CIÚMES PÓSTUMOS - Conto Clássico de Terror - Bernardo Couto Castillo


CIÚMES PÓSTUMOS
Bernardo Couto Castillo
(1880 – 1901)
Tradução: Paulo Soriano

Naquela noite, ao entrar em meu quarto, muito cansado e taciturno, experimentei um estranho estremecimento ao ver o crânio que luzia sobre a minha mesa o brilho de seu marfim e a avidez daqueles olhos ausentes.

Senti um estranho estremecimento ao ver o brilho desse marfim, porque vagos arrependimentos e inquietantes temores me agoniavam.

Lassos, e tendo chegado os prazeres ao limite, sedentos de novas sensações que somos incapazes de encontrar em nós mesmos, planejamos amar-nos à luz moribunda de um quarto-minguante e à fosforescência mórbida de um cemitério.

A grade girou estranhamente, estranhamente deixou escapar um rangido no qual havia algo de dor, no qual havia algo de ironia. Os crânios, que no ossuário rolavam empoeirados e esquecidos, pareciam dilatar suas órbitas vazias para contemplar-me.

Somente o entrechoque dos galhos e das folhas e os uivos dos cães que ladram à noite fizeram coro a nossos beijos profanadores.

Muitas vezes, quando solitariamente tristes nossos passos ressoavam na areia, achávamos que ouvíamos algo como murmúrios interrompidos, algo como lamentos que se esforçam para sair de gargantas sufocadas. Muitas vezes, quando nossas bocas se procuravam, algo frígido agia como se nos separasse, e quando, sentados sobre o mármore de uma tumba, nos virávamos, bruscamente aterrorizados por algum ruído, a luz de uma lamparina, que pendia de uma árvore, fazia regelar os sangues em nossas veias, pois era como se nos observasse subitamente um imenso olho vigilante.

Repleto ainda dos temores da noite, acreditando experimentar a cada instante a fria sensação de solidão que sentia quando o corpo lunar se  ocultava sob uma nuvem, e no cemitério brilhava a fosforescência oriunda o ossuário; repleto, ainda, de agitação e de temores, lancei-me à cama sem me despir, e, como em outras noites, meus olhos vagaram para a mancha branca do crânio, esperando que me fornecesse alguma resposta ao meu incurável desgosto, alguma palavra de solução à minha existência destituída de objetivo.

Mas eis que, na escuridão de meu quarto, meus olhos criam ver fosforescente brilho nas apagadas e ávidas órbitas do impenetrável crânio, enquanto um incomparável mal-estar atormentava o meu corpo.

Os dois olhos mortos pareciam abrir-se, fitar-me, envolver-me em sua mórbida luz. Pareciam lançar-se sobre mim, sobre os meus olhos, dois olhos, dois focos de fosforescência que me privavam de todo movimento. “O que será?” — disse eu — “O que será este tão estranho foco que de todo movimento me priva?  Não é, não pode ser o brilho da lamparina vigilante que ficou em meu espírito. Não é, tampouco, o brilho emanado do ossuário que minha preocupação acredita ver ainda. Não, o brilho vem da avidez desses olhos apagados; o brilho parte e se dirige a mim dos olhos apagados do crânio. Será que minha profana visita ao cemitério o ofendeu?”

Então, de cima da mesa, de cima da mesa onde repousava o crânio, vieram estas palavras:

— Insensato!  Não apenas rouba dos mortos o que fora seu, senão também violas a sua morada, a morada que deveria ser de paz, e perturbas o seu silêncio com tuas frases, e fazes estremecer o que neles restou de vida com teus beijos, ostentando ante seus pobres restos tua juventude e teu descaramento.

“A mulher, que em tuas profanadoras excursões te acompanha, que tantas vezes vi dormir no leito, foi minha, minha por direitos sagrados, minha porque a amei e porque ela me amava. As palavras que hoje ela te disse, as que no silêncio da noite te fazem regozijar, mil vezes ela também me murmurou aos ouvidos que já não tenho. Seus lábios, seus lábios perfumados de prazer e desejos pousaram nos meus, emprestando-me o seu calor, e os átomos de vida e de lembranças que, espalhados, ficam em meu crânio insepulto, estremecem de ciúmes e raiva ao ver em outro as carícias que foram minhas.

“Teus lábios quentes e rosados, como eu os tive, foram intrusos. Tu a beijaste nos locais de minhas — minhas! — predileções, que foram feitos exclusivamente para os lábios que já tive.  Teus dedos a estreitaram tal qual eu a estreitava, envolveram os seus braços e se perderam na cascata fragrante e seus cabelos, tal como os meus a envolveram e se perderam!

E a este quadro tenho assistido dias e noites, sempre imóvel, sempre imperturbável.  Muitas vezes, os claros e enigmáticos olhos dela me viam com espanto, muitas vezes sua voz falava-me em arrojar-me dali.  Eu a inquietava. Oh, sim! A pertinácia de meu olhar sem olhos a inquietava. A pertinácia do olhar em que tantas vezes se viu! Ah, não pensava que seu crânio talvez luzisse um dia sobre uma mesa. Que dentro de si trazia o esqueleto que lhe causava espanto, e que, algum dia, desnudo como o meu, dormiria em estreito leito, tendo por único calor o dos vermes, e por única maciez a das tábuas de um ataúde semiapodrecido!

“Tu, no entanto, imbuído apenas no teu prazer, sentindo-se cheio de vida, jamais te preocupaste com este pobre crânio. Mas é pouco: hoje foste ao cemitério com ela sem pensar no que sentiram os mortos.  Partículas minhas, restos de minha inteligência, ainda lá subsistem, e quando ouvi ressoar estranhamente a grade, disse: ‘Pobres pais, quão pouco conhecem a crueldade da morte. Quererão dar calor com suas lágrimas ao filho desaparecido? Quererão salvar da carniçaria dos vermes aquelas carnes rosadas? Mas, depois, quando a lua, que sempre é cúmplice dos apaixonados, estendeu os seus cristalinos raios cor de lis, eu comecei a vos seguir, a vos seguir com os restos de minha inteligência, com os restos do amor que lhe havia tido e que ela, de sua feita, jurara eterno.

“Ao meu redor, os que não mais vivem queriam gritar, e de suas gargantas, oprimidas pelo eterno frio, saíam apenas roucos sons que diziam ‘Miseráveis! Vindes assim a expor e proclamar, cinicamente, ante os pobres mortos, vossa juventude e vossa vida e vossas paixões, fazer ressoar no morto silêncio do cemitério a música profanadora de vossos beijos, fazer que no fundo dos beijos estremeçam os velhos crânios!’
“E vos continuei observando. Tu já te distanciavas, já voltavas com ela. E vi, dela, os lábios sorridentes; vi seu corpo cheio de medo agarrado ao teu, e vi — oh, sim! — seus olhos, seus olhos úmidos de desejo. Eu os vi porque os conhecia bem, porque sobejamente conhecia a umidade desses olhos — tantas vezes recolhida por meus lábios — quando o desejo os fazia brilhar.

“Depois, vos sentastes sobre uma tumba. As bocas se juntaram e as cenas que aqui neste quarto me atormentaram tanto continuaram ali... e o morto, o pobre morto, que sob essa tumba descansava, escutou tudo: as carícias, os juramentos.  E lembrava-se dos que a ele foram feitos, sem poder sequer chorar de raiva quando os seus braços queriam estirar-se em vão para abraçar, quando a sua boca desejava algo para poder beijar.

“Quando passaste em frente ao ossuário e quando viste os crânios rotos e empoeirados, tu a estreitaste pela cintura e a beijaste na testa, onde há também um crânio.  Amanhã, estarás morto e diante de teu crânio passará a mulher que hoje amas, e perante ti outros a beijarão, e te farão desesperadamente invejar o que já não tens, o que nunca mais poderás ter.”




Não mais suportei.  Corri ao crânio e, arremessando-o, parti-o em mil pedaços.

E, desde então, não conheço a tranquilidade, nem sei aonde ir com os pedaços deste crânio, porque nem o mar é demasiado profundo, e nem demasiadamente funda é a terra para tragar os restos desse crânio ciumento! Porque não posso voltar a beijá-la sem sentir frio, sem sentir entre nós os fragmentos farpados desse Crânio Ciumento.


Imagens: Stefan Keller e Taili Taomote




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