MANUSCRITO ENCONTRADO NUM CASEBRE ABANDONADO - Conto de Terror - Rogério Silvério de Farias
MANUSCRITO
ENCONTRADO NUM CASEBRE ABANDONADO
Rogério Silvério de Farias
Enquanto
escrevo nervosamente estas linhas, sinto que não sei precisar exatamente por
quanto tempo fiquei dirigindo feito um louco pela estrada, antes de refugiar-me
neste velho casebre abandonado, no sopé de uma das mais sinistras montanhas de
Itiúba.
Muitas
mentes tacanhas não acreditarão em nada do que eu aqui vou dizer, mas isto
pouco importa pois sempre haverá alguém de mente aberta e esclarecida, capaz de
reconhecer que nossa consciência espiritual ainda é muito ínfima diante dos
mistérios assustadores e negros do Cosmo e da vida.
Minha
cabeça ainda está um pouco zonza, ainda estou um pouco confuso, estou meio
aturdido mas...consigo lembrar-me dos momentos aterrorizantes e fantásticos
pelos quais passei.
Neste
momento começo a beliscar-me, para ter a certeza de que não estou dentro de um
pesadelo horrendo, prisioneiro de um sonho sinistro e aflitivo que me causa uma
opressão, arrastando-me em grilhões de uma sensação de angústia...que me
tortura de medo, retalhando-me a mente e precipitando-a nos torvelinhos
abissais e pandemoníacos de recordações tétricas que me levarão, certamente, à
insanidade rematada dentro em breve.
Oh,
meu Deus! Eu lembro! Eu lembro de tudo, agora!...Minutos atrás eu dirigia; e
sobre mim, raios e relâmpagos coriscavam pelo céu enegrecido, como se fossem
demônios lépidos foragidos do inferno, traçando no céu blasfêmias elétricas e
sinistras, compondo poemas de fogo e luz pestilenta no poema escuro que é a
noite.
A
lama na estrada de chão batido era intensa, formava pequenos atoleiros, por
isso tive que parar o carro e entrar na cabana antiga. Assim escaparia da
intempérie e do horror. Ocultando-me neste casebre imundo e coberto de teias de
aranhas e ratazanas detestáveis, haveria, sim, uma chance de escapar.
Este
casebre está numa região muito estranha e afastada, um pedaço quase que
desconhecido desta cidade antiga, próxima às Serras, um lugar vez por outra
coberto de névoas. Fora habitada num passado remoto por estranhos índios sobre
os quais pouco se sabe, disseram-me, certa vez, alguns moradores mais antigos.
Outros ainda levantavam a tese de que houvera por ali uma comunidade exótica e
nômade, semelhante a ciganos e dados a magia, e que vieram do distante Sul,
terra do qual, aliás, sou oriundo.
Do
porta-luvas do carro eu retirara o bloco de notas e a caneta, com os quais,
agora, sob a luz da lanterna, escrevo estas linhas, relatando os fatos
enlouquecedores que levaram ao ápice tétrico do pânico. Antes de morrer, levado
pelas garras esqueléticas e aduncas daquela coisa...aquela coisa horrenda e
sarcástica que não ouso dizer o nome. Pretendo esconder este manuscrito em
alguma parte deste casebre, e assim, quem sabe, num futuro não muito distante,
alguém o encontre e leia toda a verdade que aqui escrevo, como legado negro do
meu terror.
Sei
que muitos me chamarão de louco, mas isto pouco importa, afinal quem ousa
atravessar as fronteiras da loucura acaba vendo coisas proibidas que uma pessoa
dita normal não veria, salvo em raríssimas ocasiões.
Chamo-me
Guto, Guto Russel, e dispus-me a vir até Itiúba a pedido de meu amigo, Ulisses
Azeredo, um gênio da informática e da eletrônica, um excêntrico por natureza.
Comigo eu trouxera do Sul, a pedido de Azeredo, um outro sujeito, não menos
estranho e excêntrico, um certo professor Roger Silver, antropólogo de renome e
também especialista em informática e eletrônica, além de estudioso de fenômenos
parapsicológicos, escritor e pesquisador de obras de ciências ocultas, perito
em transcomunicação instrumental e necromancia avançada.
Confesso
que desde o primeiro instante que o vi, não gostei do enigmático Professor
Roger Silver. Notei uma certa empáfia e uma certa malevolência e ambição
desmedida em seu olhar de demônio; sim, seus olhos tinham um brilho misterioso
que eu compararia ao brilho das chamas nascidas do conúbio ilícito de anjos
pérfidos e demônios angustiados na danação eterna. Todavia, tive que atender ao
pedido de meu amigo Ulisses Azeredo, pois ele me contara, por telefone, que
estavam num projeto secreto que poderia render fama, prestígio e fortuna. Eu,
por meu turno, precisava quitar algumas dívidas e a hipoteca de minha casa em
Curitiba, então aceitei o convite de trabalho, como motorista de ambos.
O
professor Roger Silver era um devorador contumaz de tomos e compêndios raros e
obscenos de ocultismo e magia negra, um buscador ávido e enfermiço do insólito
e do sobrenatural, e seu vasto e inaudito conhecimento fora, em grande parte,
adquirido de viagens aos confins de terras exóticas como Índia, Tibete, Hungria
e Haiti. Era sua intenção aliar o conhecimento mágico ao conhecimento
tecnológico, e assim levantar o véu que separa o mundo visível do invisível,
abrindo portais interdimensionais.
E
apesar de ser amigo de longa data de Ulisses Azeredo, temi por sua sorte quando
soube que se envolvera em pesquisas com aquele pálido e magérrimo professor que
se vestia todo de preto e tinha uma má reputação no mundo acadêmico, sendo
quase expulso da Universidade onde lecionava, segundo pesquisas que fiz na
Internet.
Foi
com espanto desmedido que lhes ajudei a levar em minha caminhonete toda aquela
estranha tralha ou parafernália até uma das montanhas das estranhas e
majestosas Serras de Itiúba.
A
parafernália a que me refiro era, segundo o professor Silver, o incrível
Necrotron, um poderoso e fantástico aparelho eletrônico que revolucionaria a
Ciência e a Religião, possibilitando o contato imediato dos humanos com regiões
e habitantes de esferas interdimensionais proibidas, ou seja, contato com o
próprio além-túmulo.
O
Necrotron era uma mistura esdrúxula de rádio portátil, computador, ciclotron e
canhão de prótons, colocado sobre um tripé que absorvia energia negativa da
terra ou das pedras.
Levei
a dupla de excêntricos pesquisadores, com suas teorias nebulosas, inauditas e
bizarras que certamente seriam rechaçadas com sarcasmo pela nata dogmática e
ortodoxa da comunidade cientifica, até o sopé da montanha, na caminhonete,
depois saltamos juntos e subimos, a pé, por um caminho estreito. Levávamos
mochilas e o próprio Necrotron, que foi desmontado em partes, para só ser
remontado lá no alto, no cimo enevoado da montanha.
A
subida foi íngreme, mas por fim, perto do anoitecer, chegamos numa espécie de
pequeno planalto no topo da montanha, e pudemos notar que as névoas haviam se
dissipado e agora ventava forte. Notei a grande quantidade de pequenas e
estranhas flores esverdeadas que lembravam orquídeas entre algumas rochas de
aspecto bizarro.
Ofegante,
Ulisses falou:
— Ei-lo, amigos, bem-vindos ao Jardim do Sussurro do
Diabo!
O
vento soprava estranhamente, e Ulisses explicou a razão de ter colocado tal
alcunha assustadora naquele lugar, no alto da montanha. O vento passava por
entre as formações rochosas que lembravam aquelas pedras de Stonehenge, de
forma que o som lembrava um sussurro sinistro, e as pequenas flores bizarras
traziam um quê de vergel do inferno ao lugar, daí o nome: Jardim do Sussurro do
Diabo!
Em
seu capote preto, o professor Roger Silver falou, eloqüente, grave e
misterioso:
— Perfeito, Ulisses!... Aqui é o
local exato onde forças telúricas e místicas, acumuladas desde eras imemoriais,
aguardam a sua ativação negativa, como chaves hipergeométricas que abrirão o
portal que separa os mundos. O Necrotron foi por nós construído conforme os
escritos proibidos da Atlântida, o continente perdido de uma era esquecida,
secretas fórmulas eletro-místicas que eu mesmo me encarreguei de roubar numa de
minhas viagens a um mosteiro do Tibete. Na verdade, dentro de instantes abriremos
a porta de um mundo que jaz aqui mesmo, interpenetrando-se com o nosso, na
quarta vertical, e de dentro desta estranha montanha segredos milenares serão
trazidos à tona, numa apoteose extraordinária de conhecimento oculto.
Claro
que Silver e Ulisses escolheram o lugar porque sabiam da lenda. Havia em Itiúba
uma antiga lenda que assustava criancinhas, servindo de base para contadores de
“causos”. Porém os dois sabiam também que por trás de lendas há sempre um quê
de verdade. Lembro que estremeci quando, na noite anterior, Ulisses me contara
sobre os relatos de caboclos e matutos da região, que diziam terem visto uma
estranha, macabra e grotesca criatura que descia a montanha em algumas noites
de lua cheia. Sim, eles falavam com os olhos arregalados sobre uma criatura
antropomórfica, esquelética, cadavérica que raptava crianças no meio da noite,
levando-as para o topo da montanha, e que nunca mais eram vistas. Houvera o
ataque dos céticos e zombeteiros de Itiúba, que colocaram uma alcunha na
assombração: Caveirinha Sombrio, mas não foi suficiente para acabar com o
mistério.
Se
era um morto-vivo trajado com um antigo terno preto e uma cartola mais antiga
ainda, ninguém poderia afirmar. O que se sabe é que de fato crianças passaram a
sumir, e em madrugadas muitas pessoas, na cama, diziam ter acordado com gritos
de meninos sendo arrastados a força para o cimo da montanha maldita. Sinto um
calafrio na espinha ao escrever sobre isto, agora, embora eu confesse que
sempre fora um grande cético e gozador do sobrenatural.
O
Necrotron foi montado rapidamente. Trabalhamos ligeiro. O vento aumentou, não
havia mais resquícios de névoa, agora. Enquanto isso, a noite trouxera sua
amante, a lua, que como uma meretriz de luxo do céu, iluminava-nos com sua
nudez de luz mortiça; e juntos, noite, céu, estrelas e lua fizeram uma orgia de
sombras malditas e assustadoras. Então, sob o luar azulado e débil, parecíamos
dementes num projeto espectral que causaria temores inimagináveis em qualquer
mente sã, sensata e temente a Deus.
O
Necrotron apontava para aquela laje que lembrava um altar ou a porta de entrada
de uma cripta. Era uma das muitas rochas com aspecto bem singular, coberta de
musgos fedorentos e podres, cheia de estranhos bolores verdes de um fedor
insuportável e que formavam desenhos abstratos e grotescos.
— Ulisses, acione o estabilizador multissequencial
e o gerador ultrapositrônico! – falou o professor Silver, entusiasmado, os
olhos arregalados de expectativa, cintilando como os de um lunático.
O
Necrotron começou a zumbir como um inseto eletrônico do inferno, depois lançou
ruídos similares a uma estática ensurdecedora, e por fim começou a vibrar por
inteiro, soando alto como uma turbina de energia nuclear, desprendendo de seu
bojo ondas eletromagnéticas de magnitudes desconhecidas.
No
pequeno microteclado acoplado ao Necrotron, Ulisses digitava febrilmente,
falando:
— Irei acionar o processador
secundário e o feixe de laser da geratriz vibracional eletro-eletrônica!
O
Necrotron começou a zunir alto, como um apito de um gigante louco ou como uma
turbina colossal, e a laje fedorenta em forma de altar começou a assumir uma
coloração esverdeada ao ser atingida pelo disparo do raio laser que liberava
magnetismo e vibração ao atingir o alvo; a luminescência esmeralda emitia um
ruído também, algo como um som emitido por um poderoso magneto.
— Senhores! — berrou o professor Roger Silver;
estava começando a enlouquecer de vez, eu sabia, e a luz verde iluminando seu
rosto dava-lhe realmente um ar fantástico e insano. – O que presenciarão aqui,
nesta noite, será o marco de uma nova era. A era da tecnologia aliada a magia
negra! Estamos prestes a levantar o véu ignoto dos grandes mistérios.
Conheceremos segredos arcaicos que separam os mortais dos imortais, os vivos
dos mortos, os humanos dos supra e infra-humanos, os sãos dos loucos!
Contemplem, pois, a abertura total do portal da quarta dimensão e os segredos
do céu e do inferno, aqui mesmo, na terra!
O firmamento havia
enegrecido, grandes nuvens pardacentas, como um enxame de sombras, cobriram a
lua e as estrelas, e agora raios, trovões e relâmpagos tinham tomado conta da
note, como que numa algazarra melódica de uma orquestra do inferno, e eu
estremeci de pavor quando um raio atingiu em cheio a pedra semelhante a um
altar, explodindo-a em mil pedaços. Tivemos que nos jogar ao chão, aos gritos,
instintivamente, para nos salvar dos fragmentos que zuniram como balas mortais,
ricocheteando nas demais rochas.
Quase
que instantaneamente, um outro raio espatifou o Necrotron, que explodiu
ruidosamente, incendiando completamente o sinistro aparelho.
Quando
a fumaça baixou, revelou-se aos nossos olhos uma estranha abertura na laje
estilhaçada.
O
professor Roger Silver e Ulisses logo se debruçaram sobre a abertura no solo
rochoso da montanha, iluminando as profundidades com a lanterna.
— Por Júpiter, professor! Há degraus
logo ali embaixo!... E um cheiro de mofo que penetra forte nos pulmões. É, de
fato, uma escada, e parece descer em espiral até as entranhas da terra!...
—...Ou do inferno, meu jovem! Ou do
inferno! – completou o professor Roger Silver, sombrio e enigmático, pondo-se a
descer.
— Você não vem conosco, Russel? — falou Ulisses, também começando a
descer.
— Receio que não, amigo. Acho melhor
ficar aqui em cima, no caso de algum problema. Estou com o telefone celular no
bolso, e vocês têm os seus. Se tiverem problema, me liguem lá de baixo.
Já
no primeiro degrau da escada, Silver falou:
— Russel, seu tolo! Perderás a
oportunidade de ver o que poucos conseguem em vida, sem enlouquecer. No
entanto, faça como lhe aprouver. Vamos descer, Ulisses!...Até breve, Guto
Russel...espero reencontrá-lo em breve!...ESPERO!
Vi
quando os dois sumiram nas trevas, e engoli em seco. Fiquei ali, durante meia
hora, o cérebro picado pela serpente cruel da ansiedade, sob a chuva que agora
desabava. Por fim a tempestade amainou e eu, preocupado, resolvi ligar para um
dos dois.
Tocou
por várias vezes, mas não atendeu. Então liguei para Silver. De imediato
atendeu.
— Sim...
— Silver, é você? O que diabos houve?...
O que está havendo aí?
— Nem imaginas, meu caro...é
fantástico, é dantesco, é horripilante, Russel... não imaginas o que
encontramos aqui...trata-se de um portento, creio eu...
— Maldito louco, fale de uma vez! E
Ulisses, o que foi feito dele?
— Morto, Russel...Ulisses está morto
— respondeu Silver, enquanto ao
fundo pude ouvir o som de ossos chocalhando e depois uma risada sardônica,
pueril, imbecil, num tom boçal. – Oh, agora estou vendo essa coisa
melhor!...Oh, santo Deus!...Russel, caía fora do Jardim do Sussurro do Diabo!
Fuja! Oh, é ele...a figura esquelética...é ele...uma caveira...a cartola, o
terno escuro...os antigos e matutos tinham razão, ELE existe...nós encontramos
o ... Fuja, Russel! TE ARRANCA DAÍ, SEU IMBECIL!...
— Silver, seu palhaço! Deve ser
alucinação, algum fungo alucinógeno, aí dentro...
— Não! Eu vi o horror, Russel...e ele é pútrido
e esquálido...chocalha os ossos e por vezes tem o andar trôpego... ele é como
rezam as lendas...ele é... o...o ...
Novamente
pude ouvir aquela risadinha diabólica, quase infantil, mas com uma virulência e
sarcasmo demoníacos. Estremeci, depois, ao ouvir o grito medonho do professor
Roger Silver. Depois, a ligação caiu.
Tentei
criar coragem para descer a escadaria além do buraco, mas não consegui. Tentei
ligar novamente, tanto para o telefone celular de Silver quanto para o de
Ulisses. Mas nenhum deles atendia.
Fiquei
sem saber o que fazer, até que o meu telefone celular tocou, quase me matando
do coração.
— Alô, é você, Silver?... Fale seu
maldito insano! — eu
disse.
Então
ouviu aquela voz medonha e sarcástica:
— Silver está morto, como o patético
Ulisses... Agora chegou sua vez, Russel!
Com
ira brotada do medo, lancei o telefone celular no buraco e escapei dali, aos
tropeções, descendo e caindo e rolando pela encosta da montanha, até chegar ao
carro e sair em disparada.
Agora
estou aqui, neste casebre, escrevendo tudo para que um dia alguém saiba o que
de fato aconteceu.
Estou
tremendo de medo, suando em bicas. Tranquei a porta do casebre com a tranca,
mas suponho que a madeira esteja apodrecida. Meu Deus, ouço passos secos lá
fora, está no alpendre, seja lá o que for. E veio para me pegar, ele,
aquilo...o dono daquela voz medonha...
Oh,
meu Deus! Vou parar de escrever e guardar o manuscrito...Acho que vou gritar
por socorro, embora saiba que será inútil...Está pressionando a porta... vai
arrombar...já posso ouvir a risota, sua estúpida, sardônica e assustadora
risadinha...vai entrar aqui dentro e...OH, SENHOR TODO-PODEROSO... ME SALVA DA
MORTE E DAS TREVAS DO INFERNO! ME SALVA DO CAVEIRINHA SOMBRIO!...
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