O NECROMANTE - Conto Clássico de Terror - B...s
O NECROMANTE
B...s
(Sec.
XIX)
Os
arrabaldes de Genebra são frequentados por estas leitoras de buena dicha, que entretêm a credulidade
dos aldeãos convizinhos, e algumas vezes até a das grandes damas da cidade. Uma
de minhas parentas, que habitava nos arredores, tinha a mais firme crença na
sua ciência. Desde longo tempo não havia recebido notícia alguma de um filho
que servia nos exércitos de Bonaparte. Sua sorte a inquietava extremamente.
Decidiu-se, portanto, a ir consultar a pitonisa do lugar e eu a acompanhei.
Fomos
apresentados a uma mulher ainda moça, airosa de corpo, benfeita, de cabelos
loiros e olhos azuis. A princípio, não podia eu acreditar que fosse a
feiticeira que procurávamos: tinham-na figurado inteiramente diversa. Devia ser
uma mulher velha, decrépita, de semblante enrugado e pálido, de cabelos raros e
encanecidos pela aproximação do seu último inverno.
Minha
incerteza durou pouco. A feiticeira pôs em jogo sua maravilhosa roda. Assegurou-nos
que a pessoa por quem nos interessávamos passava muito bem e que dela
receberíamos uma carta dentro de poucos dias.
No
terceiro dia, chegou, com efeito, a carta. A alegria da minha parenta aumentou,
mas não me pareceu admirada: a predição de Isaura era para ela verdade
evangélica. Nossas visitas à rua estreita e sombria em que Isaura habitava se
renovavam muitas vezes, e insensivelmente se estabeleceu entre nós e ela uma
espécie de intimidade.
Apesar
de seu semblante grave e respeitoso à primeira vista, tinha Isaura no seu
interior uma amabilidade infantil, e uma prática aprazível. Havia ela recebido
boa educação, e empregava-se mais no estudo de bons autores italianos do que nas
centúrias do famoso profeta de S. Remi[1].
Eu passava horas inteiras a ouvi-la. E maravilhava-me prodigiosamente o
desprezo que ela tinha à sua profissão.
Um
dia, ajustamos um passeio sobre o lago. Levamos de comer e embarcamos em um
pequeno barco de pesca. Longo tempo havia que tão grandioso e tão variado
espetáculo se não tinha a meus olhos apresentado: de um lado o Jura, do outro
os montes Satevé, ao longe o Monte Branco e, debaixo de nossos pés, um pequeno
mar, com suas calmas, suas tempestades, e guarnecido de numerosas casas de
campo.
Abordamos
perto da linda povoação de Thonon, na margem oposta, em uma casa de retiro
escondida no meio de bosquezinhos. Estava ela modestamente mobiliada, e somente
habitada por um velho homem, que abraçou Isaura, e nos acolheu com franqueza e
cordialidade. Um momento depois, descobri que a pobre moça lhe dava ocultamente
uma bolsa. O velho recebeu-a friamente, e dos olhos de Isaura rebentavam
grandes lágrimas.
Dirigimo-nos
para a banda do lago. O velho aproveitou-se do meu braço, e fomos indo adiante,
deixando Isaura e a minha parenta muito distantes. Alberto, apesar dos seus
sessenta anos, nada tinha perdido do fogo de sua mocidade. Suas muitas
observações — judiciosas ou maliciosas — me espantavam. De quando em quando
deixava ele escapar sobre sua vida passada algumas palavras, que vivamente
excitavam minha atenção.
—
Tu és estrangeiro... — aventurei-me, enfim, a dizer-lhe.
O
velho franziu as sobrancelhas e, um instante depois, me tornou:
— Sim, rapaz, nasci na Calábria em 17....
Circunstâncias imprevistas me forçaram a deixar minha pátria. Mas, de outra vez
te contarei esta história. Volta a visitar-me.
Não
me descuidei. Muitas vezes tornei sozinho à casa de Alberto. Mas ele não
parecia disposto a entrar em matéria, e eu não ousava lembrar-lhe sua promessa.
Um
dia, contudo, em que o achei embebido em profunda melancolia, e em que por
consequência estava mais propenso a desabafar, arrastou-me para um lugar
solitário, e me referiu o que se segue:
—
Desde minha mocidade me ocupei sempre da ciência de enganar os homens. Adquiri
em Nápoles uma certa celebridade na arte da necromancia. Grandes senhores e
damas da corte me vinham consultar. Fiz uma brilhante fortuna, e acabei por ser
eu mesmo logrado pela minha arte.
“Um
triste acontecimento me fez renunciar a esta carreira criminosa. O Marquês de
B..., de uma antiga família de Itália, era grande apaixonado das ciências ocultas.
Chamou-me para junto de si e muito depressa me tornei seu oráculo. O Marquês de
B... tinha dois filhos, Gioachino, que devia herdar seus títulos e todos os
seus bens, e Ludovico, que fora feito Cavaleiro de Malta, e que destinavam para
as armas. Os dois irmãos pareciam estimar-se ternamente.
“Gioachino
tinha sido educado com a jovem Maria, sua prima, e única herdeira do riquíssimo
Conde de G.... Seu casamento havia sido resolvido pelas duas famílias, para em uma
só casa reunirem imensas propriedades. Estes jovens esposados, sem se amarem ardente
e impetuosamente, tinham, contudo ocultamente jurado pertencer um ao outro.
“Tudo
estava pronto para as núpcias. Em poucos dias, os novos esposos deviam ser
conduzidos ao altar. Eis que Gioachino desaparece subitamente. Passou-se o dia
sem que pudesse saber-se o que dele fora feito. Tudo em casa andava aflito.
Ludovico principalmente se fez notável pela sua dor.
“No
dia seguinte, o Marquês de B... enviou seus familiares para todos os lados a
fim de obter notícias do seu filho. Porém, as únicas informações que pôde
alcançar foram de que Gioachino tinha sido visto na véspera dirigindo-se para o
mar e que, sem dúvida, os barbarescos, que infestavam aquelas costas, o teriam
arrebatado.
“O
Marquês de B.... fez logo equipar uma chalupa, e correu com Ludovico em busca
de seu filho, esperando abrandar os corsários pelo engodo de importante
resgate.
“Depois
de longo tempo avistaram um navio barbaresco, e estavam a ponto de o alcançar,
quando uma rajada de vento os separou, e o Marquês de B.... tornou a entrar no
porto com todas as esperanças perdidas. Que foi feito do corsário? Seria
engolido pelas ondas? É o que se não sabe. O Marquês de B... mandou à costa da
Barbaria. Mas nada pôde saber do destino de seu filho.
“Dois
anos se tinham passado em vãs indagações. E o mesmo Ludovico tinha percorrido
uma parte da Itália, a fim de encontrar seu irmão. O Marquês de B.... se
consolava em certo modo da perda de Gioachino, vendo as virtudes de seu segundo
filho. E a mesma jovem condessa Maria apreciava sua afeição, sem que, contudo,
pudesse ver-se livre de um secreto movimento de aversão, que não sabia a que
devesse atribuir.
Malogradas
na primeira esperança de união, resolveram as duas famílias dar Maria a
Ludovico. Este, a princípio, recebeu a proposta alegremente: não podia ser
insensível à beleza de sua prima. Contudo, recusou, dizendo que seu irmão podia
ainda estar vivo, e que, se tornasse a voltar, ficaria exasperado por se
haverem apossado de um bem que lhe estava prometido. Convidou, ao mesmo tempo, seu
pai a tentar novas buscas, das quais não houve resultado algum.
“Dois
anos se passaram ainda, e Gioachino não tornou a aparecer. Os pais renovaram
então suas instâncias para com Ludovico, o qual se deixou vencer. Mas a jovem
condessa parecia pouco disposta para esta união, e esperava ainda tornar a ver
o seu Gioachino. Os mistérios que envolviam seu destino não tinham feito senão
aumentar-lhe a afeição para com o seu noivo.
“Lembrei-me,
então, de empregar minha arte para vencer sua resistência. Entro uma manhã no
quarto de Ludovico e lhe participo meu projeto. Algum trabalho tive para o
resolver. Contudo, aprovou-o.
“No
dia seguinte, reuni as duas famílias em uma sala baixa do palácio meio iluminada
com tochas. O aspecto lúgubre desta sala, seus negros vidros góticos, e os
instrumentos desconhecidos, que eu tinha arranjado sobre uma imensa mesa de
carvalho, tinham alguma coisa de solene, que estava perfeitamente em harmonia
com o que se ia passar.
“Depois
de alguns preliminares, que tendiam a preparar a imaginação de meus espectadores,
três vezes esconjurei a sombra de Gioachino. Ele aparece, enfim, e avança
lentamente de uma das extremidades da sala, como vexado de sofrimento. Vinha
vestido como um escravo africano, e o seu sangue corria de uma profunda ferida
no pescoço. Todos se arrepiaram de horror. Interrogo então Gioachino, pergunto-lhe
se não foi feito prisioneiro pelos barbarescos, e se não morreu debaixo de seus
golpes. Ele responde inclinando a cabeça, e levando a mão à ferida.
“—
Não haverá algum laço na terra — acrescentei eu — que vos faça prantear a vida?
“Fez
um sinal negativo, e deixou cair um anel. Era o da sua prometida Maria.
“A
jovem condessa desmaiou; toda a família estava estupefata; e tal foi o efeito
que esta aparição produziu em Maria, que em breve experimentou uma febre
ardente, que a princípio fez seriamente recear pelos seus dias.
“Vendo
murchar tantos encantos, eu mesmo me repreendia de haver sido causa de seus
males. Ela, contudo, restabeleceu-se, e esta aflitiva cena pouco a pouco se
apagou de sua memória.
“Maria
nada mais tinha a opor a seu casamento com Ludovico. E tantas provas lhe havia
ele dado de afeição e desvelo durante a sua doença que chegara a esquecer sua
primeira repugnância.
“Deu,
enfim, o seu consentimento. A união foi celebrada com pompa: houve baile
magnífico. Mas os convidados não viram sem surpresa um frade de pequena
estatura, com habito da ordem de S. Francisco, e que parecia ligar-se aos
passos de Ludovico e da sua nova esposa. Todos se perguntavam o que poderia tê-lo
conduzido a uma tal cerimônia.
“A
hora estava já adiantada. Começava-se a desertar da sala do baile para a do
festim, e tomaram lugar na mesa. O frade, sem para isso ser convidado, se colocou
defronte de Ludovico, sobre o qual fixava a vista escrutadora. O espanto
redobrou, e o banquete foi bastante triste. Para reanimar a alegria, alguns dos
convidados propuseram saúdes à felicidade futura dos esposos.
“Quando
chegou a vez do franciscano, levantou-se ele de um modo grave, pegou de um copo
e, dirigindo-se a Ludovico, o convidou a beber à saúde de Gioachino. Ludovico
hesitou. Sua perturbação era extrema:
“—Se
sabes alguma coisa de meu desgraçado Gioachino — disse o Marquês de B...., flutuando
entre o receio e a esperança —, fala, acalma a inquietação de um pai que tanto
o tem chorado!
“O
frade não respondeu a este convite e, com os olhos sempre fitos em Ludovico,
parecia esperar sua decisão.
“Ludovico,
levantando-se enfim, exclamou:
“—À
saúde de Gioachino. Possa a nossa separação não ser eterna!
“Apenas
ele tinha acabado, um fantasma ensanguentado apareceu à entrada da sala e,
apontando Ludovico com o dedo, disse:
“—
Eis ali o meu assassino!
“Depois,
desapareceu.
“Ludovico
caiu como tocado do raio. Levaram-no para o seu quarto, onde morreu poucos dias
depois, e seu confessor foi sem dúvida o único depositário de seus segredos.
“A
família do Marquês de B.... está extinta. Nada mais se soube de Gioachino. Unicamente,
perto de dezoito meses depois deste acontecimento, escavando-se em um
subterrâneo da casa, nele se encontrou o esqueleto de um homem. Havia longo
tempo que Maria tinha sucumbido à sua dor.”
O
velho terminou aqui a sua história.
Facilmente
se terá adivinhado que foi ele quem, disfarçado no conjurado traje de
franciscano, tinha invocado o fantasma pela segunda vez. Qual tinha sido o seu objetivo?
Eis o que não pude recolher dos boatos públicos. Parece que, alguns dias antes
do casamento, uma violenta altercação, de que nunca se conheceu precisamente a
causa, se havia levantado entre o necromante e Ludovico. Alberto, que, havia
muito tempo, suspeitava o jovem Conde da morte de seu irmão, resolveu vingar-se.
Mui bem o conseguiu. E ele mesmo, sem razão acusado de cumplicidade, foi
obrigado a expatriar-se.
A
pobre Isaura, que tudo havia deixado para seguir seu pai, se tinha visto
reduzida à humilhante profissão de ler buena
dicha, a fim de poder sustentar o velho na sua miséria.
Tradução de autor desconhecido.
Fonte: Museo Universal, edição de 2 de junho de
1838.
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