DISSIMULAÇÃO - Conto de Terror - Joaquim de Castro
DISSIMULAÇÃO
Joaquim
de Castro
Eu
também tenho a minha Milha Verde. O corredor da morte que abrirá passagem para
o meu último e desolado desfile. Mas, para mim, no fim da linha não haverá
cadeira elétrica. Ou câmara de gás. A execução será presta e eficiente,
conforme ditam as leis inflexíveis deste país. Ganharei uma bala na nuca, que
descreverá uma trajetória ascendente e rebentará o meu crânio, bem mais acima
dos meus olhos, justamente no local onde os meus cabelos começam a minguar.
Aguardo
a minha execução com a consciência tranquila. Sou acusado de um duplo
homicídio. Segundo consta da sentença, eu fui considerado culpado pela morte de
minha mulher e de seu amante. Também corre um processo por desvio de uma
vultosa quantia. Mas, quanto a este, sei que eu não estarei vivo para conhecer
da sentença.
Durante
o processo, aleguei inocência, em descompasso com o meu advogado, que insistia
na tese da insanidade. Mas as provas contra mim eram conclusivas. Consta que
filmei os meus próprios crimes hediondos. E que, num ato de audácia e
insolência, encaminhei à polícia a prova crucial de minha culpabilidade,
acompanhada de uma carta desafiadora, escrita de punho próprio.
O
primeiro dos filmes não cuida, rigorosamente, de um homicídio. Ele descreve uma
instigação ao suicídio, mediante ameaça. O que dá no mesmo. Nele, há um homem
em pé, portando um revólver, cujo cano está encostado à nuca de outro homem. O
segundo homem — que, na perspectiva acintosa da câmera, se antecipa ao primeiro
— está amarrado a uma cadeira. As mãos estão atadas pelos punhos e descansam no
colo. Uma outra corda cinge, num amplexo apertado, os braços do homem ao
próprio peito e ao respaldo de madeira entalhada. Ele também traz um revólver
em uma das mãos, constrita de tal modo que somente o polegar e o indicador
estão completamente livres para se moverem em conformidade com os desígnios de
um cérebro igualmente constrito. A arma aponta para cima, tocando o queixo. Ela
se equilibra precariamente, mas o homem sentado se esforça em mantê-la na
posição correta. A sua vida depende disto. Então, após uns poucos segundos de
estática, e de um zumbido irritante no áudio, assoma uma imagem perfeita, clara
e evidente, de uma nitidez inefável. Com ela, inicia-se o ritual recorrente, que
faz o homem da cadeira engolir em seco e suar abundantemente antes do alívio
que lhe traz o clique seco do cão a martelar o aço inerme e receptivo. Começa,
pois, a roleta russa. O homem em pé — que, curiosamente, tem a minha fisionomia
— diz que há uma única bala no tambor de seis câmaras. Acrescenta que o
revólver talvez não dispare e que, se o “berro” não fumegar em seis tentativas,
o homem estará livre para seguir o seu caminho de empresário rico e sedutor. Só
o terror já é bastante à vingança. E empenha a sua palavra com firmeza. E a sua
atitude, grave e solene, parece absolutamente sincera. Toma a arma da mão do
homem, gira o tambor, e a repõe, ajustando-lhe o cano do revólver sob o
maxilar. Diz claramente que, se o homem não disparar em cinco segundos, será
executado. Este processo se repetiu cinco vezes. Na sexta, houve um estampido.
O projétil deflagrou, dilacerando a carne e esfacelando os ossos. O homem em pé
esquivou-se, mas uma golfada de sangue e de lascas de ossos o atingiu em cheio.
Num dos cantos de seus lábios pendia um punhado de massa encefálica, que o
homem em pé limpou com as costas do antebraço, como se removesse resquícios de
um catarro pingente e inoportuno.
No
segundo filme, vê-se uma mulher nua em uma banheira. Está amordaçada, tem os
joelhos flexionados e os punhos amarrados aos tornozelos. A muito custo, ela
consegue flutuar. Respirar é quase impossível e é pungente a necessidade de
sugar o que quer que seja pela pontinha do nariz; mas a criatura consegue, num
esforço desalmado, manter as narinas — que se dilatam sofregamente a cada trago
de brisa — acima da superfície molhada. Mas o homem (que tem a minha fisionomia)
a empurra para baixo, com as vigorosas mãos espalmadas. E contempla,
calmamente, o desespero com que a mulher se empenha em emergir, abanando a
cabeça com a ondulação de um golfinho, procurando quase que inutilmente por um
punhado de ar. O filme é longo. Este vai-e-vem ultrapassou um quarto de hora. O
algoz, por fim, se cansa da brincadeira. Entediado, se retira e retorna
empunhado um ferro elétrico. Cuida para que a mulher não se afogue de vez.
Ajusta o close. Faz questão de exibir à vítima o seu novo brinquedinho de
tortura. A mulher contempla, alarmada, com os olhos vermelhos e enevoados, bem
abertos, sob o espelho d’água, o reluzente objeto de metal. Ela sabe que se
encontra à beira do próprio e definitivo naufrágio. Mas sabe, também, que não
morrerá assim, afogada. A imagem da eletrocussão transborda nos seus olhos
quando o homem liga o ferro à tomada. E ela se põe a tremer, antecipando o
fluxo frenético da descarga elétrica. Ele se aproxima, com o braço esticado e o
ferro elétrico equilibrando-se precariamente nas pontas dos dedos frouxos.
Ameaça, várias vezes, mergulhá-lo. Brinca. Finge que o ferro escapole
subitamente de sua mão. Parece sentir um prazer indizível em alçá-lo em pleno
ar, a poucos centímetros da água, quando o impacto parecia certo e
irreversível. “Opa, foi quase!” — Ele diz. Sim, ele repete a brincadeira, cada
vez mais próximo da superfície. Repete outra e outra vez. Finalmente, faz o
ferro afundar. Se pudesse, a mulher gritaria. Há um curto-circuito e o corpo da
infeliz criatura começa a entrar em convulsão. O homem — que tem a minha
fisionomia — se retira calmamente, enquanto a câmera captura as imagens de um corpo
se debatendo até a morte em uma banheira fumegante. Uma imagem realmente
horrível de se ver. Eu a vi várias vezes durante o julgamento e digo que é
preciso ter estômago para suportá-la. E olhe que eu, deveras, nunca deixei de
tê-lo.
Os
vídeos foram periciados. Não havia fraudes. Eram genuínos. E um exame
grafológico concluiu, também, que a carta insolente, dirigida aos policiais,
fora escrita pelas minhas mãos. Na carta, eu os desafiava a capturar-me.
Condenação
certa e irreversível. Inapelável. Irremissível.
Mas
não sou culpado por esses crimes. Ao menos creio que não seja. Trata-se — espero
— de uma armadilha, uma trama bem urdida por Sahkar, o demônio das múltiplas
faces. Confesso que planejei a morte de ambos. Mas juro, por fim, embora se
alternem a veemência e a hesitação, que sou inocente quanto à morte merecida da
puta e do rufião. Até ontem eu pensava diferente, tinha a certeza absoluta de
minha inocência. Agora, porém, depois que assisti a um terceiro vídeo, já não
sei. Não, eu não juro mais!
Já
que esta é uma confissão, é necessário que eu diga que, de fato, matei outro
homem, no dia anterior à morte de minha mulher e de seu cúmplice. Não pensem,
os que lerem esta carta, que os demônios se materializam. Não é de todo
verdadeiro o que reza a lenda. Sahkar, o demônio das mil faces, não usurpou o
trono a Salomão, passando-se por ele. Foi o próprio rei que, embriagado pela
força cogente do oculto e da idolatria, invocou o demônio seu benefício
próprio. Sacrificou um escravo que, reanimado, assumiu, por arte de Sahkar, as
feições do grande rei hebreu. E era isso mesmo que o filho de Davi queria, em
nome da própria segurança. Em seu lugar, o seu duplo reinou por um mês inteiro,
enquanto verdadeiro Salomão refugiava-se das adagas cruciantes de seus detestáveis
inimigos.
Foi
Le Flam, o sacerdote de Yog-Sothoth, quem sugeriu a minha própria duplicação. O
ritual foi realizado a contento, ministrado pelo mago ancião. Não foi difícil
raptar e imolar um homem velho e indigente. O homem foi amordaçado e preso a um
círculo giratório, juntamente comigo. Eu havia ingerido uma poção inebriante e
logo adormeci. Quando despertei, a minha duplicação estava realizada. Vi, no
mendigo, que agora ressonava tranquilamente, uma réplica exata de mim mesmo.
Disse-me
Le Flam, o Grande Mago Imortal:
—
Vá para casa. Procure descansar. Depois
de manhã, tudo estará consumado. O seu duplo será, desde já, convenientemente
instruído. Deixe-o aos meus cuidados e tudo sairá a contento. O que foi
planejado precisa de uns ajustes. Mas um sacerdote de Yog-Shototh sempre sabe o
que faz, porque o que há de porvir jamais lhe será um segredo indevassável.
Segundo
os meus planos, eu viajaria à capital e executaria, em dois dias, um concerto
para uma numerosa plateia. Seria uma quinta-feira. Naquele mesmo instante, o
meu duplo daria cabo de minha mulher e de seu sócio de alcova. Sim, eles teriam
a vívida impressão de que era eu quem os matava! Saberiam que era eu — eu mesmo — que me vingava. A minha vindita seria
perfeita. Se, por algum motivo, o meu duplo fosse visto, ou mesmo capturado, eu
teria um álibi perfeito. Como ninguém tem o dom da ubiquidade, quem os matou
seria — por uma dessas irresistíveis coincidências do destino — alguém muito
assemelhado a mim. Nada mais. Jean Valjean que o diga.
Naquela
noite, despenquei sobre o sofá. Tive sonhos terríveis. Creio que cheguei a
delirar. Eu vi Sahkar assumir a minha face, mergulhar a espada de bronze, que o
demônio brandia ameaçadoramente no ar, no próprio peito — e que, a rigor, era o
meu peito — , e ganir como uma besta insensata e feroz. Vi que a sua face — a
minha face — se diluía, corroída pelo suor que brotava de sua fronte, chiando e
fumarando, como se mergulhada na nuvem ácida que manava dos vapores sulfurosos
de seu sangue demoníaco. Então vi a mim mesmo, sempre mutante, em acelerado
estado de decomposição. Primeiro, a minha face se expandiu, inflou-se como se
soprada por dentro, assumindo uma coloração cor-de-terra escura e pastosa.
Inúmeras pústulas, frágeis e delgadas, intumesciam-se em minha face — posto que
eram bolhas repletas de humores negros e putrefeitos — , que se desandaram a
espocar, escavando o meu rosto massacrado, repuxando os meus lábios pênseis,
fazendo os meus olhos aquosos aflorarem sob o rastro purpúreo de minhas pálpebras
carcomidas. Logo os meus dentes estavam expostos e a minha língua tornava-se
túrgida e negra. Este era o prefácio da rápida degeneração que se seguiu.
Porque pude ver, naquele átimo de segundo, a carne lacerada escorregar como
cera. Meus olhos derreteram. O meu nariz afundou. Os meus lábios fundiram-se ao
crânio descarnado como chumbo derretido. Restou apenas o sorriso macabro e
indelével de minha própria caveira, zombeteira, amarga e cruel.
Quando
despertei, estava muito mal. Sentia um cheiro de matéria orgânica decomposta no
ar. Eram cinco horas da tarde, pouco mais ou menos. Não da quarta, como
pensava, mas da quinta-feira. O mesmo dia em que eu realizaria o concerto na
capital, enquanto o meu duplo cuidaria de eliminar os meus detratores. Sentia náuseas
e febre. Ondas constantes de calafrio iam e vinham. Ali mesmo, deixei-me ficar,
até que bateram à porta. Era a polícia. Até hoje estou preso pelo assassinato
de um homem a quem odiava e de uma mulher a quem abominava. Se eu soubesse que
este seria o meu destino, tê-los-ia matado pessoalmente. Com as cordas de meu
velho violino italiano.
Amanhã
deverei ser executado com um tiro na nuca. Tudo bem. Hoje, pela manhã, tive a
oportunidade de finalmente assistir a um vídeo, que me fora enviado do exterior
por um sujeito que se dizia chamar, ironicamente, William Wilson. A duras
penas, o defensor público convenceu as autoridades acerca de meu “inalienável
direito” de conhecer o teor de minhas correspondências. Muito bom, este
defensor. Não tenho mais advogado particular: o meu duplo, além de desviar o
dinheiro do meu rival, zerou a minha conta bancária. Mas o meu defensor saiu-se
melhor que aquele advogado avarento e pomposo. Muito melhor, eu diria.
É
um vídeo curto. Sou, mais uma vez, o protagonista. Ao longo de minha vida,
tenho estudado esta arte chamada dissimulação. Nisso, mais que na música, sou
um expert.
Naquela
fita, eu sou extraordinariamente convincente. Vejo-me, então, na telinha do notebook do defensor público. Uso um
terno escuro, impecável. Estou numa praça. Ouço vozes ao fundo, um burburinho
educado, que se eleva como uma nuvem prazerosa, em uma língua que não sei
discernir. E escuto, admirado, a mesma voz macia, persuasiva — a minha voz — ,
com aquela inflexão neutra e sincera. Algo que aperfeiçoei por todos estes
longos anos de engodos e falcatruas.
—
Coragem, homem. Todo homem morre um dia —
dizia eu a mim mesmo, a partir da tela do computador. — Se bem que eu não saiba
se você é, exatamente, um homem. Ouça e não se exaspere. Calma. Graças a uma
mudança de rumos, sugerida pelo gênio Le Flam, as coisas se ajustaram, antes
que dessem errado. A nossa memória, que é a mesma, se bifurca a partir da
duplicação. Enquanto você dormia — e creio que não foram nada bons os seus
sonhos — , eliminei a vagabunda e o amiguinho dela. Agora estou forrado de
dinheiro, bem longe daí, e livre dessas pústulas lúbricas, infiéis e
miseráveis. Abomináveis, não? Sim, de fato abomináveis aquelas patéticas
figuras! Tiveram o que mereceram. Realizei a minha vindita e saí com lucro,
porque eu soube bem extorquir o filho da puta, antes que ele estourasse os próprios
miolos moles. Ainda sinto o gosto daquela gosma asquerosa, surpreendente
quente, em meus lábios. Você assistiu à roleta russa. Gostou? Creio que sim.
Veja bem, porque agora vem a grande revelação: eu sou o verdadeiro; você é o
outro. Eu sou o original; você é a cópia. Convença-se disso: você é a minha
réplica perfeita, e não o contrário. Ou você acredita que Le Flam não teria uma
solução adequada e conveniente para o meu duplo, depois que ele não mais fosse
necessário? Ora, a réplica deve ter uma destinação conveniente e, para esse
fim, nada melhor que uma execução. Amanhã eu estarei legalmente morto,
definitivamente sepultado, apodrecendo no âmago da terra. Não é uma maravilha?
Você teria de ser eliminado, para que eu pudesse, finalmente, gozar, sob uma
nova identidade, das delícias proporcionadas por Sahkar, o demônio das mil
faces e da dissimulação. Boa morte, amigo! Que Sahkar o acompanhe. Ah! Se me
apanharem? Ora, o que é isso, companheiro? Legalmente, eu fui executado. Não se
imola duas vezes um mesmo homem...
Juro
que o meu sorriso de mofa, que encerrou o vídeo com chave de ouro, não me
enfureceu nem um pouco. Eu estava absolutamente acostumado a ele, e o
utilizava, sempre, no momento adequado.
Agora,
aguardo serenamente a hora de ir para o patíbulo. Para a minha Milha Verde.
Serei eu mesmo eu? Serei o original? Sahkar, o demônio astuto e dissimulado, me
enganou? Tudo foi em vão, para o proveito do arguto Le Flam? Ou estaria eu — ou
minha réplica — falando a verdade? Se assim o for, o eu verdadeiro triunfou.
Confesso que não sei. Conservo, contudo, a serenidade. Afinal, acredito que
matei um homem inocente. A minha sentença é — procuro desesperadamente crer
nisto — equívoca, embora, de certo modo, infinitamente justa. Se sou realmente
o duplo, se sou o outro, isto eu nunca saberei. É um segredo angustiante, mais
sofrível que a morte iminente, mas que a mim não me toca perquirir ou devassar.
E, em face de uma vida inteira de frustração, e de um grandioso fracasso final,
torço, sinceramente, para que a réplica seja deveras seja eu.
Nota
do autor: Segundo a lenda, Sahkar foi um demônio que
personificou o rei Salomão. “Quando Salomão se transferiu ao deserto para pagar
o pecado de ter criado a imagem idólatra do defunto pai de uma de suas concubinas,
Sahkar apareceu ante outra concubina sob a forma de Salomão. Tirou-lhe o anel
mágico do rei e assim subiu ao poder em seu reino. Quarenta dias mais tarde
Sahkar fugiu e lançou o anel ao mar. Então Salomão resgatou o anel do ventre de
um peixe. Agarrou Sahkar, fez com que se dobrasse sob o peso de uma pedra e o
jogou no mar.” — Arthur Cotterell,
“Mitos e Lendas”, vol II. Ediciones Del Prado, Madrid. Tradução: Horácio
Gonzáles Trejo.
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