O FILHO - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga



O FILHO
Horacio Quiroga
(1878 – 1937)
Tradução de Paulo Soriano


— Sim, papai — repete o garoto.

É um poderoso dia de verão nas Missões, com todo sol, calor e calma que a estação pode proporcionar. A natureza, plenamente aberta, sente-se satisfeita consigo mesma.

Com o sol, o calor e o calmo ambiente, o pai abre também o seu coração à natureza.

— Tenha cuidado, garoto — diz ao filho, condensando nessa frase todas as recomendações, e o seu filho a entende perfeitamente. 

— Sim, papai — responde a criança, enquanto pega a escopeta e carrega de cartuchos os bolsos da camisa, fechando-os com cuidado.

— Volte na hora do almoço — observa ainda o pai.

— Sim, papai — repete o garoto.

Equilibra a escopeta na mão, sorri ao pai, beija-o na cabeça e parte. O pai o segue por um instante com os olhos, e volta aos afazeres do dia, feliz com a alegria do seu menino.

Sabe que o filho é educado desde a mais tenra infância no hábito e na precaução ao perigo: pode manejar um fuzil e caçar qualquer coisa. É alto para a idade, mas tem apenas treze anos. E parecia ter menos, a julgar pela pureza dos olhos azuis, ainda frescos de surpresa infantil.

O pai não precisa desviar os olhos dos afazeres, porque segue com a mente a marcha do seu filho.

Ele já cruzou a picada vermelha e agora segue direto para o mato, através do caminho aberto entre as touceiras de capim.

Para caçar no mato — caça de pelo — é preciso mais paciência que o seu filhote pode render. Depois de atravessar essa ilha de mato, o filho contornará os limites de cacto até o charco, procurando pombos, tucanos ou certo casal de garças que Juan, amigo dele, descobrira há alguns dias.

Somente agora o pai esboça um sorriso à lembrança da paixão cinegética das crianças.

Às vezes, caçam somente um jacu-touro, um surucuá — até menos ainda — e regressam triunfantes: Juan à fazenda, com o fuzil de nove milímetros, que ele lhe deu de presente; o filho, à meseta, com a grande escopeta Saint-Étienne, calibre 16, ferrolho quádruplo e pólvora branca.

Também com ele era assim. Aos treze anos, daria a vida para ter uma escopeta. Seu filho, naquela idade, já tem uma, e o pai sorri. 

Todavia, não é fácil para um pai viúvo, sem outra fé ou esperança que não a vida de seu filho, educá-lo como ele o tem feito, livre em seu curto raio de ação, seguro de seus pequenos pés e mãos desde que tinha quatro anos, consciente da imensidão de certos perigos e da insuficiência de suas próprias forças.

Esse pai teve de lutar bravamente contra o que ele considerava seu egoísmo. Uma criança facilmente calcula mal, pisa no vazio e se perde um filho!

O perigo subsiste sempre para o homem em qualquer idade; mas sua ameaça arrefece se, desde pequeno, o filho é acostumado a contar apenas com as próprias forças.

Deste modo tem o pai educado o filho. E, para consegui-lo, teve de resistir não apenas ao próprio coração, mas também aos tormentos morais; porque esse pai, de estômago e vista débeis, sofre, já há algum tempo, de alucinações. 

Viu, materializadas em dolorosa ilusão, as recordações de uma felicidade que não mais deveria brotar da nulidade em que se enclausurara. A imagem de seu próprio filho não escapou a esse tormento. E viu o garoto rolar, coberto de sangue, no momento em que percutia, no torno da oficina, uma bala parabellum; mas, na verdade, a criança apenas limava a fivela do cinturão de caça. 

Um acontecimento terrível... Mas hoje, com o ardente e vital dia de verão, que parece uma herança do amor a seu filho, o pai se sente feliz, tranquilo e seguro do futuro. 

Neste instante, não muito longe, soa um tiro.

— É a Saint-Étienne... — cogita o pai, ao reconhecer a detonação. Dois pombos a menos na mata...

Sem mais atentar ao ínfimo acontecimento, o homem se abstrai de novo em seu trabalho.

O Sol, já muito alto, continua a subir. Para onde quer que se olhe — pedra, terra, árvores —, o ar rarefeito, como em um forno, vibra com o calor. Um profundo zumbido, que toca a plenitude, e impregna a atmosfera até onde a vista alcança, concentra nessa hora toda a vida tropical. 

O pai consulta o pulso: doze horas. Então, levanta os olhos para a mata. Seu filho já deveria estar de volta. Na mútua confiança que depositaram um no outro — o pai de têmporas prateadas e a criança de treze anos —, não há lugar para mentiras. Quando o filho responde: “sim, papai”, cumprirá com a palavra. Ele disse que voltaria antes do meio-dia, e o pai sorriu ao vê-lo partir. Mas não voltou.

O homem retoma os afazeres, esforçando-se em concentrar a atenção em sua tarefa. É mesmo fácil, tão fácil, perder a noção do tempo dentro da mata, e sentar-se um pouquinho no chão, enquanto se descansa, imóvel, não é?

O tempo passou. São doze e meia. O pai sai da oficina e, ao apoiar a mão no balcão de mecânico, ressoa, do fundo de sua memória, o estampido de uma bala parabellum.

Instantaneamente, pela primeira vez, já passadas três horas, dá-se conta de que, depois do tiro da Saint-Étienne, não ouviu nada mais. Não ouviu rolar o pedregulho sob um passo conhecido. Seu filho não voltou e a natureza se acha imóvel na margem do bosque, a esperá-lo. Oh! Um caráter tranquilo e uma cega confiança na educação de um filho não são suficientes para afugentar o espectro da fatalidade que um pai de vista fraca vê erguer-se dos confins da mata. Distração, esquecimento, demora fortuita: nenhum desses insignificantes motivos, que podem retardar a chegada de seu filho, encontra acolhida naquele coração.

Um tiro... Só um tiro ecoou, e há muito tempo. Depois do estampido, o pai não mais ouviu um ruído, não mais viu um pássaro, ninguém perpassou a clareira para anunciar-lhe que, ao cruzar uma cerca, uma grande desgraça...

Sem chapéu e sem facão, o pai ganha caminho. Transpõe a clareira de touceiras, entra no mato e contorna o muro de cactos, mas sem achar o menor sinal de seu filho. 

Mas a natureza continua estática. E quando o pai percorre as sendas de caça conhecidas e, em vão, explora o charco, adquire a certeza de que cada passo que dá o leva, fatal e inexoravelmente, ao cadáver do filho.

Nenhuma censura a ser feita, é lamentável. Só a realidade fria, terrível e consumada: seu filho morreu ao cruzar uma cer... 

Mas, onde, em que lugar? Há tantas cercas ali, e é tão, tão sujo o matagal! Oh, muito sujo! Por pouco que ele se descuide ao cruzar os fios com a escopeta na mão...

O pai reprime um grito. Viu levantar-se no ar... Oh, não é o seu filho, não! E volta-se para outro lado, e para outro e outro ainda...

Nada se ganharia em ver a cor de sua pele e a angústia em seus olhos. Esse homem ainda não chamou pelo filho. Embora o seu coração clame por ele aos gritos, a boca continua muda. Sabe bem que o tão só ato de pronunciar o seu nome, de chamá-lo em voz alta, já será a confissão da morte do filho. 

— Meu garotinho! — escapa-se-lhe de repente. E se a voz de um homem enérgico é capaz de chorar, tapemos os ouvidos por misericórdia, ante a angústia que clama naquela voz. 

Ninguém respondeu. Pelas picadas rubras de sol, envelhecido dez anos, segue o pai, procurando pelo filho que acabara de morrer.
— Meu filhinho!  Meu menininho! — clama ele num diminutivo que irrompe do fundo de suas entranhas.

Já antes, em plena felicidade e paz, esse pai sofrera uma alucinação, em que seu filho rolava com a fronte traspassada por uma bala de cromo-níquel. Agora, em cada rincão sombrio do bosque, ele vê chispas de arame. E, ao pé de um poste, com a escopeta descarregada ao lado de si, ele vê seu...

— Garotinho! Meu filho!

As forças que permitem entregar um pobre e alucinado pai ao mais atroz pesadelo também têm um limite. E o nosso sente que as suas forças se lhe escapam, quando vê repentinamente assomar, de uma vereda lateral, o seu filho.

Para um garoto de treze anos é bastante ver, a cinquenta metros, a expressão de seu pai, sem facão, dentro da mata, para apressar o passo com os olhos úmidos.

— Garoto... — murmura o homem. E, exausto, deixa-se cair sentado na areia alvejante, cingindo com os braços as pernas de seu filho.

A criança, assim enlaçada, fica de pé; e, como compreende toda a dor de seu pai, lhe acaricia lentamente a cabeça:

— Pobre papai...

Enfim, o tempo passou. Já eram quase três horas. 

Agora juntos, pai e filho empreendem o regresso a casa. 

— Por que você não se guiou pelo Sol para saber a hora? — murmura ainda o primeiro.

— Eu me guiei, papai. Mas, quando ia voltar, vi as garças de Juan e fui atrás delas.

— O que você me fez passar, garoto!

— Paizinho... — murmura também o garoto.

Depois de um longo silêncio:

— E as garças... Matou-as? — pergunta o pai.

— Não.

Detalhe sem importância, afinal.  Sob o céu e o ar incandescentes, a descoberto pela clareira de touceiras, o homem volta a casa com seu filho, sobre cujos ombros, quase tão altos quanto os seus, repousa o seu feliz braço de pai. Regressa encharcado de suor e, embora alquebrado de corpo e alma, sorri de felicidade.

***

Sorri de alucinada felicidade... Pois esse pai segue sozinho.

Afinal, ele não encontrou ninguém, e seu braço se apoia no vazio. Porque atrás dele, ao pé de um poste, com as pernas erguidas, enredadas no arame farpado, seu adorado filho jaz ao sol, morto desde as dez horas da manhã. 


Comentários

  1. conto importantíssimo para a humanidade! Precisamos saber dos limites dos nossos filhos, e respeitá-los é essencial. Espero que o presidente Lula tenha a coragem e a cara para enfrentar estes problemas, criando o Ministério da Família Masculina, no qual ele irá encorajar os pais a largarem o machismo impregnado e a colocar o homem numa posição mais favorável às políticas públicas do governo atual. Deixe a oposição e a Arlette Gonçalves mais orgulhosa do que o Brasil está se tornando! RUMO, LULA!

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