O CASTIGO DO MILHÃO - Conto Clássico Fantástico - Pierre Véron
O CASTIGO DO MILHÃO
Pierre
Véron
(1833
– 1900)
Ao
mais rico e ao mais pobre: a um, para que aprenda a ciência da riqueza; ao
outro, para que aprenda a ciência da pobreza.
I
Sentado
diante da sua modesta lareira, Daniel Raynal junta, com mão distraída, os
restos carbonizados de uma acha de lenha ainda bruxuleante e, todo entregue ao
seu trabalho, conserva os olhos fixos no vazio, o que denota uma profunda
preocupação.
Em
que pensa ele? O aspecto sóbrio da mansarda e o estado ruinoso de uma mobília
pequenina e ruim bastam para anunciar ao visitante que as reflexões de Daniel
não são da mais bela cor de rosa. E, com efeito, está triste como sempre. E,
como sempre, prossegue através do futuro o sonho de uma ambição desmedida.
Daniel é umdigno filho de seu século.
—
Mais um dia de trabalho! — suspira ele, com raiva concentrada. — Ainda longas
horas de humilhação, de fadiga e servidão por um magro salário que apenas
permite que se não morra de fome. Isto enquanto que outros acham no banquete da
vida o seu talher posto com antecedência; enquanto que os felizes satisfazem
todos os seus caprichos, esgotam todos os seus prazeres, bebem em todas as
taças e passam com um sorriso desdenhoso por junto do miserável empregado. Oh! A
riqueza, a riqueza! Esta palavra acorda em mim pensamentos insensatos.... Para
adquiri-la, eu não conheço sacrifício que recuse fazer, perigo que receie
experimentar.
—
Estás bem certo disso? — disse, de repente. uma voz atrás de Daniel. Este, surpreendido
bruscamente, voltou-se por um movimento instintivo, e ficou ainda mais surpreendido
vendo de pé, atrás dele, um personagem vestido de preto e de olhar fascinador.
—
Estás bem certo do que dizes? — repetiu a voz, antes que Daniel tivesse tempo
de fazer pergunta alguma.
—
Quem é o senhor? — disse ele por fim, procurando dominar a sua perturbação.
—
Que te importa, se te dou a riqueza que tão ardentemente desejas!
—
O senhor?
—
Eu mesmo. Somente te imponho uma condição. A tua fortuna ofuscará as mais
opulentas do mundo; o ouro excederá a todas as tuas fantasias; mas este luxo te
imporá um dever imperioso. Eis aqui uma carteira. Ela contém um milhão de
francos em notas bancárias.
—
Um milhão! — exclamou Daniel, estendendo apressadamente o braço.
— Espera,
deixa-me acabar! — replicou o homem de preto. — Ela contém um milhão que tu
deves gastar num só dia. Cada manhã a carteira se encherá de novo; e cada noite
é necessário que ela esteja vazia.
— E
se não estiver?
— Nessa
noite, então, tu morrerás.
Daniel
recuou, espantado. Depois, reanimando-se imediatamente, disse:
—
Quem quer que sejas, eu aceito. Ninguém dirá que um vão temor me fez recusar a
felicidade. Além do quê, o que é um milhão? Sou capaz de gastar até mesmo o
dobro se...
—
A experiencia o provará — disse o homem de preto com tom irônico, dando-lhe a
carteira. — Desde já, fica o negócio concluído.
—
Negocio concluído! — repetiu maquinalmente Daniel.
—
Sobretudo não esqueças a clausula.... Um milhão quotidiano ou a morte.
Daniel,
assaltado por novas hesitações, quis replicar, mas o homem de preto havia
desaparecido e a carteira, completamente aberta, estava sobre a mesa.
—
Rico, sou rico! Que mais importa?
E,
com uma exaltação febril, o hóspede da sombria mansarda pôs-se a contar os
maços de bilhetes do banco. O milhão estava exato.
II
O
primeiro mês passou-se rapidamente no meio de encantos de toda a sorte. Os milhões
tinham sido empregados sem grande trabalho.
No
fim do terceiro dia, Daniel possuía tudo o que se pode alcançar com uma fortuna
tão inverossimilhante. Suas estribarias estavam cheias dos melhores cavados de
todas as raças, sua adega dos mais velhos e deliciosos vinhos, e os seus salões
regurgitavam parasitas; palácios, castelos, festas de príncipe, nada faltava a
sua alegria. Vendo assim a sua felicidade tão completa, ele sentia nascer-lhe
n'alma uma inquietação vaga.
—
Não terei mais necessidades a satisfazer? — murmurava ele consigo mesmo. — Ora,
vamos! Não estão aqui os meus amigos para me ajudarem a me arruinar?
E,
preocupado dessa ideia, adormecia sossegadamente junto da carteira vazia.
III
No
fim do terceiro mês, Daniel já empregava expedientes, e os expedientes
desgraçadamente não lhe saíam bem. Os seus aperfeiçoamentos de luxo gastronômico
não tardaram em produzir-lhe uma inflamação de estômago, acompanhada de um
completo fastio. Era preciso procurar outra coisa.
Os
seus parasitas, cheios de presentes dele, tinham cada um buscado o seu rumo,
afim de criar para si uma existência independente. Pensou então nos seus criados e, chamando o
seu mordomo, disse, enraivado:
—Ladrão!
—Perdão,
senhor — disse o serventuário, enganando-se com o sentido da palavra. — Nós o temos roubado, mas lhe juro que, a
partir de hoje, todos nós seremos homens de bem.
—
Desgraçado! Que dizes tu?
—
Acredite-me senhor. Era indigno enganar-se um amo tão generoso; mas, de agora
em diante...
—
Compreendo, velhaco. Irão roubar-me mais que dantes...
—
É impossível, senhor. Nós todos vamos viver de nossas rendas.
Daniel,
furioso, mandou embora o mordomo, que saiu convencido de que seu amo
denunciaria o primeiro que o roubasse. Esta convicção, espalhada por toda a
casa, fez com que Daniel não achasse para o servir senão modelos de
honestidade.
IV
—Terei
demandas — disse consigo Daniel. — Sempre ouvi dizer que as questões de justiça
são as mais ruinosas que tem inventado o cérebro humano.
E
ei-lo que entra a citar para demandas, por motivos os mais frívolos possíveis,
todos seus vizinhos e a quem lhe vinha à cabeça. O resultado desmentiu as suas
previsões.
De
trinta fornecedores que tinha, vinte e nove foram reconhecidos culpados pela
qualidade do gênero vendido e condenados a pagarem a diferença e as custas.
Quanto às outras causas, graças ao talento dos seus advogados, num só mês ele
ganhou uma dúzia delas, sendo os outros obrigados a indenizá-lo e a pagarem as
custas. Era abominável.
—Vou jogar, disse consigo Daniel.
Em
três noites, conseguiu arruinar no lansquinete[1] todas
as pessoas da sua sociedade.
Era
horrível.
—Terei
amores — disse consigo Daniel.
Tornou-se
apaixonado por uma moça bela como um anjo e pobre como Jó. No dia do casamento,
uma carta noticia à sua noiva que um parente seu, que acabava de morrer, lhe
deixava uma fortuna de cem mil francos de renda anuais. Daniel fugiu e não
tornou mais.
Era
desesperador.
V
Nove
meses se haviam passado. Daniel, apesar de todos os seus esforços, encontrava-se
cada dia quase obrigado a guardar uma parte do fatal milhão. Sua vida inteira
se havia concentrado neste único fim: gastar, gastar e ainda gastar.
—Oh! — exclamou ele uma manhã. — Desta vez
tive uma ideia fecunda.
E
parte, imediatamente, louco pela sua concepção.
Na
noite desse mesmo dia, havia já comprado cerca de trinta milhões em prédios e
os tinha adquirido pelo triplo de seu valor.
—Eis-me
tranquilo por um mês — disse ele dando um longo suspiro quando entrou em casa.
No
fim da terceira semana, um aviso da prefeitura lhe rogava que fosse receber do
cofre municipal a soma de uns poucos de milhões em que foram avaliadas as suas
propriedades, que pelo governo haviam sido expropriadas para dar passagem a
seis novos bulevares.
A
esta altura, Daniel julgou ficar louco.
VI
—Maldito dinheiro! Deixa estar que
ainda acharei um meio de escapar ao teu jugo — murmurou ele,
voltando da câmara municipal com a sua carteira debaixo do braço. Nesse dia, a
famosa carteira continha, além do milhão quotidiano, os lucros extraordinários
realizados, involuntariamente, pela expropriação.
—Sim,
sim, eu acharei um meio.
Falando
assim, havia chegado numa rua deserta. Voltou-se para assegurar-se que ninguém
o seguia e, como a solidão era completa, atirou dentro de uma porta-cocheira a
carteira com os milhões e afastou-se a toda a pressa que podia.
Ainda
não havia um quarto de hora que tinha chegado a casa, quando um policial se
apresenta diante dele.
—
Perdão, senhor, por vir incomodá-lo. Eu apanhei esta carteira na rua. Vendo a
soma que ela continha, adivinhei a sua aflição e, como o seu nome está escrito
nela, deixei o serviço para devolvê-la o mais depressa.
— Monstruosa probidade — balbuciou Daniel,
caindo desmaiado.
VII
Estava
sem sentidos desde que desmaiara. Junto dele, a carteira cheia. Meia-noite soou
em todos os relógios de sua esplêndida morada.
—Meia
noite!... Grande Deus!... A carteira não está vazia — balbuciou Daniel com
dificuldade, esforçando-se por erguer-se.
—Espera, eu vou....
—Já
é tarde — respondeu uma voz que o fez estremecer.
—Misericórdia!
—Já
é tarde — repetiu o homem de preto com voz lenta. —Daniel Raynal, recorda-te do
pacto que aceitaste? Pobre louco, que imaginava que a opulência não é um fardo
para quem a não sabe empregar. Tu possuíste os teus tesouros, e foram eles que,
de desilusão em desilusão, te conduziram à morte. Maldição sobre ti, como sobre
todos os egoístas que não adivinharem o grande segredo da riqueza.
—
Que segredo? Fala! Qual é ele? — perguntou o desgraçado, estorcendo-se nas
emoções extremas.
—Não te servirá mais... Mas que possa ao menos
servir a outros. Daniel, o segredo que tu desconheceste é o que te haveria
salvado, porquanto muito grande é o número de misérias a aliviar. Este segredo
é a CARIDADE.
Tradução de autor
desconhecido.
Fontes: “Dezenove de
Dezembro”/PR, edição de 21/10/1863; “Jornal do Recife”/PE, edição de 19 de
outubro de 1861.
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