, como fazem os demais cães, olhei, agradecido, para o padeiro, balançando o rabo como mostra de reconhecimento. Ele gostou de minhas maneiras e sorriu. Eu não tinha necessidade de comer. Não obstante, para lhe ser agradável, alcancei o pedaço de pão e o comi pausadamente, dando-lhe a entender que unicamente assim agia para não lhe fazer desfeita. Ele percebeu tudo isto e permitiu que eu permanecesse próximo à sua loja. Sentei-me voltado para a loja, como a solicitar a sua proteção.

Ele me concedeu o seu amparo e ainda me acariciou bastante, o que me animou a entrar em sua casa. Ele não desaprovou a minha determinação. Ao contrário, conduziu-me a um lugar onde eu poderia ficar sem que o incomodasse. Tomei posse daquele sítio e o conservei durante o tempo em que permaneci em sua casa.

Tratando-me sempre afetuosamente, não almoçava, comia ou jantava sem que eu ganhasse a minha bela porção. De minha parte, eu lhe mostrava toda a fidelidade que ele podia exigir de mim.

Meus olhos estavam sempre voltados para ele, e em sua casa, ele não dava um passo sem que eu o seguisse. Eu o acompanhava quando ele dava uma volta pela cidade para tratar de seus negócios. Eu me esmerava nisto, porque sabia que a minha atenção agradava-lhe e que, muitas vezes, quando pensava em sair, sem que eu percebesse, chamava-me pelo nome que me dera: Ruivo.

Quando chamado por este nome, eu corria de meu recanto à rua, saltava, fazia cabriolas, e dava carreiras diante da porta. Não deixava de fazer-lhe festas até que saísse de casa e, então, eu o acompanhava, ora seguindo-o, ora correndo à sua frente, olhando para ele de quando em quando para manifestar a minha alegria.

Eu já vivia naquela casa há algum tempo, quando, certo dia, chegou uma mulher para comprar pão. Pagou ao padeiro com moedas de prata e, dentre elas, havia uma falsa. O padeiro percebeu, devolveu a moeda falsa e pediu-lhe outra.

A mulher recusava-se a receber a moeda devolvida, alegando que esta era válida, mas o meu amo sustentava o contrário, dizendo:

— A moeda é tão visivelmente falsa que estou certo que meu cão, que é irracional, a reconheceria. Vem cá, Ruivo — disse ele, chamando-me.

À sua voz, saltei agilmente para o balcão, e o padeiro, pondo as moedas diante de mim, disse-me:

— Vê! Não há aqui uma moeda falsa?

Olhei para cada uma delas e pus a pata sobre a moeda falsa. Olhando para o meu dono, eu a separei das demais, como a demonstrar que deveras a reconhecia.

O padeiro, que somente havia feito aquilo por brincadeira, ficou extremamente atônito ao ver o que eu havia reconhecido a moeda falsa, sem titubear. Convencida a mulher de que a moeda era mesmo falsa, não soube o que responder, e a substituiu por outra. Assim que se foi, meu amo chamou os vizinhos e lhes contou sobre os meus conhecimentos, referindo-se ao que havia acontecido.

Os vizinhos quiseram certificar-se da verdade. Eu separei, com a pata, todas as moedas falsas, misturadas a outras válidas, que puseram diante de mim.

De sua feita, a mulher propalou, entre todos os seus conhecidos, que encontrou em seu caminho o prodígio que acabara de presenciar. A notícia de minha habilidade no reconhecimento de moedas falsas logo se espalhou, não apenas nas vizinhanças, senão em todo o bairro e, finalmente, em toda a cidade, de maneira que não me faltou ocupação por todo aquele dia. Era necessário satisfazer a todos que vinham comprar pão à casa de meu amo e fazer-lhes ver a minha habilidade. Isto atraía as pessoas, que vinham de bairros distantes para apreciar a minha inteligência. Minha fama proporcionou ao meu amo tal número de compradores que já não podia atender a todos. Isto durou bastante tempo, não se cansando o meu amo de dizer aos seus amigos e vizinhos que eu valia um tesouro.

Minha habilidade não deixou de carrear-lhe invejosos. Urdiram emboscada para raptar-me, e o meu amo teve de guardar-me com muito esmero. Um dia, uma mulher, atraída por esta novidade, veio, como os demais, para comprar pão. Meu lugar costumeiro era o balcão. Ela lançou diante de mim seis peças de prata, entre as quais havia uma falsa. Eu a separei das demais, pondo sobre ela a pata e olhei para ela como se para indagar se não estava certo.

— Sim — disse-me a mulher, olhando-me com atenção. — Esta é a falsa. Não te enganaste.

Permaneceu um longo tempo a me olhar, examinando-me com admiração, enquanto eu também a considerava. Pagou o pão que viera comprar e, quando se retirou, fez-me um sinal para que eu a seguisse, sem que o padeiro o percebesse.

Pensando sempre nos meios de me livrar de uma transformação tão estranha como aquela, havia notado a particular atenção com que aquela mulher me fitara. Imaginei que ela havia suspeitado algo de minha desventura e do deplorável estado a que me via reduzido, e não me enganei. Deixei que ela se afastasse, contentando-me em olhá-la com afinco. Depois de haver caminhado um tanto, voltou-se para mim. Notando que eu apenas a olhava sem sair do lugar, fez um sinal para que eu a seguisse.

Então, sem mais pensar, e vendo que o padeiro estava ocupado na limpeza do forno, e que não me prestava atenção, saltei do balcão e segui a mulher, que se mostrou muito alegre com a minha resolução.

Depois de percorrer várias ruas, chegamos à sua casa. Ela abriu a porta e, antes de fechá-la, disse-me:

— Entra. Não terás de arrepender-te por me teres seguido.

Quando entrei, ela fechou a porta e me conduziu ao seu quarto. Nele, vi uma jovem de encantadora beleza, que estava bordando. Era a filha daquela caridosa mulher e era mui versada nas artes mágicas, como logo em seguida pude constatar.

— Minha filha — disse a mãe —, eu te trago o famoso cão do padeiro, que reconhece tão bem uma moeda falsa. Tu bem te lembras do que eu te disse quando correu a primeira notícia: tratava-se de um homem transformado em cão por meio de algum encantamento. Hoje, como me ocorreu ir comprar o pão na casa daquele padeiro, fui testemunha da verdade do fato e logrei que este cão extraordinário, que é a maravilha de Bagdá, me seguisse até aqui. O que tu me dizes, minha filha? Estou enganada em minhas conjecturas?

— Não estás enganada, minha mãe — respondeu a jovem. — Eu vou te mostrar.

Levantando-se, tomou um vaso cheio de água, no qual mergulhou a mão. E, borrifando-me, disse-me:

— Se nasceste cão, assim permaneça. Mas se tu nasceste homem, toma a tua forma natural por virtude desta água.

No mesmo instante, o encantamento se desfez e eu me vi na primitiva forma de homem.

Transbordando de júbilo e de agradecimento por tão grande benefício, lancei-me aos pés da jovem e, depois de haver beijado as extremidades de seu vestido, disse-lhe:

— Minha querida libertadora, sinto-me tão comovido com este gesto de complacência para com um desconhecido que vos suplico que me digais o que posso fazer para manifestar-vos dignamente o meu reconhecimento. Ou, melhor, disponde de mim como de um escravo que vos pertence por direito. Já não sou dono de minha pessoa. Sou todo vosso, e para que me conheçais mais a fundo, vou contar-vos a minha história em poucas palavras.

Depois de havê-la inteirado de quem eu era, referi-me ao meu casamento com Amina, expondo o meu sofrimento em suportar as suas estranhezas e maldades, além da aleivosia com que me tratara. Finalmente, dei graças à mãe pela felicidade inexplicável que acabava de proporcionar-me.

— Sidi Noman — disse-me a jovem —, não falemos do favor que me deveis. A satisfação de haver ajudado um homem honrado como vós é para mim bastante recompensa. Falemos de Amina, vossa mulher. Eu a conheci antes de vosso casamento e, como sabia que era feiticeira, ela tampouco ignorava que eu possuía alguns conhecimentos dessa arte, posto que tivemos a mesma mestra. Com frequência nos encontrávamos nos banhos. Mas, como nossas índoles não combinavam, cortei toda relação com ela, o que não me custou muito, pois ela também, de sua parte, fazia o possível para desviar-se de mim. Assim, a sua perfídia não me causa admiração. Voltando ao que vos interessa, o que acabo de fazer por vós não é o suficiente. Quero concluir o que comecei. Com efeito, não basta ter sido quebrado o encantamento com o qual ela vos excluiu da sociedade. É preciso que a castigueis como ela merece, ao entrar em casa, para recobrar a autoridade que vos corresponde, e eu vos darei o meio fazê-lo. Ficai com a minha mãe, que volto logo.

Minha libertadora entrou num gabinete e, durante a sua ausência, pude voltar a dar graças à mãe pelo favor que devia a ambas.

— Minha filha — disse-me ela —, como vedes, não é menos versada que Amina na arte da magia. Mas faz tão bom uso dela que ficaríeis admirado em saber todo o bem que ela tem feito, e faz cada dia, com os conhecimentos que possui. Por isso eu permito que ela pratique a magia, pois, do contrário, não consentiria.

Estava a mãe a contar-me algumas das maravilhas que presenciara, quando entrou a filha com uma garrafinha na mão.

— Sidi Noman — disse-me —, acabo de consultar os meus livros e por eles sei que Amina não se acha agora em casa. Portanto, deveis voltar a casa imediatamente. Também sei por eles que a traiçoeira aparenta diante dos criados estar pesarosa com a vossa ausência, e lhes disse que, quando estáveis a comer com ela, vós vos lembrastes de um assunto que vos obrigou a sair naquele instante, deixando a porta aberta, e que um cão se metera na sala em que comia, de forma que ela teve de expulsá-lo a pau. Voltai a vossa casa, sem perder tempo, com esta garrafinha que vos dou. Quando abrirem a porta, esperai em vosso quarto pelo retorno de Amina. Não havereis de esperar por muito tempo. Assim que ela chegar, descei ao pátio e a confrontai. Atônita por vos ver quando menos espera, dará as costas para fugir. Então arremessai sobre ela a água desta garrafa, que tereis já destapada, e, ao mesmo tempo, pronunciai estas palavras: “Recebe o castigo de tua perfídia”. Não vos digo mais: logo vereis o efeito que tal encantamento surte.

Depois destas palavras de minha benfeitora, que não esqueci, como nada tinha a esperar, despedi-me dela e de sua mãe com novos protestos de meu reconhecimento, prometendo-lhes não esquecer em minha vida o favor que lhes devia, e rumei para casa.

Tudo aconteceu como a jovem havia predito. Amina não tardou muito a chegar. Quando entrava, apresentei-me a ela com a garrafa na mão, disposto a lançar a água sobre ela. Ela soltou um grande grito, e quando se voltou para correr à porta, arremessei a água em seu corpo, pronunciando as palavras que a jovem maga me havia ensinado. No mesmo instante, Amina se transformou em uma égua, a mesma que Vossa Majestade contemplou ontem.

Aproveitei-me do assombro que a transformação lhe causou e, agarrando-a pela crina, e apesar da sua resistência, a levei ao meu estábulo. Pus-lhe um cabresto e, tendo-a amarrado, lançando-lhe na cara a sua maldade e aleivosia, dei-lhe tão vigorosas chibatadas, e por tanto tempo que, por fim, o cansaço me obrigou a parar. Mas, permaneceu-me o ânimo de dar-lhe todos os dias semelhante castigo.

— Comandante dos crentes — acresceu Sidi Noman ao concluir a sua história —, atrevo-me a esperar que vossa majestade não há de desaprovar a minha conduta e opinará que tenho tratado uma mulher tão malvada e perniciosa com mais indulgência do que ela merece.

Quando o califa viu que Sidi Noman havia acabado, disse:

— A tua história é maravilhosa. E a infâmia de tua mulher não admite desculpa. Não condeno absolutamente o castigo que lhe tens imposto até agora. Mas quero que tu leves em conta que já é expiação bastante ver-se reduzida à classe das bestas, e desejo que te contentes em deixá-la cumprir a sua penitência nesse estado. Eu te mandaria que fosses procurar a maga que a transformou, para que fizesse cessar o encantamento, se não soubesse que a obstinação é a incorrigível maldade dos magos e magas que abusam de seus conhecimentos, e se não temesse de sua parte uma vingança contra ti ainda mais terrível do que a anterior.

 

Versão em português (tradução indireta) de Paulo Soriano.

 

Notas:

 

[1] Quinto califa abássida, reinou entre os anos de 786 e 809.

[2] Feminino de ghoul, ente demoníaco, necrófago, da mitologia árabe.

[3] Plural de ghoul.

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