A MISSA DO GALO - Conto Clássico de Terror - Maciel da Costa



A MISSA DO GALO
Maciel da Costa
(Séc. XIX)


La poussière a sa voix, la tombe a ses amours.
D’Arlincourt.

I

No ano de 1775, existia uma grande e formosa fazenda arredada da cidade de São Paulo uma légua. Carlos, seu proprietário, tinha unido os seus destinos à gentil Isabel, dando-lhe a mão de esposo. Como poderia ele resistir aos encantos e infinitas graças largueadas pela natureza de sua consorte, cuja voz, semelhante à de uma virgem no seu primeiro hino de infância, arroubava-lhe os sentidos, e cujos olhos pretos, que cintilavam de ternura, faziam seu coração sentir emoções para quais os homens ainda não inventaram termos que correspondesse em energia e doçura? Em uma palavra, quem visse Isabel imóvel a tomaria pela estátua da perfeição, produto da imaginação brilhante, e do delicado trabalho de um grande escultor. — Carlos era infeliz! Aquela, por quem dera a vida, com um sorriso angélico que lhe roçava a pequenina boca, semelhante a um botão de rosa, aninhava em seu peito o demônio da perfídia.

Ela traía o seu marido.

*

Em uma das noites precedentes ao Natal, o gênio das tempestades envolveu o céu em seu denso manto: a escuridão era total. De quando em quando, espalhava relâmpagos que douravam momentaneamente as trevas, para depois darem relevo à tenebrosa cor. O trovão roncava e dava berros tremendos, o vento zunia, o firmamento desabava-se em chuva.

Que cena horrorosa e ao mesmo tempo sublime!

Quem é aquele que, coberto com um largo e agaloado poncho, tendo da cabeça um grande chapéu, e na mão uma espada desembainhada, monta um soberbo ginete que vai a toda brida?

Quem será?

É Carlos, que se dirige à casa de Adolfo, que perto tinha uma linda vivenda em que habitava.

Se alguém o visse a tais desoras, o considerariam algum anjo exterminador vomitado pelo Inferno. Sim! Ele ia realizar uma obra do Inferno contra Adolfo. Contra o amante de sua consorte.

A tempestade serenou e Carlos, depois de quatro horas de caminho, rápido entrou por uma vivenda dentro.

Não se sabe o que por lá aconteceu. O fato é que Carlos voltou no fim de dois dias.

A sua espada estava banhada de sangue.

Chegado à sua habitação, ao anoitecer, chamou um pequeno crioulo a quem muito estimava. Depois de lhe ter dado algumas moedinhas de prata, falou-lhe assim:

—Diz-me, André, uma coisa. Não me mintas. O que fez a tua senhora, depois que eu me ausentei?

—Depois que vosmecê saiu daqui?

—Sim.

—O que vi foi ontem ela conversar com um moço a quem ela dizia: “Meu querido Adolfo! Meu querido Adolfo!”

—Tu mentes, negro! —replica Carlos, irado. E depois, consigo mesmo:

—Quê! O túmulo larga a sua presa!

—Olhe, vosmecê pensa que eu estou mentindo? Até, por sinal, minha sinhá me deu um cartucho de amêndoas para eu não contar nada a vosmecê, e quando o moço foi-se embora, disse para a sinhá: “Na hora da Missa do Galo’!

Silêncio reinou entre os interlocutores, até que Carlos o rompeu, dizendo ao pequeno André:

—Vai-te embora. Porém não digas nada à tua senhora do que te perguntei.

O crioulinho foi saltando e brincado.

Esta cena se tinha passado no quarto de Carlos. Este, achando-se sozinho, esteve muito tempo pensativo até que, olhando para o seu leito, de súbito deu um grande grito, exclamando:

—Sim! A maldição do Céu te persiga, mald...

Caiu desmaiado.

A mimosa paulista, que vinha falar com o seu marido, abre a porta e dá com o triste espetáculo, que ela nem sonhava ver.

—Meu Deus!

E lança-se sobre o corpo do marido.

Carlos tinha visto o fantasma ensanguentado de Adolfo.

II

Era o dia 24 de dezembro, de tarde. Os dois consortes estavam na janela contemplando a gente que vinha de diversos pontos para assistir à festa da cidade. Um queria, com falsas carícias, que o outro acreditasse na sua fidelidade. E este, estando certo de que os vermes serpejavam dentro do túmulo, sobre o corpo do inimigo, ansioso aguardava a fatal hora da meia-noite.

—Tu, Carlos, não vais à Missa do Galo? — lhe disse a bela Isabel.

Carlos estremeceu.

—À missa do Galo? Não; não.

Isabel ficou pálida. Oh, se a vísseis, então julgaríeis ver diante de vós a própria aflição com todos os seus dolorosos sentimentos.

Ela logo projetou mandar remover toda a malta de cães de fila para o fundo da fazenda para não ladrarem quando Adolfo entrasse. Lembrou-se, fora de seu costume, em ir ela própria fechar todas as portas, a fim de conservar a da sala com volta falsa.  

— Miserável! — Ela Treme!...

Depois que estas considerações em seu espírito se fixaram para ao depois tornarem-se realizadas, pegou a sua viola e principiou a tocar um lundu muito triste: lembrou-se outra vez de Adolfo.

Nesse momento, todas as cordas da viola arrebentaram.

Carlos deu uma gargalhada semelhante a de um condenado e Isabel retirou-se muito assustada.

Carlos e Isabel entretiveram-se com diversas ocupações até as onze horas da noite.

Poucos momentos depois, reinava um profundo silêncio que, de quando em quando, era quebrado pelos grandes gemidos que Carlos dava.

Dá meia-noite! É a hora da Missa do Galo!

Isabel, alegra-te!  Teu esposo dorme profundamente. Ele próprio queria presenciar a cena terrível dos teus amores, porém uma força oculta com mão de ferro fecha-lhe as pálpebras.

Isabel levanta-se. E, nesse mesmo instante, viu diante de si o seu jovem Adolfo.

—Adolfo! Adolfo! Retira-te! —lhe diz em grande aflição a pérfida Isabel.

—Porquê? —responde o seu amante.

—Meu marido!

—Teu marido! Esse não acordará. Sossega.

—Tu estás tão pálido e com uma voz tão sepulcral! — lhe disse, assustada, olhando sempre para o seu marido.

—Isabel, o Céu perdoa todos os crimes, menos o adultério. Carlos transpassou-me o peito com a espada (e mostrou seu peito ensanguentado), porém lembra-te que o adultério é grande crime. E para não te esqueceres, recebe este sinal.

Dizendo isto, pôs a mão esquerda aberta sobre a face direita de Isabel. Esta deu um grande grito, como se tivesse sentido gelo em brasa.

Carlos não acordou. Isabel, em lugar de Adolfo vê diante de si um fantasma ensanguentado!

— Oh! Piedade! Piedade! — grita ela. — Carlos, Carlos, valei-me!  —Dizendo estas palavras, caiu desmaiada.

O fantasma retirou-se. As portas e as janelas da vivenda bateram ao mesmo tempo: o leito em que Carlos dormia sofreu grandes impulsões.

O fantasma era a sombra de Adolfo, que tinha morrido às mãos de Carlos.

*

Dois anos depois, havia uma religiosa em um convento da cidade. Era o modelo de todas as virtudes. Trazia sempre velada a face direita para esconder o sinal de cinco dedos nela estampados.

Era Isabel.

Ao pé da porta do convento, ouvia-se, alta noite, uma voz rouca gritar:

—À Missa do Galo!

Era Carlos, que andava doido.


Fonte: Correio das Modas (RJ), nº 1, 5 de janeiro de 1839.

Nota do editor: “A Missa do Galo” é uma das primeiras obras de ficção fantástica publicada na imprensa brasileira. Veio a lume no primeiro número da revista “Correio das Modas” (RJ), de 5 de janeiro de 1839). Sobre o autor, sabemos apenas que era jornalista e escritor, sendo um dos redatores da citada revista, editada pelos irmãos Laemmert e dedicada ao público feminino. Segundo Yasmin Jasmil Dadaf, conforme o registro de Ana Laura Donegá[1], "os colaboradores do Correio das Modas formaram, nos anos finais da década de 1830, um 'grupo coeso, residente na capital do Império', dedicado a difundir a prosa de ficção nacional por meio ‘das páginas dos periódicos locais, e em especial do folhetim literário.' Empregando a palavra escrita como instrumento na propagação de seus ideais, eles objetivaram colaborar com a construção política, civilizatória e moral da recente nação brasileira. Conforme apontou a autora ainda, a prosa ficcional desse período contou com 'estórias regadas a ‘lágrimas e sangue’ – amores contrariados, adultérios, filhos ilegítimos, traição e loucura ou mesmo a morte por amor ou outros infortúnios, vinganças, roubos, cadafalsos e outros costumeiros novelos dessa modalidade de escrita.'”










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