UM VISITANTE INDESEJADO - Conto de Terror - Paulo Soriano
UM
VISITANTE INDESEJADO
Por Paulo
Soriano
Confortavelmente reclinado em sua
cadeira de vime, próximo ao calor aconchegante da pesada lareira, onde ardia um
fogo suave, o velho cavalheiro saboreava a fumaça espessa de um havana robusto e,
de olhos semicerrados, meditava profundamente. Contudo, foi arrancado das
deliciosas excogitações pelo fiel lacaio que, penetrando na afável penumbra da
biblioteca, avisou:
—
Há um cavalheiro que deseja vê-lo, senhor. Ele disse que veio tratar de um
assunto urgente e estritamente pessoal.
—
De quem se trata? Ele trouxe o cartão de visitas? — perguntou, muito
contrariado, o cavalheiro idoso. Definitivamente, não gostava de ser
interrompido quando as fluidas e agradáveis divagações, sobretudo se flutuantes
à deriva, por fim conduziam, sem que ele mesmo percebesse, aos seus assuntos
preferidos: dinheiro fácil e mulheres levianas. Quando da entrada do lacaio, o
cavalheiro associava, num mesmo e prolongado devaneio, ambas as delícias.
—
Não — respondeu o lacaio, cônscio de que cumpria os nobres deveres inerentes à profissão,
ainda que tão inflexível dedicação implicasse graves aborrecimentos ao seu
senhor. Por isso enfrentou, com serenidade, o olhar dardejante do patrão, antes
de prosseguir:
—
Mas o cavalheiro disse-me que, em lhe anunciando o nome, o senhor o receberia
sem demora e com grande interesse.
—
E como se chama o cavalheiro inconveniente? — indagou o patrão, espremendo de
raiva os olhinhos suínos. Deixava bem explícita a sua impaciência.
—
Isto é algo bastante estranho, senhor. Mas ele disse chamar-se Ryan O’Hara.
Os lábios do velho senhor — e este respeitável
fidalgo era por todos conhecido justamente pelo nome Ryan O’Hara — abriram-se num
sorriso de escárnio. O criado, que aguardava uma ordem definitiva, ouviu-o
dizer, após um momento de reflexão:
—
Espere cinco minutos. Depois, faça-o entrar.
O senhor Ryan O’Hara, já calejado em
arrostar estas espécies de aborrecimentos, apressou-se em atravessar a biblioteca.
Deteve-se ante a velha escrivaninha, de cuja gaveta retirou um revólver. Depois
de examinar o tambor, escondeu a arma na cintura, entre o cinto e o cós da
calça, e sob as abas do longo casaco de feltro, aberto de alto a baixo. Era um
homem prevenido.
Voltou à poltrona. Teria problemas pela
frente. Conjecturou que havia o forte cheiro de chantagem no ar. Poderia ser
mais um dos que se diziam filho bastardo seu. De dez em dez anos, aparecia
alguém assim.
Sem que fosse esperado, o criado de
libré retornou. Disse:
—
Há outra coisa, senhor O’Hara. O cavalheiro afirmou que o assunto respeita a certo
senhor cujo nome é Derek O'Nolan e que, segundo afiançou, é íntimo conhecido de vossa
senhoria.
O lacaio não viu, mas os pelos do ancião
eriçaram-se à inquietação produzida pela onda glacial de um intenso calafrio. A
ira, que até então lhe inflamava os ocelos porcinos, subitamente feneceu. Quando,
numa explosão, finalmente gritou a ordem ao lacaio, eram o medo e a
desconfiança que adernavam na superfície de um olhar envesgado.
—
Ponha esse infeliz para fora! — vociferou. — Agora mesmo!
Há quanto tempo não ouvia aquele nome? Quarenta,
cinquenta anos? Que terríveis fantasmas do passado aquele nome — Derek O'Nolan —, outrora tão
íntimo, tão pessoal, invocava! Sem dúvida, os mortos jamais retornam de seus
túmulos. Mas os segredos em que se ocultam as coisas abjetas têm a terrível virtude
de se esgueirar pelas ranhuras das catacumbas, atravessar decênios adormecidos
e se materializar em chantagem e extorsão.
Bem que o criado tentou impedir a
entrada do estranho, mas era tarde. O jovem cavalheiro já invadira a biblioteca
e, sem esperar qualquer convite, arrastara uma cadeira para perto da lareira. Então,
sentou-se de frente ao ancião, que tremia da cabeça aos pés.
—
Por favor, Derek, faça seu criado sair — disse o intruso, baixinho. —
Precisamos conversar a sós.
Quando, a um desesperado aceno do
patrão, o criado se retirou, o recém-chegado prosseguiu:
—
Temos negócios a tratar. Antes, porém, vou-lhe narrar uma linda história.
O jovem ruivo entrelaçou os dedos das
mãos e, inclinando a cabeça, examinou, com ar inquiridor, os olhos do ancião. Com
satisfação, viu neles um grande terror. Pânico, talvez. Então prosseguiu:
—
Há quarenta e sete anos, dois jovens rapazes, que viviam num mesmo quarto de
pensão, com uma única janela voltada para um beco insalubre de Dundalk, eram
grandes amigos. Ambos eram órfãos e pobres, e dividiam com alegre equidade os
seus parcos pertences. Seus nomes? Ryan O’Hara e Derek O'Nolan. Tinham eles a mesma idade, os
mesmos gostos, os mesmos sonhos. E eram muito parecidos. A altura, o porte, os
cabelos crespos e rubros... Tudo era igual. Nem todos os irmãos costumam ser tão
parecidos quanto o eram os rapazes irlandeses. Mas não foram os amigos aquinhoados
com a mesma sorte. Isto é certo. Numa certa manhã de verão, O’Hara recebeu uma
carta postada de Providence, Rhode Island...
—
Quanto? —
sussurrou o ancião, resignado. — Poupe-me dos detalhes de sua história. —
Quanto?
—
Cinquenta mil
libras esterlinas... Foi esse o preço do assassínio de Ryan O’Hara?
O cavalheiro idoso voltou à velha escrivaninha. Desta feita,
retirou um talão de cheques. Retornou com uma folha assinada.
—Tenho aqui um cheque de cento e vinte
mil dólares. É muito dinheiro.
—
Não o
suficiente para arruiná-lo, Derek — redarguiu o visitante, estreitando as
sobrancelhas que a luz da lareira tornava ainda mais rubras.
— Mas mais que o suficiente para comprar
o seu precioso silêncio.
— Não, não é suficiente — disse o rapaz, parcimoniosamente. —
Tenho outra exigência.
— Qual? — indagou o velho homem,
surpreso pela sensação desconfortável de que, embora presente, toda
manifestação do jovem invocava algo como a distância ou, mesmo, a ausência.
— Quero concluir a minha história —
respondeu o rapaz, sem qualquer esforço em disfarçar o sarcasmo com que modulava
o tom de voz. Para o velho homem, a voz parecia vir de longe, muito longe. Dir-se-ia
uma voz etérea, espectral.
— Feito. Mas você há de me prometer, pelo
resquício de honra que há de sobejar em sua alma, que irá desaparecer de uma
vez por todas.
—
Tudo que eu tenho é minha alma. Mas, ainda assim, você tem a minha palavra.
—
Então,
prossiga — concluiu o ancião.
— A carta vinha do Dr. Allan Smith,
procurador e testamenteiro de Kennedy O’Hara. Kennedy, um solteirão que
amealhara em Nova Inglaterra uma fortuna estimada em cinquenta mil libras
esterlinas, deixara todos os seus bens ao sobrinho-neto Ryan, único parente de que
tinha notícias na velha ilha celta, donde saíra ainda rapaz. Quando soube da
boa sorte do amigo, Derek O'Nolan percebeu, tão surpreso quanto esperançoso,
que a cobiça era infinitamente mais forte que a amizade. Ofereceu-se a acompanhá-lo
no navio à América, e, na primeira oportunidade, cravou-lhe um punhal no
coração, lançando-o amurada abaixo. De posse dos pertences e documentos do fiel
companheiro, seguiu a Rhode Island, reclamando, com êxito, a posse da herança.
Não foi nada difícil para Derek, em terras tão distantes, onde ninguém o
conhecia, passar-se por Ryan e assumir-lhe a identidade. Uma ideia muito
proveitosa, mas nada original, diga-se de passagem.
O ancião entregou o cheque ao rapaz, dizendo:
— Aqui concluímos o nosso negócio.
O jovem assentiu, inclinando a cabeça numa maneira
extraordinariamente peculiar. Imediatamente, algumas recordações afloraram na
mente de Derek O’Nolan.
—
A sua maneira
inquisitiva de olhar, o modo como inclina a cabeça... Eu juraria que esses
modos eram bem próprios de Ryan O’Hara. Mas você é muito jovem para ser filho
de Ryan. Além disso, ao que eu saiba, ele não teve filhos. Quem lhe forneceu
essas informações conhecia-me muito bem. E sabia muito de Ryan, também.
Parecia que o rapaz não levava em consideração o que o seu
interlocutor dizia, pois olhava, com uma despreocupação calculada, para o
cheque ao portador de cento e vinte mil dólares. Mas, subitamente, ergueu os
olhos para o ancião. Um sorriso zombeteiro insinuava-se nos lábios do rapaz.
— Bem, recuperei a minha fortuna — disse, enfiando a folha de cheque no
bolso da jaqueta. — Mas, dadas as minhas condições atuais, esta imensa fortuna não
me servirá para mais nada. Será melhor que alguém fique com isso tudo. Alguém
que, agora mesmo, está me prestando um grande favor. Mas não ouse, Derek...
Jamais cogite numa contraordem. A justiça deve ser feita.
— Satisfeito agora? — indagou Derek. Em
seus olhinhos suínos, um laivo raivoso voltou a flamejar. Aquela brincadeira de gato e rato estava passando dos
limites.
—
Você me perguntou há pouco se eu tive
filhos — prosseguiu o homem ruivo, pendendo para o lado a cabeça: um gesto
acintosamente singular, que intrigava e aborrecia o velho cavalheiro. — Não,
não os tive.
Certa
tristeza amenizou o tom irônico com que pronunciava as palavras:
—
Não tive tempo para isso — suspirou,
revelando um quê de desalento, o jovem homem. — Eu estava destinado a ser um homem rico, a casar com uma linda
mulher e a ter uma prole numerosa. Mas toda essa doce expectativa, essa
promessa encantadora, extinguiu-se quando você me atirou ao mar, com um punhal
cravado no meu peito. A partir de então, vaguei por um tempo incomensurável nas
águas frias do Atlântico, preso ao que restara de meu corpo, procurando
entender o que me acontecera. Foi difícil admitir que eu estava morto. Foi
doloroso rememorar todo o meu passado. Foi quase impossível localizá-lo,
Gruaige Dóiteáin. E foi, enfim, um milagre encontrar um corpo suscetível de
receber o meu espírito e obedecer cegamente aos meus comandos.
—
Você disse Gruaige Dóiteáin? — indagou
o velho, trêmulo de pavor. Até então, acompanhava com crescente impaciência
aquilo que parecia ser a encenação sarcástica, um sádico capricho de um chantagista
excentricamente cruel. — Gruaige Dóiteáin?
— Lembra-se, Derek? Era assim que nós nos chamávamos um ao
outro na intimidade: Cabelo Vermelho.
O
velho ainda mais se encolheu na poltrona. Os olhos porcinos eram agora dois
globos inertes, injetados de terror. Balbuciou:
— O que você quer, Ryan?
— Vingança, Derek — respondeu o rapaz, avançando.
Dereck
gritou. Num salto, levou a mão ao peito e foi ao chão, fulminado por uma breve
e derradeira convulsão.
Ryan
sorriu, satisfeito. Consumatum est.
Quatro
horas após a morte de Derek O’Nolan, John Blackmore — assim se chamava o jovem rapaz
de cabelos flamejantes — voltou a si, no quarto de sua casa miserável, a duas
milhas de Tauton.
Lembrava-se,
vagamente, de haver participado, na noite anterior, de uma sessão conduzida
pela famosa médium Katherine Fox[1]. Mas não
sabia o que lhe sucedera quando mergulhara num estado de profunda letargia, sob
a influência da misteriosa mulher. E nem mesmo ousava imaginar como retornara a
casa. Estivera bebendo? Fumara ópio? Mergulhara obsessivamente no absinto? Simplesmente
não sabia. Uma névoa profunda diluía qualquer resquício de memória.
Mas foi com enorme alegria que
descobriu, no bolso de sua jaqueta, um cheque ao portador subscrito por um
homem milionário. O mesmo homem que, conforme lhe segredava uma simples camareira
— e esta camareira era a sua mãe —, jamais
tivera a hombridade de reconhecê-lo como filho.
John não se preocupou em descobrir
como aquela imensa riqueza aparecera tão milagrosamente no bolso de seu casaco.
Não mesmo.
[1] Katherine Fox
(1837-1892) foi uma médium norte-americana que, juntamente com suas irmãs mais
velhas, Leah Fox (1814 —1890) e Margaret Fox (1833 —1893), tornou-se famosa por
pretensas comunicações com espíritos.
Muito obrigado, Luísa! Sem dúvida que há!
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