BUGIO MOQUEADO - Conto Clássico de Horror - Monteiro Lobato
Monteiro Lobato
(1882 – 1948)
—
Uno!
Ugarte...
—
Dos!
Adriano...
—
Cinco...
Vilabona...
—
...
Má
colocação! Minha pule é a 32 e já de saída o azar me põe na frente Ugarte...
Ugarte é furão. Na quiniela anterior
foi quem me estragou o jogo. Querem ver que também me estraga nesta?
—
Mucho, Adriano!
Qual
Adriano, qual nada! Não escorou o saque, e lá está Ugarte com um ponto já
feito. Entra Genúa agora? Ah, é outro ponto seguro para Ugarte. Mas quem sabe
se com uma torcida...
—
Mucho, Genúa!
Raio
de azar! — Genúa “malou” no saque. Entra agora Melchior... Este Melchior às
vezes faz o diabo. Bravos! Está aguentando... Isso, rijo! Uma cortadinha agora!
Buena! Buena! Outra agora... Oh!... Deu na lata! Incrível...
Se
o leitor desconhece o jogo da pelota em cancha pública — Frontão da Boa Vista,
por exemplo, nada pescará desta gíria, que é na qual se entendem todos os
aficionados que jogam em pules ou “torcem”.
Eu
jogava, e, portanto, falava e pensava assim. Mas como vi meu jogo perdido,
desinteressei-me do que se passava na cancha e pus-me a ouvir a conversa de
dois sujeitos velhuscos, sentados à minha esquerda.
“...
coisa que você nem acredita, dizia um deles. Mas é verdade pura. Fui
testemunha, vi! Vi a mártir, branca que nem morta, diante do horrendo prato...”
“Horrendo
prato?” Aproximei-me dos velhos um pouco mais e pus-me de ouvidos, alerta.
—
“Era longe a tal fazenda”, continuou o homem. “Mas lá em Mato Grosso tudo é
longe. Cinco léguas é “ali”, com a ponta do dedo. Este troco miúdo de
quilômetros, que vocês usam por cá, em Mato Grosso não tem curso. E cada
estirão!...
“Mas
fui ver o gado. Queria arredondar uma ponta para vender em Barretos, e quem me
tinha os novilhos nas condições requeridas, de idade e preço, era esse Coronel
Teotônio, do Tremedal.
“Encontrei-o
na mangueira, assistindo à domação dum potro — zaino, ainda me lembro... E,
palavra d’honra! Não me recordo de ter esbarrado nunca tipo mais
impressionante. Barbudo, olhinhos de cobra muito duros e vivos, testa entiotada
de rugas, ar de carrasco... Pensei comigo: Dez mortes no mínimo. Porque lá é
assim. Não há soldados rasos. Todo mundo traz galões... e aquele, ou muito me
enganava ou tinha divisas de general. Lembrou-me logo o célebre Panfilo do Aio
Verde, um de ‘doze galões’, que ‘resistiu’ ao tenente Galinha e, graças a esse
benemérito ‘escumador de sertões’, purga a esta hora no tacho de Pedro Botelho
os crimes cometidos.
“Mas,
importava-me lá a fera! — eu queria gado, pertencesse a Belzebu ou a São
Gabriel. Expus-lhe o negócio e partimos para o que ele chamava a invernada de
fora.
“Lá
escolhi o lote que me convinha. Apartamo-lo e ficou tudo assentado.
“De
volta do rodeio caía a tarde e eu, almoçado às oito da manhã e sem café de
permeio até aquel’hora, chiava numa das boas fomes da minha vida. Assim foi
que, apesar da repulsão inspirada pelo urutu humano, não lhe rejeitei o jantar
oferecido.
“Era
um casarão sombrio, a casa da fazenda. De poucas janelas, mal iluminado, mal
arejado, desagradável de aspectos e por isso mesmo toante na perfeição com a
cara e os modos do proprietário. Traste que se não parece com o dono é roubado,
diz muito bem o povo. A sala de jantar semelhava uma alcova. Além de escura e
abafada, rescendia a um cheiro esquisito, nauseante, que nunca mais me saiu do
nariz — cheiro assim de carne mofada...
“Sentamo-nos
à mesa, eu e ele, sem que viva alma surgisse para fazer companhia. E como de
dentro não viesse nenhum rumor, conclui que o urutu morava sozinho — solteiro
ou viúvo. Interpelá-lo? Nem por sombras. A secura e a má cara do facínora não
davam azo à mínima expansão de familiaridade; e, ou fosse real ou efeito do
ambiente, pareceu-me ele inda mais torvo em casa do que fora em pleno sol.
“Havia
na mesa feijão, arroz e lombo, além dum misterioso prato coberto em que não se
buliu. Mas a fome é boa cozinheira. Apesar de engulhado pelo bafio a mofo, pus
de lado o nariz, achei tudo bom e entrei a comer por dois.
“Correram
assim os minutos.
“Em
dado momento o urutu, tomando a faca, bateu no prato três pancadas misteriosas.
Chama a cozinheira, calculei eu. Esperou um bocado e, como não aparecesse
ninguém, repetiu o apelo com certo frenesi. Atenderam-no desta vez. Abriu-se
devagarinho uma porta e enquadrou-se nela um vulto branco de mulher.
—
Sonâmbula?
—
Tive essa impressão. Sem pingo de sangue no rosto, sem fulgor nos olhos
vidrados, cadavérica, dir-se-ia vinda do túmulo naquele momento. Aproximou-se,
lenta, com passos de autômato, e sentou-se de cabeça baixa.
“Confesso
que esfriei. A escuridão da alcova, o ar diabólico do urutu, aquela morta-viva
morre-morrendo, a meu lado, tudo se conjugava para arrepiar-me as carnes num
calafrio de pavor. Em campo aberto não sou medroso — ao sol, em luta franca,
onde vale a faca ou o 32. Mas escureceu? Entrou em cena o mistério? Ah! —
bambeio de pernas e tremo que nem geleia! Foi assim naquele dia...
“Mal
se sentou a morta-viva, o marido, sorrindo, empurrou para o lado dela o prato
misterioso e destampou-o amavelmente. Dentro havia um petisco preto, que não
pude identificar. Ao vê-lo a mulher estremeceu, como horrorizada.
—
“Sirva-se!” disse o marido.
“Não
sei porquê, mas aquele convite revelava uma tal crueza que me cortou o coração
como navalha de gelo. Pressenti um horror de tragédia, dessas horrorosas
tragédias familiares, vividas dentro de quatro paredes, sem que de fora ninguém
nunca as suspeite. Desd’aí nunca ponho os olhos em certos casarões sombrios sem
que os imagine povoados de dramas horrendos. Falam-me de hienas. Conheço uma: o
homem...
“Como
a morta-viva permanecesse imóvel, o urutu repetiu o convite em voz baixa, num
tom cortante de ferocidade glacial.
—
“Sirva-se, faça o favor!” E fisgando ele mesmo a nojenta coisa, colocou-a
gentilmente no prato da mulher.
“Novas
tremuras agitaram a mártir. Seu rosto macilento contorceu-se em esgares e
repuxos nervosos, como se o tocasse a corrente elétrica. Ergueu a cabeça,
dilatou para mim as pupilas vítreas e ficou assim uns instantes, como à espera
dum milagre impossível. E naqueles olhos de desvario li o mais pungente grito
de socorro que jamais a aflição humana calou...
“O
milagre não veio — infame que fui! — e aquele lampejo de esperança, o
derradeiro talvez que lhe brilhou nos olhos, apagou-se num lancinante cerrar de
pálpebras. Os tiques nervosos diminuíram de frequência, cessaram. A cabeça
descaiu-lhe de novo para o seio; e a morta-viva, revivida um momento, reentrou
na morte lenta do seu marasmo sonambúlico.
“Enquanto
isso, o urutu espiava-nos de esguelha, e ria-se por dentro venenosamente...
“Que jantar! Verdadeira cerimônia fúnebre
transcorrida num escuro cárcere da Inquisição. Nem sei como digeri aqueles
feijões!
“A
sala tinha três portas, uma abrindo para a cozinha, outra para a sala de
espera, a terceira para a despensa. Com os olhos já afeitos à escuridão, eu
divisava melhor as coisas; enquanto aguardávamos o café, corri-os pelas paredes
e pelos móveis, distraidamente. Depois, como a porta da despensa estivesse
entreaberta, enfiei-os por ela a dentro. Vi lá umas brancuras pelo chão sacos
de mantimento — e, pendurada a um gancho, uma coisa preta que me intrigou.
Manta de carne seca? Roupa velha? Estava eu de rugas na testa a decifrar a
charada, quando o urutu, percebendo-o, silvou em tom cortante:
—
“É curioso? O inferno está cheio de curiosos, moço...
“Vexadíssimo,
mas sempre em guarda, achei de bom conselho engolir o insulto e calar- me.
Calei-me. Apesar disso o homem, depois duma pausa, continuou, entre manso e
irônico:
—
“Coisas da vida, moço. Aqui a patroa pela-se por um naco de bugio moqueado, e
ali dentro há um para abastecer este pratinho... Já comeu bugio moqueado, moço?
—
“Nunca! Seria o mesmo que comer gente...
—
“Pois não sabe o que perde!... filosofou ele, como um diabo, a piscar os
olhinhos de cobra.
Neste
ponto o jogo interrompeu-me a estória. Melchior estava colocado e Gaspar, com
três pontos, sacava para Ugarte. Houve luta; mas um “camarote” infeliz de
Gaspar deu o ponto a Ugarte. “Pintou” a pule 13, que eu não tinha. Jogo vai,
jogo vem, “despintou” a 13 e deu a 23. Pela terceira vez Ugarte estragava-me o
jogo. Quis insistir, mas não pude. A estória estava no apogeu e antes “perder
de ganhar” a próxima quiniela do que
perder um capítulo da tragédia. Fiquei no lugar, muito atento, a ouvir o
velhote.
“Quando
me vi na estrada, longe daquele antro, criei alma nova. Fiz cruz na porteira. ‘Aqui
nunca mais! Credo!’ e abri de galopada pela noite adentro.
Passaram-se
anos.
“Um
dia, em Três Corações, tomei a serviço um preto de nome Zé Esteves. Traquejado
da vida e sério, meses depois virava Esteves a minha mão direita. Para um
rodeio, para curar uma bicheira, para uma comissão de confiança, não havia
outro. Negro quando acerta de ser bom vale por dois brancos. Esteves valia por
quatro.
“Mas
não me bastava. O movimento crescia e ele sozinho não dava conta. Empenhado em
descobrir um novo auxiliar que o valesse, perguntei-lhe uma vez:
—
“Não teria você, por acaso, algum irmão de sua força?
—
“Tive, respondeu o preto, tive o Leandro, mas o coitado não existe mais...
—
“De que morreu?
—
“De morte matada. Foi morto a rabo de tatu... e comido.
—
“Comido? repeti com assombro.
—
“É verdade. Comido por uma mulher.
A
estória complicava-se e eu, aparvalhado, esperei a decifração.
—
“Leandro, continuou ele, era um rapaz bem-apessoado e bom para todo serviço.
Trabalhava no Tremedal, numa fazenda em...
—
“... em Mato Grosso? Do Coronel Teotônio?
—
Isso! Como sabe? Ah, esteve lá! Pois dê graças de estar vivo; que entrar na
casa do carrasco era fácil, mas sair? Deus me perdoe, mas aquilo foi a maior peste
que o raio do diabo do Barzabu do canhoto botou no mundo!...
—
O urutu, murmurei, recordando-me. Isso mesmo...
—
“Pois o Leandro — não sei que intrigante malvado inventou que ele... que ele,
perdão da palavra, andava com a patroa, uma senhora muito alva, que parecia uma
santa. O que houve, se houve alguma coisa, Deus sabe. Para mim, tudo foi
feitiçaria da Luduina, aquela mulata amiga do coronel. Mas, inocente ou não,
foi que o pobre do Leandro acabou no tronco, lanhado a chicote. Uma novena de
martírio — lepte! lepte! E pimenta em cima... Morreu. E depois que morreu foi
moqueado.
—
“???”
—
“Pois então! Moqueado, sim, como um bugio. E comido, dizem. Penduraram aquela
carne na despensa e todos os dias vinha à mesa um pedacinho para a patroa
comer...
Mudei-me
de lugar. Fui assistir ao fim da quiniela
a cinquenta metros de distância. Mas não pude acompanhar o jogo. Por mais que
arregalasse os olhos, por mais que olhasse para a cancha, não via coisa
nenhuma, e até hoje não sei se deu ou não a pule 13...
Sinistro
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