A CHAVE VERMELHA - Conto Clássico de Horror - Maurice Leblanc


A CHAVE VERMELHA
Maurice Leblanc
(1864 – 1941)

O ódio!

Uma vez na minha vida, vi de perto o verdadeiro ódio, aquele que se cala, espera anos inteiros para se acalmar e goza implacavelmente as monstruosas vinganças que elabora.

Toda a minha infância está ligada à lembrança de dois camaradas: Hubert de Fleucadine e Rodolphe d'Arvan.

Fizemos os nossos estudos juntos e juntos estudamos Direito em Paris. Não havia segredos entre nós e eu gostava tanto do pálido e fraco Hubert como do forte e vigoroso Rodolphe. Depois, a existência separou-nos. Eles regressaram às suas terras, nos confins do Morbihan. As nossas cartas, a princípio frequentes, foram espaçando e não tornei mais a ouvir falar deles.

Foi no ano passado, durante uma viagem à Bretanha, que tornei a vê-los. Eles habitam duas propriedades cercadas de muros altos e fossos profundos.

Cada um deles vive só, mas todos os dias se encontram ou na casa de um ou na casa do outro à hora da ceia, e passam a noite juntos.

O jantar foi na casa de Hubert, numa sala muito alta, cuja chaminé parecia bocejar tragicamente. Comemos, bebemos, mas falamos pouco. Ora, ao café, disse eu:

Hubert, eu li, há alguns anos, a notícia do casamento de um Fleucadine... Eras tu?

Fez-se um silencio profundo. Com os cotovelos na mesa, Hubert apertava entre os punhos cerrados a sua face pálida. Depois, com um sorrisinho frio, e com uma voz quase indiferente, na qual eu por vezes percebi uma espécie tremor, respondeu-me ele:

Era eu. Amei uma só vez na minha vida, e aquela que amei consentiu em ser minha mulher. Fomos muito felizes. Edith e eu... Lembras-te, Rodolphe, como fomos felizes? Ela era tão linda e eu gostava tanto dela! No princípio, também ela gostava muito de mim. Tinha-me um amor puro e ingênuo, e a sua inocência fazia com que eu apenas lhe tocasse, como se cada um dos meus beijos fossem dados a uma virgem.

“Uma vez, ouve bem, tive de me ausentar durante seis meses. Quando regressei, ela chamou-me de parte, e escuta as estranhas palavras que ela me disse:

“― Hubert, já não te tenho amor.

“Ela disse isso calmamente, olhando-me bem de frente, e, sem piedade, acrescentou: 

“― Gosto de outro, outro a quem pertenço, ouves, outro que é meu amante.

“Teria ela endoidecido?

“No seu olhar havia qualquer coisa anormal, a sua voz era estranha, e eu sentia que ela falava constrangida, debaixo da influência de uma força interior e muito poderosa.

“Tive vontade de a matar, depois desatei a chorar, e, realmente, eu não acreditava que fosse verdade, não, não o poderia acreditar. Mas ela desviou as minhas mãos e disse-me, com maldade:

“― Não é ocasião de chorar. É preciso estudar o que temos a fazer. Eu compreendo que percas a cabeça. Eu, há muitos dias, semanas, que reflito, e sei pelo menos duas coisas: a primeira, que não quero mais viver contigo, e a segunda, que quero viver com ele. Mas, como respeito o teu nome, e é preciso que a tua honra não seja manchada, nem que a tua vida seja estragada por minha causa, eis o que te proponho.

“Ela fez-me esta incrível, esta assombrosa proposta:

“― Eu vou morrer...  Mas, compreende bem: eu fingirei que morro. Se te prestares a isso, e não esqueceres nenhuma das precauções que eu te indicar, ninguém perceberá a fraude. O mausoléu da nossa família é espaçoso e afastado. Na mesma noite, mandarás a chave àquele cujo nome encontrarás, depois de minha morte, escrito num papel, naquela gaveta...

“Foi isso o que ela me propôs, meu amigo.

“Na verdade, poderia isso brotar de um cérebro que não fosse um cérebro de mulher? E era preciso ainda que estivesse completamente desequilibrado pela paixão! Edith, a graciosa e meiga virgem, pronunciar tais palavras e com uma tal firmeza, com tanta pertinácia feroz.

“E eu sentia que ela tinha imaginado tudo isso morosamente, como uma coisa possível, de que dependia a sua felicidade, uma coisa que eu não tinha o direito de recusar... porque se o fizesse... se o fizesse ela ir-se-ia embora à vista de todos, iria viver com ele, entregar-se-ia a ele diante de todo o mundo. E nada o impediria, nada, eu tinha essa convicção irresistível. Então... então, aceitei.”

Eu olhava-o com espanto. Ele estava muito calmo. Encheu o cachimbo, acendeu-o e continuou com um tom prazenteiro:

 ― Dou-te a minha palavra que aceitei. O que queres tu? Não tinha onde escolher... Ela teria partido, a espertalhona, ainda que todos se opusessem a isso. Era o único meio que havia para que isso ficasse entre nós, entre ela, eu e ele. E ela morreu, morreu de uma congestão cerebral.

“Por deferência para com o meu desespero, deixaram que eu a velasse sozinho, a embrulhasse na sua mortalha, a fechasse no caixão. E tudo isto não deixava de nos divertir.

“Nós riamos muito, ela e eu. O que estávamos fazendo parecia-nos cômico. Palavra de honra que não tive uma palavra de censura e que a minha despedida foi isenta de cólera.

“― Perdoo-te ― disse-lhe eu. E preguei o caixão conscienciosamente, sem esquecer um prego.

“Fez-se o enterro. Foi muito triste, lembras-te, Rodolphe? A minha dor enterneceu toda a gente, uma dor muda, sem lágrimas. Puseram-na no túmulo. Eu mesmo fechei a porta e levei a chave no bolso.

“É esta a história do meu casamento...”

Levantou-se e pôs-se a passear assoviando, como se a aventura estivesse terminada.

 ― E depois? ―  perguntei-lhe eu um pouco inquieto.

 ― E depois o quê?

― Mas, a chave?...

― Qual chave?

Ele pareceu refletir; depois, exclamou:

―Ah, sim, a chave do tumulo!... Palavra que me deu que fazer. Imagina que nunca pude descobrir o papel onde a minha mulher tinha escrito o nome do seu amante.

“Teria ela esquecido essa formalidade? Teria eu compreendido mal? Eu estava muito aflito... A quem enviar essa maldita chave?

“Eu pensei que a coisa tivesse sido combinada pelos dois, e todos os dias esperava que o cavalheiro viesse reclamar a sua amante. Não veio ninguém...“

No meio do grande silencio, ouviu-se uma espécie de gemido. Olhei para Rodolphe. Estava branco como um lençol e os seus lábios pronunciavam palavras incompreensíveis. Eu tive, então, a intuição brusca da horrorosa verdade. Mas era possível, meu Deus, era possível?

Hubert, entretanto, tinha-se aproximado dele e dizia-lhe com ternura:

― O que tens, meu bom Rodolphe? Ah, é verdade! Eu não te tinha contado isso. Tive medo de te afligir. Tu também gostavas muito dela... e tens sido tão bom para mim, consolando-me, vindo todos os dias misturar as tuas lágrimas com as minhas...

Ele cobria-o com os seus olhos de selvagem, o seu corpo débil debruçado sobre o colosso aniquilado. E depois disse:

— Ouve, Rodolphe. Quero pedir-te um favor. Até hoje tive a constância de conservara chave, mas na verdade esse encargo incomoda-me... Além disso, já esperei bastante tempo... Guarda-a, queres?

Ele abriu o peito da camisa. Ao seu pescoço, presa a uma corrente, junto da pele, estava pendurada uma chave pequena, toda enferrujada, cor de sangue.

Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Fon-fon”, edição de 2 de maio de 1914.

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