A VISÃO DE CARLOS XI - Conto Clássico de Terror - Prosper Mérimée
A VISÃO DE CARLOS XI
Prosper Mérimée
(1803 – 1870)
"There are more things in heav’n
and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy."
Than are dreamt of in your philosophy."
Shakespeare, Hamlet.
Zombam-se das visões e aparições
sobrenaturais. Algumas, contudo, acham-se tão bem certificadas que, se alguém
se recusasse a crer nelas, haveria de se constituir, para ser coerente, na
obrigação de rejeitar em massa todas as provas verídicas.
Um processo verbal[1] em
boa forma, revestido das assinaturas de quatro testemunhas dignas de fé, eis o
que afiança a autenticidade do fato que vou contar. Acrescentarei que a
predição inclusa nesse processo verbal era conhecida e citada muito tempo antes
de parecerem tê-la cumprido acontecimentos passados em nossos dias.
Carlos XI, pai do famoso Carlos XII, era
um dos mais despóticos, porém dos mais lúcidos monarcas que tem tido a Suécia.
Restringiu os monstruosos privilégios da nobreza, aboliu o poder do senado e
fez leis por sua própria autoridade. Em uma palavra, mudou a constituição
do país, que antes dele era oligárquica, e forçou os Estados a lhe confiarem a
autoridade absoluta. Além de quê, era homem ilustrado, bravo, muito
aferrado ao luteranismo, de caráter inflexível, frio, positivo, inteiramente
desprovido de imaginação.
Acabava de perder a sua mulher Ulrica
Leonor. Posto que sua dureza para com essa princesa houvesse, como se diz,
apressado o seu fim, ele a estimava, e pareceu sentir mais a sua morte do que
se teria esperado de um coração tão seco como o seu. Desde este acontecimento,
tornou-se ainda mais sombrio e taciturno do que antes, e deu-se ao trabalho com
uma aplicação que provava a imperiosa necessidade de afastar ideias penosas.
No fim de uma noite de outono, estava
sentado de chambre e chinelas, diante de uma grande lareira acesa em seu
gabinete, no palácio de Estocolmo. Junto de si tinha seu camareiro, o conde de
Brahe, a quem honrava com o seu agrado, e o médico Baumgarten, que, diga-se de
passagem, presumia de espírito forte, e queria que de tudo se duvidasse, exceto
da Medicina. Mandara-o vir aquela noite, para o consultar sobre não sei que
indisposição.
A noite se prolongava e, contra o seu
costume, não lhes indicava o rei, dando-lhes as boas-noites, que era tempo de
se retirarem. Com a cabeça baixa e os olhos fitos nas brasas, guardava profundo
silêncio, enfastiado da companhia, mas temendo, sem saber por quê, ficar
só. Bem percebia o conde Brahe que não era muito agradável a sua
presença, e já muitas vezes tinha mostrado que Sua Majestade tivesse necessidade
de repouso. Mas o rei, a um gesto, o retivera no lugar. Por seu turno, o
médico falou do mal que faziam à sua saúde as vigílias. Mas, por entre os
dentes, respondeu Carlos:
– Demorai-vos. Eu não tenho
vontade de dormir.
Então encetaram diferentes assuntos de
conversação que, à segunda ou terceira frase, se esgotavam todos. Evidente
parecia que Sua Majestade estava com um ataque de seu negro humor e, em
semelhante circunstância, é bem melindrosa a posição de um cortesão. O conde de
Brahe, suspeitando que a tristeza do rei provinha do sentimento pela perda de
sua consorte, contemplou algum tempo o retrato da rainha, pendurado no
gabinete, e, depois, com um grande suspiro, exclamou:
– O quão fiel é aquele retrato.
Eis ali bem aquela expressão, tão majestosa e doce ao mesmo tempo!...
– Essa é boa! – respondeu bruscamente o
rei, o qual julgava ouvir uma censura todas as vezes que diante dele se ouvia o
nome da rainha. – Aquele retrato é muito lisonjeiro! A rainha era
feia!
Depois, interiormente sentido de sua
dureza, levantou-se e deu uma volta pela câmara para ocultar a comoção de que
se envergonhava. Parou diante da janela que dava para o pátio. A
noite estava escura e a lua não aparecia.
Ainda não era acabado o palácio onde
ainda hoje residem os reis da Suécia, e Carlos XI, que o havia começado,
habitava então o antigo palácio, situado na ponta do Ritterholm, que olha para
o lago Moeler. É um grande edifício em forma de ferradura. O gabinete do rei
ficava numa das extremidades, e quase defronte se achava a grande sala onde se
congregavam os Estados, quando estes deviam receber alguma comunicação da
Coroa.
As janelas desta sala pareciam, nesse
momento, aclaradas de uma viva luz. Estranho pareceu isto ao rei.
Primeiro, ele supôs que esse clarão era produzido pelo lume de algum criado.
Mas o que se ia fazer em uma sala, a qual desde muito tempo não era
aberta? Além disso, tão resplandecente era a luz que não podia provir de
uma só vela. Podiam atribuí-la a um incêndio, mas não se via fumaça, os
vidros não estavam quebrados, não se ouvia estrondo algum, antes tudo anunciava
uma iluminação de aparato.
Algum tempo sem falar, olhou Carlos
para aquelas janelas. Entretanto, o conde Brahe, estendendo a mão ao
cordão de uma campainha, dispunha-se a chamar um pajem para mandá-lo reconhecer
a causa dessa singular claridade. O rei, porém, o deteve.
– Quero eu mesmo ir àquela sala – disse
ele.
Acabando estas palavras, viram-no
empalidecer e a sua fisionomia expressava uma espécie de pavor religioso.
Todavia, saiu com passo firme. O real camareiro e o médico o seguiram,
cada um levando um castiçal aceso.
O porteiro, que tinha a seu cargo as
chaves, já estava deitado. Baumgarten foi acordá-lo e, da parte do rei,
ordenou-lhe que abrisse imediatamente as portas da sala dos Estados. A
esta ordem inesperada, grande foi o sobressalto desse homem. Vestiu-se às
pressas e chegou ao rei com seu molho de chaves. Primeiro abriu a porta de uma
galeria que servia de antecâmara ou corredor à ala dos Estados. Entrou o
rei e... qual não foi o seu espanto quando viu as paredes completamente
cobertas de preto!
– Quem deu ordem para cobrir assim esta
sala? – perguntou ele em um tom colérico.
– Ninguém que eu saiba, senhor –
respondeu o porteiro, bastante confuso. – E a última vez que eu mandei varrer a
galeria, ela estava forrada, como sempre esteve, de madeira de carvalho... É
certo que não vem esta cobertura do guarda-roupas de Vossa Majestade.
E o rei, caminhando com passo rápido,
já havia chegado a mais de dois terços da galeria. De perto seguiam o conde e o
porteiro. Um pouco atrás, ia o médico Baumgarten, divido entre o temor de ficar
só e o de expor-se às consequências de uma aventura que se anunciava de assaz
estranho modo.
– Não vades mais longe, senhor! –
exclamou o porteiro. – Por minha alma, há lá dentro feitiçaria. A esta hora...
e depois da morte da rainha, vossa gentil consorte... dizem que ela anda
passeando por essa galeria... Deus nos projeta!
– Parai, senhor! – bradava o conde a
seu lado. – Não ouvistes vós o estranho ruído que parte da sala de seus
Estados? Quem sabe a que perigos se expõe Vossa Majestade.
– Senhor – dizia Baumgarten, a quem uma
rajada de vento acabava de apagar a luz –, permiti ao menos que eu vá buscar
uns vinte soldados de vossa guarda de elite.
– Entremos – disse o rei com voz firme,
parando diante da porta da grande sala. – E tu, porteiro, abre depressa esta
porta!
Deu-lhe, então, um pontapé, e o estrondo
repetido pelo eco das abóbadas retumbou na galeria como um tiro de canhão.
O porteiro tremia de tal sorte que a
chave batia sem que ele pudesse fazê-la entrar na fechadura.
– Um soldado velho que treme! – disse
Carlos, erguendo os ombros. – Vamos, conde, abri-nos esta porta.
– Senhor – respondeu o conde, recuando
um passo –, mande-me Vossa Majestade marchar para a boca de um canhão
dinamarquês ou alemão que, sem hesitar, obedecerei, mas é o inferno que vós
quereis que eu desafie.
O rei tirou a chave da mão do porteiro.
– Bem vejo – disse ele com tom de
desprezo –, que isto só a mim compete.
E antes de ter o seu séquito podido
impedir, tinha o rei aberto a grossa porta de carvalho e, entrando na grande
sala, pronunciou estas palavras:
– Com o auxílio de Deus!
Impelidos pela curiosidade mais forte
que o medo, e porventura envergonhados de desamparar seu rei, com eles entraram
seus três acólitos.
Iluminada por uma infinidade de tochas
estava a grande sala. Negra armação substituíra a antiga tapeçaria de figuras.
Ao longo das paredes, apareciam, postos por ordem, como de ordinário,
estandartes alemães, dinamarqueses ou moscovitas, troféus dos soldados de
Gustavo Adolfo[2]. No meio se distinguiam
bandeiras suecas cobertas de crepes fúnebres.
Cobria os bancos uma assembleia imensa.
Estavam sentadas, cada uma em seu lugar, as quatro ordens do Estado[3].
Estavam todos vestidos de preto e esta multidão de faces humanas, que parecia
luminosa sobre um fundo sombrio, deslumbrava os olhos de tal sorte que, das
quatro testemunhas dessa cena extraordinária, nenhuma pôde achar nestas gentes
uma figura conhecida. Assim, defronte de um público numeroso, não vê o
ator mais que uma confusa massa, onde nenhum indivíduo os seus olhos podem
distinguir.
Sobre o elevado trono de onde o rei
tinha o costume de falar à assembleia, viram eles um cadáver ensanguentado,
revestido das insígnias da realeza. À sua direita, em pé com a coroa na cabeça,
um menino tinha na mão um cetro. À sua esquerda, apoiava-se ao trono um
homem idoso, ou, antes, um fantasma. Revestido estava ele de manto de cerimônia
que traziam os antigos administradores da Suécia, antes de Wasa[4]
haver dela feito um reino. Defronte do trono e diante de uma banca coberta de
grandes in-fólios e pergaminhos, estavam sentadas muitas personagens de
aspectos grave e austero, revestidas de longas togas pretas, e que pareciam ser
juízes. Entre o trono e sala havia um cepo, coberto de preto crepe, e um
machado pousado ao pé.
Ninguém nessa sobre-humana assembleia
deu ares de notar a presença de Carlos e das três pessoas que o acompanhavam. À
entrada, primeiro não ouviram senão um confuso murmúrio, no meio do qual não
podia o ouvido perceber sons articulados. Depois, o mais velho dos juízes, que
parecia exercer as funções de presidente da corte, levantou-se e três vezes
bateu com a mão em um in-fólio aberto diante de si. Por uma porta oposta à que
Carlos XI acabava de abrir, entraram na sala alguns mancebos com as mãos presas
atrás das costas. Marchavam com a cabeça levantada e o olhar seguro. Após ele,
um homem robusto, vestido de um roupão escuro, pegava nas pontas das cordas que
lhes ligavam as mãos. O primeiro que marchava, e que parecia ser o mais
importante dos prisioneiros, parou na sala diante do cepo e olhou para ele com
soberbo desdém. Ao mesmo tempo, com um movimento o cadáver pareceu
tremer, e da sua ferida correu sangue fresco e vermelho. O jovem ajoelhou-se
e estendeu a cabeça. O machado brilhou no ar e caiu logo com
estrondo. Um rio de sangue jorrou até sobre o estrado, e se confundiu com
o do cadáver, e a cabeça, saltando muitas vezes sobre o enrubescido pavimento,
rolou até os pés de Carlos e os tingiu de sangue.
O rei permanecera mudo até este momento
de espanto. Mas a este espetáculo sua língua se desprendeu e, dando alguns
passos para o estrado, dirigindo-se à figura revestida de manto de
administrador, pronunciou bruscamente a bem conhecida fórmula:
– Se és de Deus, fala! Se és do
Outro, deixa-nos em paz!
Lentamente, e com um tom solene, lhe
respondeu o fantasma:
– Carlos rei! Este sangue não
correrá no teu reinado... (aqui se tornou menos distinta a voz), mas cinco
reinados depois. Ai, ai, ai do sangue de Wasa!
Então começaram a se tornar menos
claros e já não pareciam senão sombras coloridas. Logo depois desapareceram
totalmente as formas das numerosas personagens desta maravilhosa assembleia.
Apagaram-se as fantásticas luzes e as de Carlos e sua comitiva aclaravam apenas
as velhas tapeçarias, agitadas pelo vento. Ainda se ouviu um sonido muito
melodioso, que umas das testemunhas comparou ao ruído das folhas, e outra ao
som dado por corda de harpa, enfraquecendo ao momento em que se afina o
instrumento. Todos concordaram em julgar que a aparição durara perto de dez
minutos.
Os panos pretos, a cabeça cortada, as
ondas de sangue que tingiam o assoalho, tudo havia desaparecido com os
fantasmas. Somente a chinela de Carlos conservou uma mancha vermelha, que
por si só seria suficiente para lhe recordar as cenas dessa noite, se muito bem
gravadas na memória não tivessem sido elas.
Tendo regressado ao seu gabinete, fez o
rei escrever o relatório de tudo o que tinha visto, fê-lo assinar por seus companheiros,
e o assinou ele mesmo.
Quaisquer precauções que se tomassem
para esconder ao público o conteúdo dessa peça, não deixou ela de ser logo
conhecida, mesmo em vida de Carlos XI. Ainda existe e, até o presente,
ninguém se tem lembrado de suscitar dúvidas sobre a sua autenticidade. Eis o
notável fim dela:
“E se o que se acaba de referir – diz o
rei – não é a exata verdade, renuncio a toda esperança de melhor vida, a qual
posso ter merecido por algumas boas ações, sobretudo por meu zelo em trabalhar
na felicidade de meu povo e em manter os interesses da religião de meus avós.”
Agora, se nos lembramos da morte de
Gustavo III, e da sentença de Ankarstroem[5],
seu assassino, achar-se-á mais de uma correlação entre este acontecimento e as circunstâncias
dessa singular profecia.
O jovem decapitado em presença dos
estados pode ser designado Ankarstroem.
O cadáver coroado, Gustavo III.
O menino, seu filho e sucessor Gustavo IV
Adolfo.
O velho, enfim, o duque de Sudermanie,
tio de Gustavo IV, que foi regente do reino, e afinal rei, depois da deposição
de seu sobrinho.
Conto publicado originalmente, sem menção ao autor e ao tradutor,
no jornal carioca “O Brasil”, edição de 14 de novembro de 1840.
Atualizamos a ortografia e fizemos breves adaptações textuais.
[1] Inquérito sumário em que são reduzidas a termo as
declarações das testemunhas de um fato relevante (N. do E.)
[5] Jacob Johan
Anckarström (1762 – 1792), nobre e militar sueco, assassino do rei Gustavo III
da Suécia (1746 – 1792), foi executado em 27 de abril de 1792, por crime de
regicídio. O atentado ao rei aconteceu num baile de máscara, em
Estocolmo, na noite de 16 de março de 1792. (N. do E.)
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