A INESPERADA - Conto Clássico de Terror - Catulle Mendes

A INESPERADA

Catulle Mendes

(1841 – 1909)

Tradução de autor anônimo do séc. XIX



O leitor é da opinião de Hamlet?

Acredita que se passam debaixo do céu coisas que a filosofia não poderia imaginar?

Acha que ó verdade que, em Londres, Éliphas Lévi1 evocou Apolônio de Tiana2, o suave profeta mago, e que o ilustre sábio Wiliam Chrookes3 tomou chá, durante muitos meses, algumas vezes por semana, com o espírito materializado de uma jovem vestida com uma camisa de linho e toucado com um turbante de plumas?

Não se ponha a rir. Um espectro, mesmo por baixo do um turbante, faria gelar de medo a medula dos ossos do leitor e, talvez, o cômico agravasse o horror. Eu, pela minha parte, não tinha vontade de rir-me, ontem à noite, ao ler no New York Herald, número de 19 de março, a notícia de um processo criminal que, sem dúvida, terminará pela condenação do acusado à pena última. É uma sinistra aventura.

No momento de traduzir-lhe a história reconstruída pelos dizeres do criado que escutou, pelo buraco da fechadura, a conversa dos dois cúmplices, e pelo testemunho unânime de quarenta pessoas, absolutamente dignas de crédito, que assistiram à cena suprema do drama, sinto um calafrio percorrer-me a carne, como se um pedaço de gelo se me derretesse nas costas. O que seria se eu tivesse visto, em pessoa, a formosa jovem morta, com a sua ferida sangrenta no coração, ensopando nela os dedos, e sagrando a fronte do culpado com um batismo de gotas vermelhas?


*


No dia 25 de fevereiro passado, às 3 horas da tarde, um médium famoso, o professor Benjamin Hawenport — Hawenport quer dizer “porto de salvação” — e a senhorita Ida Soutchotte, moça muito pálida e muito franzina, que há anos se presta às experiências do professor, acabavam de jantar no quarto deles, no 2º andar do Devonshire Hotel, em Nova York.

Famoso era realmente Benjamin Hawenport, mas devia a sua notoriedade a meios pouco confessáveis, dizia-se. Os espiritualistas sérios não caíam em depositar nele a confiança que testemunhavam em alta voz ao Sr. Wiliam Crookes ou ao Sr. Daniel Dunglas Home4. “Os mais cruéis ataques que tem sofrido a nossa causa — diz o autor da Historia do Espiritualismo Americano — provém de médiuns gananciosos e sem princípios que, quando as manifestações não se produzem tão vivamente como as circunstâncias o exigem, recorrem à impostura para se saírem”.

O professor Benjamin era destes médiuns.

Além disso, contavam-se dele estranhas histórias de roubos à mão armada nas estradas na América do Sul, de furtos ao jogo nas espeluncas de São Francisco, de revólveres descarregados sobre vítimas inofensivas. Dizia-se, quase em voz alta, que a mulher do professor, traída, arruinada e espancada, tinha morrido de desgosto. Apesar destes boatos desagradáveis, e graças à habilidade de seus embustes, Benjamin Hawenport não deixava de exercer uma influência considerável sobre as almas simples, fáceis do iludir. Seria difícil persuadir a um bom número de pessoas de bem que elas não tinham visto, ouvido e até tocado, graças a ele, os espíritos corporizados de seus irmãos, de suas mães ou de suas irmãs. Ele era, aliás, muito auxiliado por um rosto fatal, amorenado, de olhos profundos, cheios de fulgores ferozes, nariz grande e recurvado, na boca sempre um riso demoníaco, e uma ênfase profética da palavra. Satanás-charlatão.

Quando o criado do hotel retirou-se — não para muito longe —, levando os pratos da sobremesa, disse o médium à senhorita Ida:

A propósito, hoje há sessão, à noite, em casa do Dr. Hardinge. Muita gente. Personagens importantes. Dois ou três milionários. Hás de esconder debaixo da saia a gaze, com que se velam as aparições, e a cabeleira de mulher, a cabeleira loura.

Como quiser, Benjamin — respondeu Ida Soutchotte resignadamente.

O criado ouviu-o caminhar pelo quarto, de um lado para o outro. Depois de uma pausa, ela perguntou:

Quem pretende evocar hoje, Benjamin?

Ele deu uma gargalhada ruidosa, grosseira, brutal. A cadeira gemia com as contorções do galhofeiro.

Adivinha!

Como posso eu adivinhar?

Pretendo evocar… minha mulher!

E deu uma gargalhada mais ruidosa, mais brutal, misturando à alegria cóleras e ameaças.

Mas Ida tinha dado um grito! Por um arrastar de fazendas pelo tapete, o criado, que escutava à porta, compreendeu que ela se arrastava de joelhos.

Benjamin! Benjamin! Tu não hás de fazer isso! — dizia ela a soluçar.

Por que não? Dizem que eu fiz minha mulher desgraçada. É um legado que me prejudica. Hei de dar cabo dele, quando ouvirem o espírito de minha mulher falar-me com meiguice. Porque tu hás de dirigir-me, d'além-túmulo, palavras meigas. Não é verdade, Ida?

Não, tu não farás isso! Tu não pensas em fazê-lo! Ouve-me por quem é. Há quatro anos que me tomaste. Eu tenho-te obedecido sempre. Tudo que tens querido, eu tenho feito; tudo o que me tens imposto, eu tenho suportado. Tenho enganado e mentido, como tu. Aprendi a simular o sono dos sonâmbulos, as suas crises, os seus êxtases. Suportei o peso de homens sentados nas minhas costas, alfinetes na carne dos meus braços, sem estremecer, sem dar um gemido. Ainda mais: por trás do pano de cena, imitando vozes longínquas, fiz crer às mães, às esposas, que seus filhos, que seus maridos vinham do outro mundo falar-lhes, e, nas salas, entre os móveis, à luz das lâmpadas amortecidas, coberta com uma mortalha ou com um véu que simula um nevoeiro, ousei ser a forma vaga em que os olhos empanados pelas lagrimas reconhecem entes queridos. Oh, aqueles sacrilégios! Se tu soubesses o medo que eu tinha! Tu, que parodias os mistérios eternos, és forte, não acreditas neles; mas eu vivo cheia de terrores e dúvidas. Oh, Deus! Se um dia, no momento mesmo em que eu o figurava, o morto aparecesse diante de mim, terrível, erguendo os braços e amaldiçoando! É a esses terrores que eu devo a moléstia de coração de que sofro, e de que hei de morrer. É por causa deles que definho e vou-me arrastando febril, descarnada, exausta. Pois bem, não me importa! Sou tua, toda tua. Dispõe de mim, é o teu poder e a minha vontade. Tenho eu me queixado? Mas hoje, Benjamin, o que tu me pedes é demais. Pela minha obediência, pelos meus sofrimentos, tem pena de mim uma vez! Não me obrigues a fazer o papel da pobre senhora, que era tão formosa e tão meiga. Como pudeste tu conceber semelhante ideia? Poupa-me, Benjamin. Benjamin, eu te peço.

Ele tinha deixado de rir-se. Como houve uma desordem de móveis derrubados, o barulho de um crânio batendo de encontro a um tabique, é provável que o professor Hawenport tivesse violentamente atirado a Ida um soco ou um pontapé! Mas o criado não entrou, porque os viajantes não tinham tocado m campainha.


*


Nesse mesmo dia, um pouco antes da meia-noite, na sala do Sr. Hardinge, quarenta pessoas estavam sentadas, graves, imóveis, com os olhos voltados para o pano de cena, que o espírito devia abrir daí a pouco. Apenas uma lâmpada acesa, de luz muito fraca, a um canto da sala — uma luz que serve mais para fazer ver as trevas do que para espancá-las; e, sobre todas as coisas, vagas e turvas —, enquanto, no grande silêncio, anunciavam as respirações, as chamas da lareira deitavam clarões furtivos, que semelhavam a espíritos errantes.

Nunca o professor Benjamin Hawenport fora tão extraordinário como essa noite! O mundo dos espíritos obedecia-lhe sem resistência, como a seu soberano legítimo. Era indubitavelmente o príncipe onipotente das almas. Tinham-se visto mãos sem braços a colher flores nas jardineiras; um acordeão, posto em movimento por um invisível, tocava melodias religiosas; pancadas em todos os móveis tinham respondido com mais notável seriedade às perguntas mais imprevistas. Até o professor, em êxtase de sonâmbulo, tinha-se elevado do soalho a uma altura de cerca de três pés — segundo a medida tomada pela dona da casa — e, com as mãos cheias de brasas, tinha passeado, a sorrir, durante um quarto de hora bem puxado, pelo ar.

Mas a experiência mais interessante, a mais decisiva, prometida desde o princípio da sessão, era a aparição da falecida Arabella Hawenport.

Chegou a hora — disse o médium.

Enquanto todos os peitos palpitavam com uma impaciência medrosa, enquanto todos os olhos arregalavam-se desmedidamente, com a esperança da próxima visão, Benjamin Hawenport estava de pé, junto do pano, na penumbra, muita alto, desgrenhado, com fulgores infernais nos olhos — como que possesso de um demônio, se não era ele o próprio demônio: o professor estava realmente terrível e belo.

Vem, Arabella! — disse ele em tom imperativo, com o gesto do Nazareno junto do túmulo de Lázaro.

Todos esperavam…

Ouviu-se um grito por detrás do pano! O grito agudo, dilacerante, de terror supremo! Um grito em que foge uma alma!

Os assistentes tremeram de medo. O dono da casa esteve quase a desmaiar. O próprio médium parecia espantado.

Mas sossegou, vendo mexer o pano, que, lentamente levantado, deu passagem ao espírito.

Era uma mulher ainda moça, de longos cabelos louros, muito bonita, muito pálida, seminua, com umas roupagens brancas, e cujo peito descoberto deixava ver debaixo do seio esquerdo uma ferida a sangrar, onde tremia uma faca.





Recuaram todos, de pé, empurrando as cadeiras para a parede. Os que se lembraram de olhar para o médium viram que ele tremia, medonhamente lívido, e recuando também.

Mas a mulher, Arabella, a verdadeira que ele reconhecia bem! — tinha vindo, porque ele a chamara. Caminhou direto a Benjamin Hawenport — estúpido, livido que, pondo as mãos diante dos olhos para evitar o terrível espetáculo, fugia de um a outro móvel. Ela molhou na ferida os dedos de sua mão delgada, e sobre a fronte do médium ajoelhado, em um terror doido, deixou cair, gota a gota, o sangue, dizendo em voz lenta e longínqua, como o eco de uma queixa:

Foste tu que me mataste!





Então, como ele rolava pelo soalho com estertores de agonizante, acenderam as lâmpadas.

O espírito tinha desaparecido! No gabinete vizinho, por detrás do pano, achou-se o cadáver de Ida Soutchotte com a face convulsionada de terror.

Ruptura de um aneurisma — diagnosticou um médico que estava presente.

E aí está por que o professor Benjamin Hawenport comparece sozinho perante júri de Nova York, acusado de haver assassinado sua mulher, há quatro anos, em São Francisco.



Fontes: “Gazeta de Notícia”/RJ, edições de 16 de maio e 9 de junho de 1883 e “Pacotilha”/MA, edição de 31 de junho de 1883.

Fizeram-se adaptações textuais.


Notas:

1Éliphas Lévi (1810 – 1875), pseudônimo de Alphonse Louis Constant, famoso ocultista francês.

2Apolônio de Tirana (c.15 – c. 100), filósofo neopitagórico grego. A ele são atribuídos prodígios maravilhosos.

3O químico e físico inglês William Crookes (1832 — 1919) era adepto do espiritualismo.

4Daniel Dunglas Home (1833 – 1866) foi um espiritualista e médium de efeitos físicos escocês.

 

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