A MORTE DE EDGAR ALLAN POE - Narrativa Verídica - Narrativa Fúnebre - John Joseph Moran



A MORTE DE EDGAR ALLAN PÖE
(Memorando Oficial da morte de Edgar A. Pöe)
  John Joseph Moran
(Séc. XIX)

Edgar A. Pöe foi levado ao "Washington Hospital” em um carro a 7 de outubro de 1849.

Acharam-no estendido em um banco situado defronte de uma casa de negócio da esquina de Hight Street.

Estava ele em completo estado de estupor, causado quer pelo álcool, quer pela absorção de um narcótico (ópio), o que não se pode dizer ao certo.

Um homem que passava, vendo muitas pessoas reunidas ao redor de um indivíduo que jazia estendido, aproximou-se e reconheceu o Poeta. Isto aconteceu ao raiar do dia.

Um agente de polícia mandou chamar um carro e o fez conduzir a este hospital, do qual sou diretor.

Teve lugar a sua entrada às 10 horas da manhã.

Edgar Pöe foi para um quarto particular onde, despido, foi examinado minuciosamente. Eu nenhuma noção anterior tinha de seus hábitos, vida e situação financeira.

Nem a sua roupa nem a sua respiração exalavam cheiro algum alcoólico. Não tinha delírio, nem agitação. A cútis estava lívida, apenas alguns roncos se exalavam da garganta. Parecia estar dormindo.

O seu estado era febril: aplicaram-lhe panos embebidos em água morna, sinapismos nos pés, nas coxas e no ventre, e gelo na cabeça.

Mandei correr as cortinas das janelas e tratei de dar-lhe a posição que me pareceu mais confortável para o seu estado. Coloquei uma enfermeira à cabeceira, com ordem de chamar-me ao menor movimento que o enfermo fizesse.

Meia hora depois, mais ou menos, ela chamou-me e eu entrei no quarto no mesmo momento em que o enfermo tirava o lençol de cima de si, abria os olhos e exclamava:

— Onde estou?

Cheguei uma cadeira para junto de seu leito, tomei-lhe a mão entre as minhas, apartei-lhe os magníficos anéis de seus cabelos pretos e perguntei-lhe como se achava.

— Muito mal, disse.

— Sente alguma dor? Sente dor no estômago?

— Sim.

— Tem sede?

— Não.

— A cabeça lhe dói? — perguntei, levando a minha mão à sua cabeça.

— Sim.

— Desde quando está doente?

— Não sei dizer.

— Onde mora?

— No hotel de Pratt Street, em frente a um depósito.

— Tem alguma mala, carteira, ou qualquer outro objeto que deseje a seu lado?

— Sim, uma maleta com papéis e manuscritos meus.

— Se deseja, irei buscá-la.

Dando-me o tratamento de doutor, agradeceu-me e pediu-me que lhe dissesse onde estava.

 — Está em casa de amigos.

— O meu melhor amigo seria aquele que me fizesse saltar os miolos com um tiro de pistola.

— Sossegue, Sr. Pöe. Aqui faremos nós todo o possível para protegê-lo e mitigar-lhe os sofrimentos.

— Oh! Quão miserável sou, senhor, quando contemplo a minha degradação e minha ruína, quando penso no que tenho sofrido e perdido; no pesar, na miséria a que reduzi os meus parentes. Quisera desaparecer em um abismo, repelido por Deus e pelos homens, como escoria da sociedade. Meu Deus, que terrível posição!  Para a alma imortal não há resgate!

— Sr. Pöe, fique calmo e tome esta poção, que lhe deixará tranquilo e lhe dará vigor.

Estendeu a mão para tomar a vasilha e a enfermeira levantou-lhe a cabeça. Depois de ter bebido, cerrou os olhos, como se quisesse dormir.

Fiquei a seu lado escutando o melhor que pude a sua respiração e tratando de fundar o meu diagnóstico nessas observações. Eu estava sob a impressão do que me tinham comunicado os que o haviam visto estendido na esquina da rua e que o julgavam sob o império do alcoolismo crônico, porém, eu nenhuma data tinha a respeito do tempo que houvera transcorrido desde a absorção dos licores, não justificando de modo algum os sintomas presentes esta suposição.

O enfermo não tinha estremecimentos nervosos, seus dedos estavam tranquilos, e ele respondia com certeza às perguntas que eu lhe fazia. Seu semblante estava lívido, os olhos não estavam injetados de sangue, as pulsações eram fortes e frequentes. Permaneceu neste estado perto de uma hora e abriu de novo os olhos.

Perguntei-lhe se desejava aguardente, não tanto com o fim de estimulá-lo, como para ver se com esta proposta seus apetites de bebedor despertavam.
Abriu excessivamente os seus grandes olhos e fitou-os em mim com uma tal expressão que me vi forçado a desviar a vista.

— Senhor — disse-me ele —, se o líquido contido nesse vaso devesse transportar-me imediatamente aos Campos Elísios, não o beberia, não o aproximaria a meus lábios. O Sr.  não sabe os tormentos que ele pode causar.

— Eu devo fazer-lhe tomar uma bebida opiada para que tenha um pouco do sono e de repouso.

— São esses os dois precursores do inferno e da perdição.

— Sr. Pöe, é absolutamente necessário que fique calmo e evite qualquer motivo de excitação. O seu estado é muito delicado e qualquer exaltação lhe trará imediatamente a morte.

— Doutor, estou tão mal assim? Não há mais esperanças?

— As probabilidades estão contra você.

— Oh, quando verei a minha querida Virginia?  Quisera também ver a minha cara Lenore!

— Irei buscar as pessoas que você deseja ver.

Nada sabendo eu sobre a sua família, perguntei-lhe:

— Tem família?

— Não, minha esposa, minha querida Virginia, é morta. Existe a  minha sogra.  Oh, como o meu coração palpita por ela!  O negro anjo da morte completou a sua obra. Fui lançado à tempestade sem bússola e sem farol... Doutor, escreva à minha sogra Maria Clemm. Diga-lhe que o seu Eddie está aqui. Não, é muito tarde, demasiado tarde! Devo acabar com as reservas e dizer-lhe o segredo que consome o meu coração e rasga-me a alma. Dentro de dez dias eu deveria casar-me.

 (Aqui fez pausa e soluçou.)

— O senhor quer que lhe traga a sua noiva? —perguntei-lhe, pensando que ela morava na cidade.

— É muito tarde! Muito tarde!

— Oh, não! — respondi. — Posso mandar já a minha carruagem.

— Não. Eescreva a ambas. Participe-lhes, ao mesmo tempo, a minha enfermidade e a minha morte.

— Diga-me os endereços.

— Madame Schelton, em Norfolk, Virgínia; Maria Clemm, em Lowell, Massachusetts.

Nesse momento, suas faces se coraram, as veias das fontes incharam, os olhos vagaram confusamente e a cabeça inclinou-se para diante. Mandei renovar a aplicação do gelo à cabeça e as preparações quentes aos pés. Fiz tomar outra vez um gole da poção calmante. Depois, notando que a minha presença, bem como a da enfermeira pareciam incomodá-lo, ocultei-me e também esta por detrás da cama. Tendo eu sabido que um certo Nelson Pöe era seu parente distante, mandei-o chamar e a uma família Reynolds, que residia perto do hospital.

Nelson Pöe e as Sras. Reynoldes acudiram imediatamente ao meu chamado.

Edgar Pöe esteve perto de uma hora em estado de torpor: tomando-lhe o pulso, encontrei-o muito fraco, agitado, irregular, dando 120 pulsações por minuto. Voltei para mandar-lhe dar um estimulante e um febrífugo.

Pöe reanimou-se um pouco e pregou os olhos em mim. Pus-me perto da cama e notei, pela averiguação de todos os sintomas, que a vida pouco a pouco se extinguia. Mandei-lhe dar caldo com algumas gotas de amoníaco. Neste momento entrou o Dr. Jolin Monkur, e logo que olhou para Edgard Pöe, disse:
 — Doutor, ele está quase morrendo.

— Sim, creio que tudo está consumado.

Examinou, então, minuciosamente o Poeta e, enumerados todos os sintomas que se tinham desenvolvido desde a manhã, foi, como eu, de opinião, que Pöe sucumbia a uma afecção nervosa, sobrevinda em consequência de privações, cujo nome médico é encefalite.

 O meu colega aconselhou o uso de vinho, caldo e os cordiais, e aplicação de gelo à cabeça. Muitas vezes Pöe levou a mão à boca, como se tivesse desejo de beber água. Mandei dar-lhe um pedaço de gelo. Depois, uma pequena colherada de água que engoliu com dificuldade, porém, em seguida, tomou caldo sem dificuldade alguma. Neste momento, tornou a si, e abriu os olhos. Parecia ter dificuldade em falar.

— Doutor, tudo está consumado. Escreva: Eddie não mais existe.

Eddie era o nome filial que a Sra. Clemm, sua sogra, lhe dava.

— Permita, Sr.  Pöe, que eu lhe previna que o seu fim está próximo. Tem alguma recomendação a fazer a seu respeito ou a seus amigos?

Ele murmurou:

— Adeus! Até a eternidade.

— Pense em seu Salvador — respondi eu. — Ele   terá piedade de você como de toda a humanidade. Deus é misericordioso!

 — As abobadas do Céu me aniquilam! Repouso, deixe-me passar. Deus escreveu os seus decretos legíveis na face de todas as criaturas humanas. Os demônios apoderam-se de um corpo... por prisão têm as turbulentas vagas do negro desespero.

— Espere e tenha confiança nele.

— Assassino de mim mesmo, entrevejo o porto, mas há ali rodomoinho. Onde está o guia, a barca de salvação?... Barco de fogo, mar de cobre! Calmaria em todas as partes, em nenhuma um porto de salvação!

Seus olhos se elevaram ao céu de tal maneira que apenas se viam os globos brancos: fez alguns movimentos convulsivos e, após um tremor geral, tudo se concluiu.

Isto ocorreu por volta da meia-noite de 7 de outubro de 1849. 

Soube pelo porteiro do hotel Pratt Street que Pöe tinha chegado a 5, que o vira tomar o trem para Philadelphia, e que os condutores encarregados dos bilhetes o tinham encontrado desmaiado no vagão das bagagens. Chegando à estação do Havre de Grace, o condutor conduziu-o ao trem que o levou a Baltimore. Chegou à noite, e ninguém o viu, até o momento em que foi encontrado no canto da rua Light Street. Sem dúvida, tinha andado errando toda a noite pelas ruas de Baltimore.

Alguns instantes depois de sua morte, recebi uma maleta que remeti, por intermédio do Sr. Nelson Pöe, à sua sogra, Sra. Maria Clemm. Conservo as cartas que ela me dirigiu, agradecendo os cuidados prestados a seu querido Eddie durante a sua enfermidade. Depois de sua morte, foi o corpo de Edgar Pöe lavado, vestido em terno de tecido preto e exposto em uma grande sala da Universidade, imediata ao hospital, onde numerosos amigos e admiradores do defunto vieram tributar-lhe a última homenagem de respeito. Cinquenta senhoras receberam cada uma madeixa desses magníficos cabelos negros. O corpo esteve exposto o dia todo.

Na manhã de 9, foi sepultado no cemitério Westminster, situado na esquina de Fayette e Greene Street, em Baltimore; era este o lugar de inumação da família Pöe.

Os seus restos mortais foram acompanhados à sepultura pelos mais distintos habitantes de nossa cidade em artes e literatura. Porém, ausente desta imensa multidão de gente, estava, sem dúvida, a pessoa que mais sinceramente chorava por Edgar Pöe: a Sra. Maria Clemm, sua sogra, que também era a sua tia, porque ele era casado com a prima de primeiro grau.

Pöe não estava desfigurado: todas as suas feições conservavam-se calmas, em seus lábios parecia desenhar-se um sorriso e todos aqueles que o viram, exclamaram: “Que semblante tão pacifico!”. O rosto tinha conservado a sua cor, parecia que ele dormia. Era Edgar Pöe um homem bonito; trajava com esmero e gosto tal que difícil seria igualá-lo. Seu semblante era admiravelmente moldado, a testa proeminente e espaçosa, igualando em proporção à do grande Napoleão Bonaparte, de quem tenho um busto em minha casa. Sua cútis alva, cabelos pretos como a asa do corvo, e com tendência a se anelarem. Os dentes admiráveis e os olhos pardos. O seu talhe era de cinco pés e dez polegadas. Suas mãos eram tão delicadas como as de uma mulher.

A mortalha foi enfeitada por minha mulher e algumas senhoras amigas suas que consideraram como uma honra contribuir com esta homenagem ao ilustre poeta.

Um cavalheiro europeu, de passagem por Baltimore, que o tinha visto alguns momentos antes de sua morte, chorou pelo poeta, dizendo que ele sido o maior crítico e poeta americano. Ele tinha lido todas as suas obras, e quanto saía das mãos de Edgar Pöe, ele admirava com assombro.

J. J. Moran, M. D.— Medico em chefe durante sete anos da Universidade da Washington, hospital Broadway, na cidade de Baltimore, Maryland.

Tradução de Autor desconhecido.
Fonte: “O Globo”(RJ), edição de 24 de fevereiro de 1876

Comentários

  1. Barão, essa foto do Poe parece que é real, é dele mesmo, no esquife ! Me lembrei do meu pai, foi até o presente momento o parente mais próximo em que fui o velório, não morreram tantos parentes meus até o momento; não devia haver velórios, é muito sofrido, muito. É terrivel, nunca mais veremos o morto querido, mas...ledo engano! O vemos sim, em sonhos, e depois que morrermos, por certo.

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    1. Sim, é a foto de Allan Pöe morto. Quando vivo, parecia bem mais velho do que era. Morto, semelha, sim, um homem de apenas 40 anos de idade...

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