A LENDA DE SÃO JULIANO, O HOSPITALEIRO - Conto Clássico Fantástico - Gustave Flaubert
A LENDA DE SÃO JULIANO, O HOSPITALEIRO
Por Gustave Flaubert
(1821-1880)
Uma pequena mesa, um banquinho, uma cama
de folhas mortas e três copos de barro constituíam toda a sua mobília.
Dois buracos na parede serviam de
janelas.
Dos lados estendiam-se, a perder de
vista, planícies estéreis, tendo aqui e ali na sua superfície pequenos
pântanos. E o grande rio, diante dele, rolava as ondas esverdeadas.
Na primavera, a terra úmida tinha um
cheiro de podridão.
Depois, um vento desordenado levantava
o pó em turbilhões.
Este entrava por toda parte, enlodando
a água a tal ponto que feria as gengivas.
Mais tarde eram as nuvens de mosquito,
de que os zunidos e as picadas eram de dia e de noite.
Outras vezes, caíam grandes nevadas,
que davam às coisas a rigidez de pedra e inspiravam uma necessidade louca de
calor e comida.
Alguns meses decorreram sem que Juliano
visse ninguém.
Muitas vezes, fechava os olhos,
procurando pela memória voltar à juventude. E aparecia-lhe a corte de um
castelo com cães de caça no pátio, criados na sala de armas e num berço de
videiras, um adolescente de cabelos louros entre um velho coberto de peles e
uma dama vestida em grande estilo. Imediatamente, apareciam-lhe dois cadáveres.
Lançava-se com o peito sobre o leito e
exclamava chorando:
– Ah, pobre pai! Pobre mãe! Pobre
mãe![1]
Caía num aniquilamento em que só
continuavam as visões fúnebres.
Uma noite em que ele dormia, julgou
ouvir alguém que o chamava.
Aplicou o ouvido e distinguiu apenas o
murmúrio das ondas.
Mas a mesma voz continuava:
– Juliano!
Esta voz tinha a entonação de um sino
de igreja.
Acendendo a lanterna, saiu da choça.
Um furacão medonho enchia a noite. As
trevas eram profundas, atenuadas apenas aqui e ali pela brancura das vagas que
se encrespavam.
Depois de um minuto de hesitação,
Juliano largou a amarra. A água imediatamente tornou-se tranquila, o
barco escorregou por cima dela e tocou na outra margem, onde o esperava um
homem.
Este estava envolvido numas vestes aos
farrapos, a cara semelhante a uma máscara de gesso e os dois olhos mais
vermelhos que carvões acesos.
Aproximando dele a lanterna, Juliano
viu que o seu corpo era coberto pela lepra asquerosa.
Entretanto, havia na sua atitude como
que uma majestade de rei.
Desde que entrou na barca, esta
afundou-se prodigiosamente, esmagada pelo seu peso. Um balanço a agitou e
Juliano começou a remar.
A cada movimento do remo, a ressaca das
ondas impelia a barca para frente.
A água, mais negra que tinta, corria
com fúria dos dois lados do costado. As ondas despenhavam-se de abismos,
formavam montanhas e a chalupa saltava por cima e descia depois às profundezas,
onde corria impelida pelo vento.
Juliano inclinava o peito, estendia os
braços, e, firmando-se nos pés, torcia um pouco o corpo para poder fazer mais
força.
A saraiva crivava-lhe as mãos, a chuva
corria-lhe pelas costas, a violência da tempestade o oprimia. Parou.
Então, a barca mudou de rota.
Mas Julião, compreendendo que aquilo se
tratava de alguma coisa extraordinária, de uma ordem à qual era preciso
obedecer, retomou os remos. E o bater das cavilhas cortava compassadamente o
clamor das tempestades.
A pequena lanterna clareava diante
dele. Pássaros voejando escondiam-na por instantes. Mas ele via
sempre as pupilas do leproso, que se conservava de pé à sua retaguarda, imóvel
como uma coluna.
Isto durou muito, muito tempo.
Quando chegaram à choça, Juliano fechou
a porta. O hóspede sentou-se no banco. A espécie de lençol que o cobria
tinha caído até a cintura. Os ombros, o peito e os magros braços desapareciam
sob as placas de pústulas e escamas. Rugas enormes lavravam-lhe a testa.
Tal como um esqueleto, tinha um buraco no lugar do nariz e os lábios azulados
exalavam um hálito nauseabundo e espesso como um nevoeiro.
– Tenho fome! – disse ele.
Juliano deu-lhe o que possuía: um velho
pedaço de queijo e as côdeas de um pão negro.
Quando ele os devorou, a mesa, a janela
e a lâmina da faca tinham as mesmas nódoas que eram vistas em seu corpo.
Em seguida, disse:
– Tenho sede!
Juliano foi buscar a bilha e, enquanto
a trazia, dela saía um aroma que lhe dilatou o coração e as narinas.
Era vinho. Que tesouro!
Mas o leproso estendeu os braços e, num
trago, esvaziou a bilha.
Depois disse:
– Tenho frio.
Juliano, com a lamparina, pôs fogo numa
porção de samambaia no meio da cabana.
O leproso aproximou-se e aqueceu-se.
Sentado sobre os calcanhares, tremia com todo corpo. Os olhos já não mais
brilhavam, as úlceras vertiam e com uma voz quase sumida, murmurou:
– O teu leito!
Juliano ajudou-o gentilmente a
arrastar-se para ali, e estendeu sobre ele, para o cobrir, a vela de seu barco.
O leproso gemia. Os cantos da boca
deixavam-lhe ver os dentes, um estertor acelerado sacudiu-lhe o peito e o
ventre a cada uma das aspirações cavava-lhe até as vértebras.
– Tenho gelo nos meus ossos.
Aproxima-te de mim.
E Juliano, afastando a vela, deitou-se
sobre as folhas mortas, junto a ele, lado a lado.
O leproso voltou a cabeça.
– Despe-te para que eu tenha o calor de
teu corpo.
Juliano tirou as vestes e depois, nu
como no dia do seu nascimento, tornou a deitar-se no leito e sentiu contra a
sua pele a pele do leproso, mais fria que a de uma serpente, mais áspera que
uma lima.
Procurava animá-lo. O outro respondia,
arquejando:
– Vou morrer. Aproxima-te,
reaquece-me. Só com as mãos não; com o teu corpo todo.
Juliano colocou-se contra ele.
Boca face à boca; peito face ao peito.
Então o leproso abraçou-o. Os olhos
tomaram uma claridade de estrela. Os cabelos alongaram-se como raio de sol. O
sopro das narinas tinha a doçura das rosas. Uma nuvem de incenso elevou-se do
chão. As ondas cantavam. Ao mesmo tempo, uma abundância de delícias, uma
alegria sobre-humana descia imediatamente à alma de Juliano desfalecido. E
aquilo, cujo os braços o apertavam, crescia, crescia sempre, tocando com a
cabeça e com os pés nas duas paredes da cabana. O teto elevou-se, o firmamento desdobrou-se
sobre eles... e Juliano subiu para os espaços azuis, face a face com Jesus
Nosso senhor, que o levava para o céu.
Eis aqui a lenda de São João, o
Hospitaleiro, tal como se achava escrita sobre uma vidraça da igreja de minha
aldeia.
A presente narrativa foi publicada originalmente no jornal
paraense Diário de Notícias, edição de 11 de
junho de 1892, sem indicação do tradutor. A tradução abrange excerto
(parte final) do conto La Légende de Saint Julien l'Hospitalier,
publicado por Flaubert em 1877. Atualizamos a ortografia e fizemos pequenas
adaptações textuais.
Ilustração: Gustave Doré (1832 – 1883).
[1] Após voltar
de uma caçada infrutífera, Juliano encontra um casal em seu leito conjugal.
Tomado de ira, e pensando tratar-se de sua esposa e um amante, mata, em
verdade, seu o pai e a sua mãe, que haviam chegado, inesperadamente, durante
a sua ausência.
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