OS FANTASMAS DE BÉJAR - Conto Clássico de Terror - Alexandre Dumas
OS FANTASMAS DE
BÉJAR
Alexandre Dumas
(1802 – 1870)
Eram 25 de janeiro de 1492.
Depois de acirrada luta de oitocentos anos contra os espanhóis, os mouros acabavam
de declarar-se vencidos na pessoa de Al-Shághip-Abou-Abdalah[1], que no dia 6 desse mês, isto é, em dia
de Reis[2], tinha feito a entrega da cidade
de Granada às mãos dos seus vencedores, Fernando e Isabel.
Os mouros tinham conquistado a
Espanha em dois anos; para repeli-los, tinham sido necessários oito séculos.
A notícia dessa vitória havia-se
espalhado. Em todas as igrejas da Espanha os sinos repicavam como no santo dia
de Páscoa, e todas as vozes clamavam:
—Viva Fernando! Viva Isabel!
Vivam Leão e Castela!
Mas isto não era tudo. Dizia-se
que nesse ano de bendição, em que Deus voltara os seus olhos para a Espanha
como um grande pai, um viajante apresentara-se aos dois reis e lhes prometera
outorgar-lhes um mundo desconhecido[3], que
estava certo de descobrir seguindo sempre de Oriente a Ocidente.
Mas tal feito era considerado
geralmente uma fábula e o aventureiro que a ele se havia comprometido, e que se
chamava Cristóvão Colombo, era considerado um louco.
Além disto, estas notícias, nessa
época de difíceis comunicações, ainda não se haviam difundido de forma positiva
por toda superfície da península. À medida em que, topograficamente, as
províncias se achavam distantes daquelas em que os mouros haviam concentrado o
seu poder – e fazia somente 19 dias que Fernando e Isabel haviam triunfado
sobre Granada –, da mesma forma que quando nos afastamos de um centro luminoso
os objetos retornam gradualmente à escuridão, pouco a pouco as populações, que
duvidavam daquela grande ventura de imenso júbilo à toda cristandade,
perguntavam, apinhando-se em torno de cada viajante que chegava do teatro de
guerra, acerca daquele grande feito.
Uma das províncias – não das mais
distantes, mas sim das mais separadas de Granada, porque duas grandes cadeias
de montanha se estendem entre ela e essa cidade –, Estremadura, a Estremadura
situada entre Castela Nova e Portugal, e que toma o seu nome de sua extremada
posição em relação às fontes do rio Douro, a Estremadura, enfim, tinha tanto
maior interesse em estar informada porque, liberta dos mouros já em 1240 por
Fernando III de Castela, pertencia desde então a esse reino de que Isabel, que
acabava de merecer o epíteto de “a Católica”, era herdeira.
Por isso, um povo imenso estava
reunido no dia em que começa essa história — 25 de janeiro de 1492 —, no pátio
do castelo de Béjar, em que acabava de adentrar D. Bernardo de Zúñiga, terceiro
filho de D. Pedro de Zúñiga, conde de Bañares, marquês de Ayamonte, dono desse
castelo. Ora, ninguém podia dar notícias mais frescas dos mouros e dos cristãos
do que D. Bernardo de Zúñiga que, cavaleiro do exército de Isabel, tinha sido
feito prisioneiro numa dessas investidas tentadas pelo heroísmo dos árabes, e
levado ferido para a cidade sitiada, cujas portas só lhe haviam sido abertas no
dia em que nela tinham entrado os cristãos.
D. Bernardo, na época em que nos
aparece — no momento em que, depois de uma ausência de dez anos —, voltava ao
castelo paterno montado em seu ginete de combate. E, cercado de fâmulos,
criados e vassalos, era um homem de trinta e cinco para trinta e seis anos,
emagrecido pelas fadigas e especialmente pelas feridas, e que pálido teria sido
se seu rosto, queimado pelo sol do meio-dia, se não tivesse coberto com tom
bronzeado que parecia fazer dele o irmão e patrício dos homens contra quem
acabava de combater. E tão exata era essa semelhança que, envolto no amplo
manto branco da ordem de Alcântara[4], com
uma aba enrolada em torno da cara para protegê-la contra o frio da serra, nada
distinguia esse manto do albornoz árabe, salvo a cruz verde que traziam sobre o
peito os cavaleiros da ordem santa.
Esse cortejo, que entrava com ele
no pátio do castelo, o acompanhava desde que aparecera nas portas da cidade.
Ainda antes de ter sido reconhecido, tinha-se percebido que esse homem de olhar
concentrado, de heroico porte e de manto semirreligioso, semiguerreiro, vinha
do teatro da guerra. Tinham-lhe dirigido múltiplas perguntas. Então ele havia
dito quem era e, convidando os curiosos a acompanhá-lo até seu castelo, e lá
chegando, acabava de apear-se no meio dos sinais de afeição e de respeito de
todos.
Depois de ter dado as rédeas de
seu cavalo a um escudeiro, e lhe ter recomendado a esse valente companheiro de
suas fadigas — que, como seu amo, tinha mais de um visível sinal da luta que
acabava de travar —, D. Bernardo de Zúñiga subiu a escada que levava à entrada
principal do castelo. Depois, chegando ao último degrau, voltara-se contando,
para satisfazer à curiosidade de todos, como Fernando o Católico, depois de ter
conquistado trinta praças de armas e outras tantas cidades, havia por fim posto
assédio a Granada; como, depois de um longo e terrível cerco, Granada havia-se
rendido em 25 de novembro de 1491 e como, enfim, o rei e a rainha tinham feito
solene entrada em 6 de janeiro, dia de Epifania, deixando por únicos domínios
ao sucessor dos reis de Granada e dos califas de Córdoba uma pequena dotação nas
Alpujarras.
Dadas essas notícias, que o
auditório acolheu com o mais exaltado júbilo, entrou D. Bernardo no Castelo
acompanhado apenas pelos seus criados mais íntimos.
Não foi sem grande comoção que D.
Bernardo tornou a ver, depois de dez anos, o interior desse castelo em que
passara a sua infância, e que se achava então vazio. Seu pai estava em Burgos
e, dos seus dois irmãos mais velhos, um estava morto e o outro militava no
exército de D. Fernando.
D. Bernardo percorria, triste e
silencioso, todos os aposentos. Parecia que no fundo do seu pensamento havia
uma pergunta que não se atrevia a fazer e que disfarçava multiplicando outras
perguntas. Enfim, parando diante do retrato de uma menina de nove ou dez anos,
perguntou com certa hesitação de quem era esse retrato. Aquele a quem era
dirigida essa pergunta fitou os olhos em D. Bernardo antes de responder.
Parecia não o entender.
— Esse retrato? — perguntou.
— Sim, esse retrato — repetiu D.
Bernardo com tom mais imperativo.
— Mas senhor — repetiu o criado
—, é o da prima de vossa excelência, D. Anna de Niebla. É impossível que vossa
excelência tenha se esquecido dessa pequena órfã, que fora criada no castelo, e
estava destinada a ser esposa do seu irmão mais velho.
— Ah, sim! — disse D. Bernardo. —
E o que é feito dela?
— Quando o vosso irmão mais velho
morreu, em 1488, o senhor vosso pai mandou que D. Anna de Niebla entrasse no
convento da Imaculada Conceição, da ordem de Calatrava e que lá fizesse votos
religiosos. E assim decidiu porque o vosso segundo irmão já estava casado e vós
pertenceis a uma ordem religiosa que prescreve o celibato.
D. Bernardo deu um suspiro.
— É verdade, disse.
E não fez mais pergunta alguma.
Como Anna de Niebla era muito
amada no castelo de Béjar, o criado, aproveitando-se de ter caído a conversa
sobre a jovem rica e herdeira, procurou continuá-la.
Contudo, mal articulou uma
palavra, D. Bernardo impôs-lhe silêncio de um modo tão peremptório, que bem
mostrou que já estava inteirado de quanto queria saber.
Além disto, não havia que se
enganar acerca das causas que tinham trazido D. Bernardo ao castelo de seus
pais, pois teve ele cuidado de logo no primeiro dia declará-las a todos. O
castelo de Béjar ficava a duas ou três léguas de uma fonte a quem davam o
título de santa, à qual a vizinhança do convento da Imaculada Conceição
atribuía a induvidosa prerrogativa de fazer milagres.
Essa fonte era especialmente
virtuosa na cura de feridas e, como dissemos, D. Bernardo ainda estava magro,
pálido e enfermo dos golpes que recebera no cerco de Granada.
Assim, no dia seguinte, D.
Bernardo resolveu começar o tratamento a que, com sua profunda devoção,
esperava dever pronta cura. O procedimento era facílimo de seguir: D. Bernardo
faria o que fazia qualquer camponês que viesse implorar a assistência a Virgem
Santíssima, sob cuja invocação se achava a fonte. Acima da fonte levantava-se
um penhasco e sobre esse penhasco havia uma cruz. Devia-se subir descalço ao
rochedo, ajoelhar-se diante da cruz, rezar devotamente cinco Padres-nossos e outras tantas Ave-marias,
descer então ainda descalço, beber um copo de água, e retirar-se para casa.
As romarias dividiam-se em
novenas: ao cabo da terceira novena, isto é, depois do vigésimo sétimo dia, era
raro que o devoto não estivesse curado.
Ao romper do dia seguinte, D.
Bernardo de Zúñiga mandou preparar seu cavalo. Como cem vezes na sua mocidade
tinha ido à fonte, partiu sozinho para sua romaria milagrosa.
Chegando à fonte, apeou-se,
amarrou o cavalo a uma árvore, descalçou-se, subiu o penhasco, rezou seus cinco
Padres-nossos e as suas cinco Ave-marias,
desceu, bebeu um copo de água ao pé da fonte, calçou-se de novo, de novo montou
a cavalo, voltou um olhar, por certo cheio de devoção, para o convento da
Imaculada Conceição —que, distante meia légua daquele lugar, despontava por
entre as árvores —, e retornou ao castelo.
Cada dia repetiu D. Bernardo a
sua romaria, e facilmente se via que a água maravilhosa bem operava sobre o seu
corpo, embora ele conservasse o seu temperamento triste, solitário e quase
selvagem.
Assim se passaram as três
novenas.
Durante os últimos dias da
terceira, sua saúde estava de todo restabelecida, e ele já havia anunciado o
seu regresso ao exército, quando, no vigésimo sétimo dia, estando ajoelhado ao
pé da cruz, rezando a sua penúltima Ave-maria, viu
aproximar-se um cortejo que não era destituído de interesse para quem tantas
vezes, ao retirar-se da fonte, havia voltado os olhos para o Convento da
Imaculada Conceição.
Era um séquito composto de
freiras, acompanhando uma liteira descoberta, carregada por camponeses. Nessa
liteira vinha uma freira, que parecia ser trazida em triunfo à fonte:
escrupulosamente cobertas com seus véus estavam a freira da liteira e as que a
acompanhavam.
Em vez de descer, como tinha por
costume, para beber água da fonte, D. Bernardo esperou, sem dúvida curioso de
ver o que ia acontecer. E tamanha era essa curiosidade que o fez esquecer-se de
rezar a sua última Ave-maria.
O cortejo parou diante da fonte.
A freira que vinha na liteira desceu, tirou os sapatos e, com o andar a
princípio vacilante, mas que pouco a pouco se tornou mais seguro, começou a
subir. Chegado ao pé da cruz que D. Bernardo, recuando, havia deixado
desimpedida, a freira ajoelhou-se, fez sua oração, levantou-se e, descendo, foi
ter com a suas companheiras.
Foi uma ilusão. Pareceu a D.
Bernardo, porém, que, no momento de ajoelhar-se e erguesse, a freira, através
do véu, olhara para ele por uns instantes.
De sua parte, à aproximação da
santa donzela, tinha D. Bernardo sentido uma estranha comoção. Um certo
deslumbramento passou-lhe pelos olhos, ele havia-se encostado a uma árvore,
como se, mal seguro na sua base, o rochedo tivesse tremido sob os seus pés.
À medida, porém, que dele
havia-se desviado a freira, tinha-lhe voltado a força. Então, para acompanhá-la
por mais tempo com os olhos, ele inclinara-se sobre a borda do rochedo
sobranceiro à fonte. A freira havia descido, e chegado à fonte e, tornando-se
visível somente para a água santa, tinha levantado o seu véu, e bebido, como
era costume.
Então sucedeu uma coisa em que
ninguém teria acreditado, e que por isso ninguém tinha podido prever. O límpido
cristal da fonte transformou-se em espelho e, do lugar em que se achava, D.
Bernardo de Zúñiga viu a imagem da freira tão distintamente quanto se estivesse
refletida por um espelho.
Apesar da palidez, era tal
milagre de beleza que D. Bernardo de Zúñiga deu um tão alto grito de surpresa e
admiração que causou um estremecimento à santa enferma. Esta, mal tendo molhado
os lábios na água, abaixou o véu e entrou na liteira. Antes, porém, voltou a
cabeça para onde estava o imprudente cavaleiro.
D. Bernardo de Zúñiga desceu
rapidamente os degraus do rochedo e, dirigindo-se a um dos espectadores dessa
cena, indagou:
— Sabes quem é essa mulher que
acaba de beber à fonte e a quem levam para o convento da Imaculada Conceição?
— Sei — respondeu o interrogado.
— É uma freira que acaba de estar doente, e que todos presumiam que não
escaparia. De fato, esteve morta cerca de uma hora. Mas, pela virtude milagrosa
da água santa foi curada, e por isso saiu hoje pela primeira vez para executar
o seu voto de vir pessoalmente beber da água que ainda ontem era necessário
levar à sua cama.
— E — perguntou D. de Zúñiga com
uma comoção que indicava a importância que dava a sua pergunta — sabes como se
chama essa freira?
— Sei. Chama-se Anna de Niebla, e
é sobrinha de Pedro de Zúñiga, conde de Bañares, marquês de Ayamonte, cujo
filho, de volta do exército há cerca de um mês, trouxe a boa notícia da tomada
de Granada.
— Anna de Niebla! — disse consigo D.
Bernardo. Ah! Bem a tinha reconhecido. Nunca, porém, teria adivinhado que
ficaria tão bonita!...
D. Bernardo tinha, pois, tornado
a ver essa moça, a quem deixara criança no castelo Béjar, e cuja memória muito
provavelmente o acompanhara nos seus dez anos de ausência.
Durante esses dez anos de
solitário cismar, em que o pensamento de D. Bernardo tinha acompanhado a viagem
de Anna de Niebla na primeira entrada da vida, a moça se havia feito mulher.
Tinha chegado à idade de vinte anos, enquanto chegava D. Bernardo aos trinta e
cinco. Tinha tomado o hábito de freira enquanto ele havia-se envolvido no manto
de cavaleiro de Alcântara.
Ela era noiva do Senhor e ele
cavaleiro de Cristo. Aos dois moços educados na mesma casa, depois de lá
saídos, estava vedada toda comunicação por palavras, toda troca de olhares.
Eis aí, sem dúvida, por que a
vista de sua prima, no singular espelho em que tinha ele reconhecido as suas
feições, havia despertado tão viva comoção no coração de D. Bernardo de Zúñiga.
Recolheu-se para o castelo ainda
mais pensativo, mais taciturno do que costumava ser, e quase imediatamente foi
encerrar-se na câmara em que tinha visto o retrato de Anna de Niebla em menina.
Sem dúvida, procurava descobrir no quadro as feições que tinha acabado de ver
tremerem no cristal da fonte, e acompanhar o seu juvenil desenvolvimento nos
dez anos que acabavam de passar-se, a vê-las desabrochar ao bafejo da vida como
o sol desabrocha a mimosa flor.
Ele que, de há quinze anos, nos
campos de batalha, nas surpresas dos arraiais, nos assaltos das cidades, lutava
com os inimigos mortais da sua pátria e da sua religião, nem procurou resistir
por um momento ao inimigo mais terrível que o atacava corpo a corpo, e que no
primeiro assalto o deixara prostrado.
D. Bernardo de Zúñiga, o
cavaleiro de Alcântara, amava a Anna de Niebla, a freira da Imaculada
Conceição.
Cumpria acabar, fugir sem perda
de um momento, voltar a esses combates reais, a essas feridas físicas que matam
só o corpo. Para tanto não teve coragem D. Bernardo.
Logo no dia seguinte, e bem que
só faltasse uma Ave-maria para concluir a sua novena,
voltou ele à fonte, já não para rezar. O amor apoderara-se do seu coração, e nele
não deixava lugar para as orações. Somente, sentado no píncaro do penhasco,
fitos os olhos no convento, aguardava outro cortejo semelhante à da véspera.
Mas esperou em vão.
Assim, três dias, sem descansar,
sem dormir, esperou percorrendo os arredores do convento, cujas portas lhe
estavam impiedosamente fechadas. No quarto dia, que era um domingo, sabia que
se achavam abertas as portas da igreja, e que todos podiam entrar.
Encerradas no coro, as freiras
cantavam, ocultas por grandes cortinas. Elas eram ouvidas, mas não eram vistas.
E esse dia tão desejado chegou
enfim. Por desgraça, D. Bernardo só o esperava com profana tensão. E a ideia de
que era esse o dia em que podia aproximar-se do Senhor nem lhe acudiu ao
espírito: só pensava em aproximar-se de Anna de Niebla.
À hora em que se abriram as
portas do convento, já lá estava esperando.
Às duas da manhã, tinha ido ele
próprio à estribaria, selado o seu cavalo, e saído sem avisar a pessoa alguma.
Das duas horas até as oito, tinha vagado nos arredores da fonte, não mais
envolto o rosto no seu manto para defender-se do vento frio da serra, mas
descoberto, implorando a todos os ventos da noite para apagar as chamas
ardentes que lhe pareciam devorar o cérebro.
Achando-se, enfim, na igreja, D.
Bernardo foi ajoelhar-se mais perto o que pôde do coro e lá ficou esperando,
com os joelhos na laje, e o rosto encostado no mármore.
O serviço divino começou. D.
Bernardo nenhum pensamento teve para o Salvador dos homens, a cujo santo
sacrifício assistia: sua alma toda estava aberta como um vaso para absorver
esses cânticos que lhe haviam sido prometidos, e no meio dos quais devia subir
ao céu a voz de Anna de Niebla.
Cada vez que, no meio desse suave
concerto, uma voz mais harmoniosa, mais pura, mais vibrante do que as outras se
fazia ouvir, imediatamente D. Bernardo estremecia, e levantava maquinalmente
ambas as mãos para o céu. Parecia que procurava ele suspender-se a esse som, e
com ele subir ao céu.
Depois, quando o som se
extinguia, coberto pelas outras vozes, ou exausto no seu próprio êxtase, caía
ele com um suspiro, como se só tivesse vivido por essa vibração, e que sem ela
não lhe fosse dado viver.
Acabou-se a missa no meio de
comoções até então desconhecidas. Os cânticos cessaram, extinguiram-se os
últimos sons do órgão, os assistentes saíram da igreja, os oficiantes
recolheram-se ao convento. O monumento não era
mais que um cadáver mudo e imóvel. A oração, que era sua alma, tinha-se
recolhido ao céu.
D. Bernardo ficou só. Pôde,
então, olhar ao redor de si. Por cima de sua cabeça estava pendurado um quadro
representando a Saudação Angélica. E num dos seus cantos via-se a doadora, de
joelhos, com as mãos postas em oração.
O cavaleiro de Alcântara deu um
grito de surpresa. A doadora, essa mulher de joelhos a rezar, conforme o
costume daquele tempo, era Anna de Niebla.
D. Bernardo chamou pelo
sacristão, que estava apagando as velas, e interrogou-o.
Aquele quadro era obra de Anna de
Niebla, que pintara a si mesma rezando, em obediência ao costume do tempo, que
quase sempre para o donatário reclamava um humilde lugar na sagrada tela.
Tinha soado a hora da retirada.
Ao convite que lhe fez o sacristão, D. Bernardo inclinou-se e saiu.
Ocorrera-lhe uma ideia: a de ter
para si, a todo custo, aquele quadro.
Todas as propostas que fizera ou
mandara fazer ao capítulo do convento foram rejeitadas. Responderam-lhe que o
que havia sido dado não podia ser vendido.
D. Bernardo jurou que havia de
possuir aquele quadro. Ajuntou todo dinheiro que pôde, cerca de vinte mil
reais, muito mais do que valia a pintura, e resolveu, no primeiro domingo,
entrar com todos na igreja, como já havia feito, e conservar-se oculto em algum
canto. De noite, tiraria o quadro da parede e enrolaria, deixando os vinte mil
reais sobre o altar a que ele pertencia.
Quanto a evadir-se da igreja,
tinha reparado que as janelas ficavam dezoito palmos, quando muito, acima do
chão, e davam para o cemitério: amontoaria, pois, cadeiras uma por cima das
outras, e facilmente sairia da igreja por uma janela.
Depois, iria recolher-se ao
castelo com seu tesouro, que seria magnificamente emoldurado, e o poria
defronte do retrato de Anna Niebla. Então, passaria a sua vida nessa câmara em
que a sua própria vida estava encerrada.
Corriam os dias e as noites na
expectativa do domingo, que enfim chegou. D. Bernardo de Zúñiga foi um dos
primeiros a entrar na igreja, como no domingo precedente. Trazia os seus vinte
mil reais em ouro.
Mas, o que excitou a sua atenção,
logo que entrou, foi o fúnebre aspecto que revestia a igreja. Por entre as
grades do coro, viam-se brilhar as extremidades dos círios iluminando o
fastígio de uma essa.
D. Bernardo quis saber o que era.
Nessa mesma manhã, uma freira
havia falecido, e o serviço a que se ia assistir era uma missa fúnebre.
Mas, como dissemos, D. Bernardo
não vinha à igreja por amor à missa: vinha para realizar o que planejara.
O quadro angélico estava no seu
lugar, por cima do altar, na capela da Virgem.
A janela mais baixa teria seus 16
ou 18 palmos, e graças aos bancos e cadeiras sobrepostos, nada era mais fácil
do que sair. Esses pensamentos preocuparam D. Bernardo enquanto durou o serviço
divino. Bem sentia que ia cometer uma má ação. Em favor, porém, de sua vida
inteira passada a combater os infiéis, em favor da enorme quantia que deixava
em lugar do quadro, esperava que o Senhor lhe perdoasse.
Depois, de vez em quando, ouvia
esses fúnebres cantos, e por entre todas essas vozes frescas, puras e sonoras,
procurava inutilmente a vibração daquela voz cuja celeste inflexão havia, oito
dias antes, despertado todas as fibras de sua alma, e a havia feito ressoar
como uma harpa celeste sob os dedos de um serafim.
A corda harmoniosa estava
ausente, e parecia que faltava uma tecla ao sacro teclado.
Concluiu-se a missa. Cada um saiu
por seu turno. Ao passar por diante de um confessionário, D. Bernardo de Zúñiga
o abriu, nele entrou, e fechou-se por dentro.
Ninguém o viu.
As portas da igreja rangeram
sobre os seus gonzos. D. Bernardo ouviu o rumor das fechaduras. Os passos do
sacristão roçaram no confessionário em que estava escondido e afastaram-se.
Tudo ficou em silencio.
Somente, de vez em quando, no
coro sempre fechado, ouvia-se o roçar de um passo na laje e, depois, depois o
sussurro de uma oração feita em voz baixa.
Era alguma freira que vinha rezar
as ladainhas da Virgem sobre o corpo de sua finada companheira.
Chegou a noite. Na igreja,
espalhou-se a escuridão. Só o coro ficou iluminado.
Depois apareceu a lua e um dos
seus raios, penetrando pela janela, esparziu um pálido clarão pela igreja.
Pouco a pouco, desapareceram dentro e fora todos os rumores da vida. Por volta
das onze horas cessaram, ao redor da defunta, as últimas orações, e tudo deu
lugar a esse religioso silencio particular às igrejas, aos claustros e aos
cemitérios.
O grito monótono e regular de uma
coruja, pousada muito provavelmente em alguma árvore próxima da igreja,
continuou solitariamente em sua triste periodicidade.
D. Bernardo pensou que era
chegado o momento em que deveria executar seu projeto. Empurrou a porta do
confessionário em que estava oculto e pôs o pé fora do seu retiro.
No momento em que pisava na laje
da igreja, começou a dar meia noite.
Esperou, imóvel, que as doze
badaladas tivessem lentamente vibrado, e pouco a pouco se fossem perdendo em
insensíveis estremecimentos, para sair de todo do confessionário, e dirigir-se
para o coro: queria assegurar-se de que já ninguém estava de vigia junto à
defunta e que ninguém o surpreenderia na execução do seu plano.
Mas, ao primeiro passo que deu
para o coro, a grade abriu-se, vagarosamente impelida, e apareceu uma freira.
D. Bernardo deu um grito: essa
freira era Anna de Niebla.
O véu levantado permitia a visão
de seu rosto. Uma grinalda de rosas brancas segurava-lhe o véu na fronte. Tinha
na mão um rosário de marfim que, comparado com a alvura dessa mão, parecia
amarelo.
— Anna! — exclamou o moço.
— D. Bernardo! — balbuciou a
freira.
D. Bernardo correu para ela.
— Disseste meu nome! — exclamou.
—Reconheceste-me, pois!
— Sim, respondeu a freira.
— Na fonte santa?
— Na fonte santa.
E D. Bernardo envolveu a freira
nos braços. Anna nada fez para livrar-se do amoroso aperto.
— Mas — perguntou D. Bernardo —,
perdoa-me, pois enlouqueço de prazer, enlouqueço de ventura, o que vieste aqui
fazer?
— Sabia que estavas aqui.
— E vinhas ter comigo?
— Sim.
— Então sabes que te amo?
—Sei.
—E tu, me amas?
Os lábios da freira ficaram
mudos.
— Oh! Niebla! Niebla! Uma
palavra, uma só. Pela nossa mocidade, pelo meu amor, pelo nome de Jesus Cristo:
amas-me?
— Professei, e os meus votos... —
murmurou a freira...
— E o que valem os votos! —
exclamou D. Bernardo. — Pois eu também não os fiz, não os rompi?
— Estou morta para o mundo —
disse a pálida noiva.
— Ainda que morta estivesses para
a vida, Niebla, eu te faria ressuscitar.
— Tu me farias ressuscitar! —
disse Anna, balançando a cabeça. — Pois eu, Bernardo, te farei morrer.
— Antes dormir juntos na mesma
sepultura do que viver separados.
— Então estás resolvido,
Bernardo?
— A raptar-te, a levar-te comigo
ao fim do mundo, se necessário for, além dos oceanos.
— E quando?
— Agora.
— As portas estão fechadas.
— Tens razão. Mas estarás livre
amanhã?
— Sempre estou livre.
— Pois espera-me amanhã aqui, a
esta hora? Terei comigo uma chave da igreja.
— Esperarei por ti. Mas hás mesmo
de vir?
— Juro pela vida. Mas tu,
qual é o teu juramento? Qual o teu penhor?
— Toma — disse ela —, aqui tens o
meu rosário.
E atou-lhe em redor do pescoço o
rosário de marfim. Ao mesmo tempo, D. Bernardo abraçou a freira, e a apertou de
encontro ao peito. Seus lábios encontraram-se e trocaram um beijo.
Em vez, porém, de estar abrasado,
como o primeiro beijo de amor, foi glacial o contato dos lábios da freira, e o
frio, que coou nas veias de D. Bernardo, traspassou-lhe o coração.
— Bem — disse Anna —, e agora já
nenhuma força humana poderá nos separar. Até outra vez, Zúñiga.
— Até outra vez, querida Niebla.
Até amanhã.
— Até amanhã.
A freira libertou-se dos braços
do seu amante e afastou-se lentamente, voltando de vez em quando a cabeça, e
recolheu-se para o coro, cuja grade se fechou atrás dela.
D. Bernardo de Zúñiga deixou-a
recolher-se, estendendo para ela os braços, conservando-se, porém, imóvel no
mesmo lugar. Só quando a viu desaparecer, tratou de retirar-se.
Juntou quatro bancos ao lado uns
dos outros, pôs outros quatro bancos por cima, sobre eles deitou uma cadeira, e
galgou a janela por onde saiu. A erva era alta e densa como costuma crescer nos
cemitérios. Pôde, pois, dar o salto sem machucar-se.
Não precisava levar o quadro de
Anna de Niebla, pois no dia seguinte teria própria Anna de Niebla
para si.
O dia despontava no horizonte
quando D. Bernardo de Zúñiga foi tomar seu cavalo na estalagem em que o havia
deixado.
Inconcebível incômodo tinha-se
apoderado dele. Se bem que envolto em seu largo manto, sentia que o frio ia
gradualmente coando pelas veias.
Perguntou ao criado da estribaria
quem era o serralheiro do convento. O criado o indicou. Morava na
extremidade da aldeia.
D. Bernardo, para se aquecer, pôs
seu cavalo a trote e, ao cabo de alguns instantes, ouviu as marteladas batendo
na bigorna, e pelas frestas da janela e da porta viu saltarem até o meio da rua
faíscas de ferro em brasa. Chegando à porta do serralheiro, apeou-se do cavalo.
Porém, cada vez mais invadido pelo frio, assustou-se da automática rigidez dos
seus movimentos. Também de sua parte, tinha o serralheiro ficado de martelo
levantado, olhando para esse nobre fidalgo, envolto no seu manto de cavaleiro
da ordem de Alcântara, que se apeava à sua porta, e entrava na sua tenda como
um freguês ordinário.
Vendo que era a ele próprio que o
cavaleiro procurava, o serralheiro largou o seu martelo, tirou o barrete e
perguntou com polidez:
— O que há para seu serviço, meu
senhor?
— És o serralheiro do convento da
Imaculada Conceição? — perguntou o cavaleiro.
— Sou, sim, senhor.
— Tens as chaves do convento?
— Não, senhor. Tenho apenas
o molde. Caso se perca a chave, terei como substituí-la.
— Pois bem, quero a chave da
igreja.
—Desculpe-me, senhor, mas é do
meu dever perguntar-lhe o que dela pretende fazer.
— Quero com ela marcar meus cães
para preservá-los da raiva.
— É uma prerrogativa do senhor.
Será vossa excelência senhor das terras em que está construída a igreja?
— Sou D. Bernardo de Zúñiga,
filho de D. Pedro de Zúñiga, conde de Bañares, marquês de Ayamonte. Comando cem
homens de armas, e sou cavaleiro de Alcântara, como podes ver pelo meu
manto.
— Não pode ser! — disse o
serralheiro, com expressão de visível terror.
— E por que não pode ser?
— Porque vossa excelência está
mesmo vivo e vivíssimo, se bem que mostre estar com muito frio, e D. Bernardo
de Zúñiga morreu esta noite, a uma hora da madrugada.
— E quem te deu essa engraçada
notícia? — perguntou o cavaleiro.
— Um escudeiro, trajando a libré
e as armas de Béjar. Há meia hora ele passou para dar ordens a um serviço
fúnebre no convento da Imaculada Conceição.
D. Bernardo desatou a rir.
— Toma — disse. — Aqui tens dez
moedas de ouro pela tua chave. Virei buscá-la e eu te darei outro tanto.
O serralheiro inclinou-se em
sinal de assentimento. Vinte moedas de ouro era mais do que ganhava por ano, e
bem merecia que se expusesse a uma repreensão.
Além do quê, por que motivo seria
repreendido? Era costume marcar os cães de caça com as chaves das igrejas para
os preservar da raiva. Um fidalgo que tão generosamente o pagava não podia,
fosse quem fosse, ser um ladrão.
D. Bernardo tornou a montar a
cavalo. Tinha procurado aquecer-se na forja, mas não o havia conseguido. E
esperava consegui-lo do sol, que já começava a mostrar-se brilhante, como o é
na Espanha no mês de março.
Dirigiu-se para o campo e pôs-se
a galope. O frio cada vez mais o invadia, e glaciais estremecimentos
corriam-lhe por todo o corpo.
Nem nisso ficava: parecia estar
preso ao convento, pois de contínuo descrevia um círculo cujo centro era a
torre da igreja.
Por volta das onze horas, ao
atravessar um bosque, viu um carpinteiro trabalhando em tábuas de carvalho. Era
trabalho a que mais de uma vez assistira. Mas, no entanto, sentiu-se impelido a
falar com esse artífice.
O que estás fazendo? —
perguntou-lhe.
— Bem vê vossa excelência —
respondeu este.
— Não, e tanto que te pergunto.
— Pois estou fazendo um caixão de
defunto.
— De carvalho! Então é para algum
fidalgo?
— É para o cavaleiro D. Bernardo
de Zúñiga, filho de D. Pedro de Zúñiga, conde de Bañares, marquês de Ayamonte.
— Então o cavaleiro morreu?
— Esta noite, por volta de uma
hora da madrugada.
— És um louco — disse consigo o
cavaleiro, levantando os ombros.
E prosseguiu o seu caminho.
Ao aproximar-se da aldeia em que
havia encomendado a chave, encontrou, por volta de uma hora, um frade montado
em uma mula, acompanhado por um sacristão, que vinha a pé.
O sacristão levava um crucifixo e
uma caldeirinha de água benta.
D. Bernardo, que já tinha feito
recuar seu cavalo para deixar passar o frade, mudou subitamente de opinião e
fez sinal de que lhe desejava falar.
O frade parou.
— De onde vem vossa
reverendíssima, padre mestre?
— Do castelo de Béjar, ilustre
cavaleiro.
— Do castelo de Béjar! — repetiu
atônito D. Bernardo.
— Sim.
— E o que foi fazer no castelo?
— Fui confessar e sacramentar D.
Bernardo de Zúñiga que, por volta da meia noite, sentindo aproximar-se a morte,
mandou chamar-me para receber a sua confissão. Embora eu tenha vindo com toda a
pressa, cheguei já tarde.
— Já tarde? E por quê?
— Quando cheguei, D. Bernardo de Zúñiga
já estava morto.
— Já estava morto! — repetiu o
cavaleiro.
— Sim, e, além disso, morto sem
confessar-se! Que Deus tenha piedade de sua alma!
— A que horas morreu?
— Por volta de uma hora da
madrugada — respondeu o frade.
— Estão, sem dúvida, mancomunados
— disse consigo o cavaleiro, irritado. — Essa gente combinou pôr-me doido.
E pôs-se de novo no seu cavalo, a
galope.
Daí a dez minutos, estava na
porta do serralheiro.
— Oh! Oh! — disse o serralheiro.
— O que tem vossa excelência? Está tão amarelo!
— Estou com frio — disse D. Bernardo.
— Aqui tem a sua chave.
— Aqui está o teu ouro.
E pôs-lhe na mão outras doze moedas.
— Jesus! — exclamou o
serralheiro. — Onde vossa excelência guarda o dinheiro?
— Por que perguntas?
— Porque o seu ouro está frio
como gelo. A propósito...
— O que queres?
— Não se esqueça de persignar-se
três vezes antes de servir-se da chave.
— Por quê?
— Porque, quando se forja uma
chave de igreja, é sempre o diabo quem move o fole.
— Bom. E tu não te esqueças de
rezar pela alma de D. Bernardo de Zúñiga — disse o cavaleiro, tentando rir-se.
— Estou pronto — disse o
serralheiro. — Receio, porém, que sejam infrutíferas as minhas orações. Pois
dizem que D. Bernardo morreu em pecado mortal.
Embora D. Bernardo houvesse
acolhido esses diversos encontros com ar sossegado, e tivesse recebido essas
diversas respostas com um sorriso, o que desde pela manhã tinha visto e ouvido
não tinha deixado de causar-lhe, sem embargo de toda a sua valentia, grande
impressão. Especialmente esse frio mortal que, sempre aumentando,
enregelando-lhe até o coração, penetrando-lhe até a medula dos ossos, por mais
que resistisse, deixava-o prostrado. Procurava carregar sobre os estribos, e já
não sentia o apoio em que descansava. Com uma das mãos apertava a outra, e já
não sentia o cingir da sua mão.
O ar da noite chegou, sibilando
em seus ouvidos, e atravessando o seu manto e as suas roupas, como se não
tivessem mais consistência do que uma teia de aranha.
Noite fechada, entrou no
cemitério, e amarrou o cavalo ao pé de uma árvore. Durante todo o dia não se
lembrara de comer, nem tampouco o seu cavalo.
Deitou-se entre as altas ervas
para, tanto quanto pudesse, evitar o vento glacial que o aniquilava. Todavia,
mal tocou o chão, sentiu-se pior ainda. Essa terra cheia de átomos da morte
parecia ser a laje de algum sepulcro.
Pouco a pouco, por maior esforço
que fizesse para resistir ao frio, caiu em uma espécie de torpor, do qual veio
arrancá-lo o barulho que dois homens faziam cavando uma sepultura.
Dobrou os esforços e ergueu-se
sobre o cotovelo.
Os dois coveiros, vendo um homem
que parecia sair de uma cova, deram um grito.
— Ora, camaradas! — disse ele aos
coveiros. — Agradeço-lhes por terem-me acordado. Já era tempo.
— Com efeito — disseram os
coveiros —, deve o senhor agradecer-nos. Pois quem aqui dorme, não costuma
acordar.
— E o que estão fazendo, a esta
hora, neste cemitério?
— Bem o está vendo.
— Abrindo uma cova?
— Sim, senhor.
— Para quem?
— Para D. Bernardo de Zúñiga.
— Para D. Bernardo de Zúñiga?
— Sim. Parece que o digno
fidalgo, no testamento que fez há quinze dias ou três semanas, pediu que o
enterrassem no convento da Imaculada Conceição. De modo que foram nos dizer
esta tarde que viéssemos aqui trabalhar. Agora trata-se de recuperar o tempo
perdido.
— E a que horas morreu?
— A noite passada, a uma hora da
madrugada. Agora que está pronta a cova, pode D. Bernardo vir quando lhe
aprouver. Adeus, senhor.
— Espera — disse o cavaleiro. —
Todo trabalho merece pagamento. Toma, tens para ti e teu camarada.
E atirou ao chão sete ou oito
moedas de ouro que os coveiros apressadamente apanharam.
— Virgem Santa! — disse um deles.
— Espero que o vinho que vamos beber à sua saúde não esteja tão frio como o seu
dinheiro. Pois então haveria de que enregelar a alma dentro do corpo.
E saíram do cemitério.
Acabavam de dar onze horas e meia.
D. Bernardo passeou cerca de meia-hora,
tendo todas as dificuldades imagináveis em manter-se em pé, tanto que sentia o
sangue gelar-se nas veias. Enfim, deu meia-noite. À primeira badalada, D.
Bernardo introduziu a chave na fechadura e abriu a porta.
Grande foi o espanto do cavaleiro. A
igreja estava iluminada, o coro aberto, os pilares e abobadas forradas de
preto. Mil luzes cobriam os altares.
No meio da capela, estava erguido
um estrado; em cima dele estava deitada uma freira, vestida de branco, tendo na
cabeça um véu branco, seguro na sua fronte por uma coroa de rosas brancas.
Um estranho pressentimento
apertou o coração do cavaleiro. Aproximou-se ele do estrado, inclinou-se para o
cadáver, levantou o véu, e deu um grito.
O cadáver era de Anna de Niebla.
Volta-se ele, e em redor de si
procura a quem possa interrogar. Descobre sacristão.
— Que cadáver é este? — pergunta.
— O de Anna de Niebla,
responde-lhe o sacristão.
— Quando morreu?
— Domingo de manhã.
D. Bernardo sentiu aumentar ainda
mais o frio que lhe regelava o corpo, embora isso lhe parecesse impossível.
Passou a mão pela testa.
— Então ontem à meia-noite estava
morta?
— Com certeza.
— Onde estava ela a essa hora?
— Onde se acha agora. Apenas a
igreja não estava forrada de preto, as velas da essa eram as únicas acesas, e a
grade do coro estava fechada.
— Então, quem ontem a essa hora
estivesse visto Anna de Niebla — prosseguiu o cavaleiro —, teria visto um
fantasma? Quem lhe houvesse falado, teria falado com um espectro?
— Preserve Deus um cristão de
semelhante infortúnio! É certo, pois, que teria falado com um espectro, que
teria visto um fantasma.
D. Bernardo vacilou.
Então tudo lhe ficou claro. Era
noivo de um fantasma. Tinha recebido o beijo de um espectro.
E por isso tão glacial fora
aquele beijo. Por isso um rio de gelo corria por todo o seu corpo.
Nesse momento, a notícia de sua própria morte,
que lhe havia sido dada pelo serralheiro, pelo marceneiro, pelo frade e pelos
coveiros, voltou-lhe ao espirito.
A uma hora ele tinha falecido,
haviam-lhe dito.
A uma hora tinha recebido o beijo
de Anna de Niebla.
Estava morto ou vivo? Já havia
separação da alma e do corpo?
Seria sua a alma que errava em
torno do convento da Imaculada Conceição, enquanto o seu corpo jazia morto no
castelo de Béjar?
Abaixou o véu que havia levantado
da face da defunta e precipitou-se para fora da igreja: estava como louco.
Batia uma hora.
Inclinada a cabeça, opresso o
coração, corre D. Bernardo ao cemitério. Escorrega na cova que havia sido
aberta, cai, levanta-se, desata o seu cavalo, salta na sela, e precipita-se na
direção do castelo de Béjar.
Somente ali poderá resolver o
terrível problema de saber se está morto ou vivo.
Mas, coisa estranha! Suas
sensações estão quase apagadas. O cavalo em que vai montado, mal ele o sente
entre as pernas. A única impressão a que é sensível é a desse frio crescente
que o invade como um sopro da morte.
Apressa o seu cavalo, o qual
também parece ser um cavalo-espectro. Parece-lhe que lhe crescem as crinas, que
já seus pés não tocam no chão, que o galopar já não se ouve.
De súbito, à sua direita e à sua
esquerda aparecem, sem rumor, dois cães negros. Tampouco como os cavalos eles
tocam o chão. Não correm, voam.
Todos os objetos que costeiam a estrada
somem-se aos olhos do cavaleiro, como que levados por um furacão. Enfim, ao
longe, avista as torres, os muros e as portas do castelo de Béjar.
Ali, todas as suas dúvidas devem
ser resolvidas. Por isso, apressa o seu cavalo, a quem os cães acompanham, a
quem persegue o sino.
E também o castelo parece acudir
ao seu encontro. Aberta está a porta, o cavaleiro transpõe a soleira, entra.
Está no pátio.
Ninguém reparou nele. Entretanto,
o pátio está cheio de gente.
Fala, ninguém lhe responde.
Interroga, ninguém o vê. Apalpa, ninguém o sente.
Nesse momento, um arauto aparece
no topo da escada exterior.
— Ouçam! Ouçam! Ouçam! — diz ele.
— O corpo de D. Bernardo de Zúñiga vai ser levado, conforme o desejo expresso
no seu testamento, para o cemitério do convento da Imaculada Conceição. Venham
ter comigo os que têm direito de lançar-lhe água benta.
E entra no castelo.
O cavaleiro quer prosseguir a sua
viagem até o fim. Desce da sua cavalgadura. Mas já não sente o chão em que
pisa, e cai ajoelhado, procurando agarrar-se aos estribos do seu cavalo.
Neste momento, saltam-lhe à
garganta os dois cães e o estrangulam.
Quis dar um grito, mas não
conseguiu: mal pôde exalar um suspiro.
Os assistentes viram dois cães
que pareciam estar brigando, enquanto um cavalo esvaecia-se como uma nuvem.
Quiseram enxotar os cães. Porém
esses não se separaram senão quando concluíram o trabalho invisível em que
estavam ocupados.
Então, precipitaram-se fora do
pátio e desapareceram.
No lugar em que se haviam
demorado dez minutos, acharam-se restos informes e, no meio deles, o rosário de
Anna de Niebla.
Nesse momento, apareceu no topo
da escada o corpo de D. Bernardo de Zúñiga, carregado pelos moços e escudeiros
do castelo.
No dia seguinte, foi ele com
grande pompa enterrado no cemitério da Imaculada Conceição, ao lado de sua
prima Anna de Niebla.
Deus lhe seja misericordioso.
Novela publicada originariamente no
periódico carioca O Brasil (RJ) entre 11 e 17 de
outubro de 1849. Tradução de autor desconhecido do séc. XIX com a participação
de Paulo Soriano. Fonte do texto (em fac-símile):
Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Pesquisa, transcrição, atualização
ortográfica e adaptação textual: Paulo Soriano.
Notas
[1] Abû ‘Abd Allâh
Mohammed ben Abî al-Hasan ‘Alî, dito Boadil (c. de 1460 - c. 1533), foi o
último rei de Granada.
[2] Na verdade, as
chaves da cidade de Granada foram entregues no dia 2 de janeiro de 1492, uma
segunda-feira.
[3] Na realidade, a
promessa de Colombo seria a de chegar às Índias por uma nova rota. O navegante
Genovês não sabia da existência de um novo continente.
[4] Ordem religiosa e
militar criada no ano 1154 no Reino de Galiza e Leão. Semelhantemente aos
antigos templários, os cavaleiros da ordem de Alcântara prestavam votos de
castidade.
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