DELÍRIO ÍGNEO - Conto de Terror - Paulo Soriano
DELÍRIO ÍGNEO
Paulo Soriano
Para Henry Evaristo.
Do alto da esplanada do paço do arcebispado, de
onde podia divisar a ampla praça das execuções, agora despovoada, o frade
Heinrich Kramer escutava, com o peito apertado, o silêncio deprimente que se
seguira ao espetáculo da imolação. E respirava o ar impuro, infecto, impregnado
de fumaça humana.
Àquela hora, não mais se viam as chamas escarlates,
que vorazmente percorriam as achas de madeiras, e se elevavam ao poste de
suplício para consumir, vagarosamente, as carnes impuras da condenada, atada à
trave, em corpo e alma, por pregos e arames vigorosos. A negra fumaça, de odor
adocicado pela carne calcinada, não mais se erigia em uma coluna convulsa e
espiralada, antes de atirar-se ao ar noturno, e espraiar-se sobre o céu de
Mainz como uma bruma escura e fuliginosa.
Não, a imolada não gritava mais, lacerada pela
fornalha que cuspia grossos rolos de fumo negro. E nem mais se exasperava a
turba inclemente, que assistia à execução como se imersa num delírio doce, num
transe frenético e narcótico.
Após a execução, um quê de remorso embaçava aqueles
corações empedernidos, substituindo o prazer embriagante, haurido do sofrimento
alheio, por uma sensação de desconforto, como o mal-estar e a depressão que
advêm após a ingestão de substâncias entorpecentes, oriundas das Índias.
O frade Kramer também
padecia dessa sensação, dessa inquietação opressora que se depositava em sua
alma como a fuligem dos mártires da Inquisição. Mas, no seu caso, havia particularidades.
É que o erudito inquisidor, o dominicano culto e inflexível, embora cuidadoso
na análise das provas, condenara a garota sem que houvesse, no seu espírito de
julgador, a certeza absoluta quanto à culpabilidade da acusada. Mas, era certo,
a maioria das provas pesava contra ela. E a confissão — a rainha das provas —
havia sido obtida sem que fosse necessário recorrer a expedientes de torturas
mais atrozes. Sim! A jovem confessou que, a um pensamento seu, do nada brotavam
as chamas infernais, que grandes estragos traziam à região, reduzindo a pó os
celeiros a duras penas provisionados pelos camponeses. Confessou, ainda, que as
chamas vinham, de fato, das regiões mais aterradoras do Inferno, onde Lúcifer,
o seu mestre poderoso, reinava absoluto. Finalmente, quando o ferro em brasa se
aproximou de seus encantadores olhos castanhos, declarou, aos gritos, que
criancinhas indefesas eram consumidas pelos fogos roubados a Satanás, tudo em
troca de prazeres lascivos com os íncubos indecentes.
Não, não poderia haver
dúvidas. Com um certo alívio n’alma, o frade Kramer se recolheu à minúscula
cela, dedicada aos clérigos humildes, onde, ainda angustiado, orou a Deus, em
busca de paz e esclarecimento. Enquanto desfiava suas preces ao Criador, com as
mãos soldadas ao velho terço ensebado, vinha a refrigerante certeza de que a
purificação fora necessária; assaltava-o, pois, a sensação de que o Todo
Poderoso aprovava as suas ações em defesa da humanidade, voltadas que eram
contra a disseminação dos malefícios insidiosos dos demônios; dominava-o,
enfim, a leveza d’alma que apascenta aqueles que se esmeram no cumprimento de
seu dever.
Mas, mal silenciaram os
lábios que se elevavam ao Senhor; mal se diluíra aquela desesperada sintonia
com o divino; mal retornara Frei Kramer à solidão amarga e desesperadora de sua
alma, e novas e terríveis excogitações cravaram-se na consciência do frade
inquisidor, tão terríveis e tão sufocantes que o homem se pôs a suar abundantemente. Um calor absurdo,
insuportável, invadiu a sua cela, cujas paredes adquiriam a coloração de ferro
em brasa.
Então, seres disformes
tomaram-no pelas mãos e conduziram-no por um corredor abobadado, erigido em
rochas incandescentes. Um átrio se abriu à frente. Uma legião de demônios
circulava e evoluía entre as labaredas abissais, olhando para ele com sorrisos
ferozes e zombeteiros. Rios caudalosos de lava borbulham. Vapores sulfurosos
emanavam das rochas candentes. E uma luminescência rubra, que brotava dos
rochedos ferventes, atirava para todos os lados clarões de brasa, perpassando a
atmosfera que fervia e se esvaía em seu próprio delírio, ao som de músicas
profanas e excêntricas danças macabras.
Foi aí que o frade Kramer
percebeu que os demônios, com seus bailados animalescos e sorrisos de escárnio,
vinham ao seu encontro. Heinrich Kramer retrocedeu. Olhou para trás, onde
deveria estar a abertura do corredor fulgurante. Mas, às suas costas, outros
seres infernais, ainda mais terríveis, evoluíam ao som da música profana e
impediam a sua fuga.
Agarraram-no com mãos
causticantes e o ataram a um trono de ferro, perpassado por lâminas
pontiagudas. Sim, ali estava, sob tortura, o frei Heinrich Kramer, o homem
escolhido, em 9 de dezembro do Ano da Encarnação de Nosso Senhor de 1484, para
protetor da humanidade, por decreto de Inocêncio VIII!
A mais abominável daquelas
criaturas, a que tinha poços abismais à guisa de olhos, onde cintilavam
pequenas línguas chamejantes, trazia nas mãos um exemplar do Malleus Maleficarum e, num idioma absurdo, somente dominado por seres
incriados, como anjos e demônios — um misto de latim, grego e sânscrito, mas
com inflexões absurdamente aramaicas —, punha-se a acusar o frade franciscano,
com os dedos em riste saindo, como víboras, dos paramentos abjetos, semelhantes
àqueles majestosamente ostentados pelos inquisidores.
Um concílio de demônios
desempenhava a função de jurado e todos aqueles entes hediondos assentiam e
murmuravam horrorizados, numa farsa excêntrica e ignóbil, a cada acusação mais
veemente, que sobressaía sobre as demais expressões injuriosas.
Veio, então — em sequência
um ritual de tortura desnecessária, que fez o padre contorcer-se de pavor,
tremer e urrar — o tétrico veredicto, pronunciado pelo mais horrendo dos
demônios, o dos olhos sem fim. Àquela altura, o demônio retornava calma e
magnanimamente às profundezas de onde viera, satisfeito com o dever cumprido, e
sem uma sombra de remorso a anuviar suas faces medonhas. Ia de mãos dadas com a
vítima, a pobre moça que, sob a ordem de Heinrich Kramer, ardera, naquela mesma
noite, sob os céus impiedosos de Mainz. A moça ainda olhou para trás,
desvencilhou-se do terrível demônio, e ensaiou, suntuosamente, para o frade
Kramer, um gesto obsceno, urdido com ambas as mãos — a palma de uma descendo
sobre o punho semisserrado da outra —, e lhe lançou um sensual sorriso de
galhofa, antes de mergulhar definitivamente nas labaredas infernais, onde
Satanás, em festa, a esperava.
Prenderam, afinal, o
sacerdote a um poste ígneo, cuja consistência era a de uma enorme língua de fogo,
ereta e palpável. Então vieram as múltiplas chamas, que engolfaram o frade
Kramer e fizeram-no arder como uma pira gigantesca.
Sim, o frade Kramer estava
em chamas. As bolhas na pele inflavam e explodiam, aspergindo, na atmosfera
fumegante, os humores corpóreos, que eram imediatamente absorvidos pelas
chamas. A derme rugosa e corrupta descolava-se do corpo, escorrendo para o
chão, em postas flácidas e deslizantes, como se não mais se ajustasse à
estrutura humana em que, até então, tão bem se amoldava. Mesmo assim — e uma
vez liberto do poste ígneo —, o frade Kramer, convolado em carne viva,
infiltrou-se pelo corredor abobadado, deixando atrás de si uma nuvem de fumaça
negra, que escapulia do seu corpo como uma sombra em movimento e se projetava
contra os espectros ruivos dos demônios ensandecidos. Atirou-se ao catre e
pôs-se a debater em seu leito simples de padre dominicano, consumido pelas
chamas e pela dor indizível.
No dia seguinte, não
haveria julgamento. O arcebispo de Meinz viu-se na contingência de convocar o
frade James Sprenger para reconduzir os trabalhos do Santo Ofício. Isto porque,
quando as vésperas já envelheciam, e, em comitiva, os demais clérigos buscaram
o frade Kramer, em seu catre, para a audiência de inquirição, encontraram,
sobre o leito, a figura grotesca de um homem calcinado, dobrado em si mesmo,
reduzido a cinza por chamas ardentes e invisíveis. Sim! O hábito do frade
Kramer permanecia intacto. E íntegros estavam os lençóis nos quais se
envolvera, ao adormecer. Não havia sinais de fontes externas de calor e nem o
fogo se alastrara naquele antro infeliz. Apenas uma sombra baça, de fuligem
gordurosa, e que evolara das carnes em chamas, desenhara-se no teto da cela,
reproduzindo fielmente o corpo desarticulado e a fisionomia desesperada do
inquisidor, enquanto ele morria. Sim, congelada no tempo, até hoje se pode
contemplar, mas não sem horror, naquele teto ancestral, a estampa dos agônicos
estertores do padre culto e pio, de cujas mãos saíram o Malleus Maleficarum. Mas o frade, até hoje lembrado por sua
fidelidade à causa da Igreja, ardera até a completa combustão, como e as chamas
viessem de dentro de seu organismo...ou mesmo do inferno flamejante que
devastara a sua pobre consciência!
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