A LARVA - Conto Clássico de Terror - Rubén Darío
Rubén Darío
(1867 – 1916)
Tradução de
Paulo Soriano
Porque
falávamos de Benvenuto Cellini, e alguém sorriu da afirmação, que fez o grande
artífice em sua Vida[2], de
ter visto uma vez uma salamandra, Isaac Condomano disse:
―
Não riam. Eu lhes juro que vi, assim como estou vendo vocês, se não uma
salamandra, ao menos uma larva ou uma taquarinha.
“Contarei
o caso em poucas palavras.
“Eu
nasci em um país em que, como em quase toda a América, se praticavam
feitiçarias, e os bruxos se comunicavam com o invisível. O mistério nativo não
desapareceu com a chegada dos conquistadores. Ao contrário, aumentou na
colônia, com o catolicismo, o costume de evocar as forças estranhas, o
demonismo, o mau-olhado. Na cidade em que passei os meus primeiros anos,
falava-se, eu bem me lembro, como coisa trivial, de aparições diabólicas, de
fantasmas e de duendes. Numa família pobre, que vivia na vizinhança de minha
casa, sucedeu, por exemplo, que o fantasma de um coronel peninsular apareceu a um
jovem e revelou um tesouro enterrado no pátio. O jovem morreu devido à visita
extraordinária, mas a família ficou rica. Um bispo apareceu a outro bispo para
indicar um lugar onde se encontrava um documento perdido nos arquivos da
catedral. O diabo carregou pela janela uma mulher, em uma casa que eu tenho bem
presente. Minha avó me assegurou a existência noturna de um frade sem cabeça e
de uma mão peluda e enorme que aparecia sozinha, como uma infernal aranha. Tudo
isso aprendi de ouvir dizer, ainda criança. Mas o que eu ouvi, o que eu
apalpei, foi aos quinze anos; o que eu vi e apalpei do mundo das sombras e dos
arcanos tenebrosos.
“Naquela
cidade, à semelhança de certas cidades provincianas espanholas, os habitantes
fechavam as portas às oito, ou, ao mais tardar, às nove horas da noite. As ruas
ficavam solitárias e silenciosas. Não se ouvia mais que o ruído das corujas
aninhadas nos beirais, ou o latido dos cães nas lonjuras dos arredores.
“Quem
saísse à procura de um médico, de um sacerdote, ou para outra urgência noturna,
tinha que seguir por ruas de pavimento pedregoso e cheias de buracos, alumiado
apenas por lampiões de petróleo que, fixados nalguns postes, deitavam a sua
escassa luz.
“Às
vezes ouviam-se ecos de música ou de cantos. Eram serenatas à moda espanhola:
árias e romanças que, acompanhadas pelo violão, expressavam as ternuras
românticas do namorado à amada. Tais variavam desde um só violão e o namorado
sozinho, de poucos meios, até um quarteto, septeto, ou mesmo uma orquestra
completa com piano, como o fidalgo endinheirado fazia soar sob as janelas da
dama de seus desejos.
“Eu
tinha quinze anos, uma grande ânsia de vida e de mundo. Uma das coisas que mais
ambicionava era poder sair à rua e ir com a gente dessas serenatas. Mas, como
fazê-lo?
“A
tia-avó que cuidava de mim em minha infância, após rezar o rosário, tinha o
cuidado de correr toda a casa, trancar bem as portas, guardar as chaves e
deixar-me bem deitado sob o sobrecéu de minha cama. Um dia, porém, soube que à
noite haveria serenata. Mais ainda: um de meus amigos, tão jovem quanto eu,
assistiria à festa, cujos encantos me pintava com as mais tentadoras palavras.
Todas as horas que precederam aquela noite, passei inquieto, somente a pensar e
preparar o meu plano de fuga. Assim, quando as visitas de minha tia-avó
partiram ― entre elas um padre e dois licenciados, que vieram para conversar
sobre política e jogar uíste ou voltarete ―, uma vez feitas as orações, e
estando todos deitados, pensei apenas e pôr em prática o meu plano de furtar
uma chave da venerável senhora.
“Passadas
umas três horas, isso pouco me custou, pois sabia onde as chaves eram guardadas
e, além disso, ela dormia como um bem-aventurado. Tendo alcançado o que
buscava, e sabendo a que porta a chave correspondia, consegui sair à rua, no
momento em que, ao longe, os acordes de violinos, flautas e violoncelos
começavam a soar. Considerei-me um homem. Guiado pela melodia, logo cheguei ao
lugar onde ocorria a serenata. Enquanto os músicos tocavam, o público tomava
cerveja e licores. Depois, um alfaiate, tomando ares de tenor, entoou
primeiro A la luz de la pálida luna, e, em
seguida, Recuerdas cuando la aurora... Entro
em tantos detalhes para que vocês vejam como se me fixou na memória tudo o que
aconteceu naquela noite, a meu ver extraordinária. Das janelas de Dulcinea,
resolvemos ir às outras. Passamos pela praça da Catedral. E, então... Disse que
eu tinha quinze anos, estava nos trópicos, e despertavam em mim, imperiosas,
todas as ânsias da adolescência...
“E
na prisão de minha casa, de onde saía apenas para o colégio, e com aquela
vigilância, e com aqueles costumes primitivos... Eu ignorava, pois, todos os
mistérios. Assim, qual não foi a minha satisfação quando, ao passar pela praça
da Catedral, acompanhando a serenata, vi sentada, numa calçada, envolvida em
sua mantilha, como se entregue ao sonho, uma mulher! Parei.
“Jovem?
Velha? Mendiga? Louca? Que me importava! Eu ia em busca da sonhada revelação,
da aventura desejada.
“As
pessoas da serenata se afastavam.
“A
claridade dos lampiões da praça chegava escassamente. Aproximei-me. Falei com
ela; não direi que com palavras doces, mas com palavras fervorosas e urgentes.
Como não obtivesse resposta, inclinei-me e toquei o ombro daquela mulher que
não queria responder-me, e fazia o possível para que não lhe visse o rosto. Fui
insinuante e altivo. E, quando cria ter alcançado a vitória, aquela figura
voltou-se para mim, descobriu o rosto e... Oh, espanto dos espantos! Era
viscosa e desfigurada aquela face. Um olho pendia sobre a maçã ossuda e
purulenta. Algo como o úmido bafio de putrefação chegava a mim. De sua boca
horrenda, saiu como que um riso rouco; e, depois, produzindo o mais macabro dos
esgares, aquela ‘coisa’ emitiu um ruído que se poderia dizer assim:
“―
Kgggggg!...
“Com
o cabelo eriçado, dei um grande salto, lancei um grande grito, clamando por
socorro.
“Quando
chegaram os companheiros de serenata, a ‘coisa’ havia desaparecido.
“Dou-lhes
a minha palavra de honra ― concluiu Isaac Codomano ―, que tudo o que lhes
contei é absolutamente verdadeiro.
[1]
Conforme
se colhe do Dicionário Aulete Digital, no ocultismo, e na Roma antiga, lavra
significa espectro de pessoa que teve morte violenta e passa a vagar entre os
vivos, como uma espécie de parasita ou aparição aterrorizante.
[2] Referência à autobiografia do escultor e escritor italiano
Benvenuto Cellini (1500-1571), na qual se mesclam eventos verdadeiros e
fantasiosos. (N. do T.)
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