A NECROPSIA - Conto de Terror - Paulo Soriano



A NECROPSIA
Paulo Soriano

Encontraram o que supunham ser o meu cadáver numa tarde taciturna de inverno.

Irremediavelmente morto. Foi o que eles disseram. E não poderia ser de outra forma, após a constatação de que o meu corpo apresentava uma rigidez de pedra. O meu coração congelara-se no peito e a minha respiração cessara de todo. Mas eu sabia que as coisas não eram bem assim.

Apesar da imobilidade e da frialdade de meu corpo, os meus sentidos estavam em alerta. Podia ouvir perfeitamente a movimentação em torno de mim. O médico abriu as minhas pálpebras, primeiro uma, depois a outra. Lançou contra as minhas pupilas um potente feixe de luz. Pude ver que o médico era um camarada de meia-idade, pálido como um defunto. Tinha cara de macaco. O Dr. Orangotango cerrou as minhas pálpebras e me atirou novamente na escuridão.

Senti quando me puseram num saco funerário e me conduziram a um rabecão. O automóvel começou a rolar. Desenvolveu, durante o trajeto, uma velocidade mínima. O estado de torpor em que eu me encontrava aguçava incrivelmente os meus sentidos. Eu sabia que havia duas pessoas comigo. E eram seres execráveis. Não davam a mínima para mim. Ouvi o que faziam. O homem ensaiava uns preliminares enquanto o rabecão desfilava solenemente pelas ruas nevoentas da cidade. Ele sugava as tetas da companheira enquanto ela proferia obscenidades. Sei que não há bondade alguma no meu coração. Sou um ser detestável. Mas, por pior que seja, não pude deixar de experimentar certa indignação com aquilo tudo. E, ao final do trajeto, me veio um prurido, um desconforto palpável, ao toque impuro daquele casal abominável O carro finalmente parou e me puseram numa maca de rodas.

Rolaram comigo. Fizeram algumas curvas e entraram num elevador. Percebi que a cabine descia celeremente. Pelo ruído que fazia, concluí que o elevador era muito velho. Depois veio um tranco abrupto. A porta da cabine se abriu. Intuí que estava defronte do corredor que conduzia a uma das salas de autópsia.

Há quem tenha um pavor irracional de ser enterrado vivo. Mas os que assim pensam estão completamente equivocados.

Desconhecem que é muito mais provável que encontrem um fim doloroso sob o talho profundo e presto de um bisturi insalubre, em uma sala de autópsia. Ou que congelem lentamente numa daquelas asfixiantes câmaras frigoríficas. Foi nisso que pensei quando puseram uma etiqueta no meu artelho esquerdo maior e me engavetaram naquele antro estreito e nauseabundo.

Eu bem sabia que não podia me mexer. Os músculos não obedeciam a qualquer comando voluntário. Naquelas circunstâncias, qualquer esforço seria inútil. Deveria, pois, armazenar e conter as energias para empregá-las num momento mais oportuno. Afinal, a duração do estado de torpor era-me perfeitamente conhecida. Ora, qualquer um estaria desesperado naquela situação. Mas eu me mantinha extremamente calmo. Sereno até demais. Sabia que muito brevemente me tirariam dali. Hoje em dia, a identificação dactiloscópica é fácil e segura.
Notei que a gaveta deslizava sob os rolamentos. Puseram-me novamente numa maca e, depois, depositaram o meu corpo rígido sobre uma superfície lisa e fria, provavelmente metálica. Alguém se aproximara de mim. Suspeitei de que o Dr. Símio voltara para me retalhar com a sua destreza de macaco circense. Mas estava enganado. Quem abriu e examinou os meus olhos foi um médico jovem. Um camarada imberbe que transpirava frivolidade naquele olhar impudico. Foi aí que tentei uma reação. Procurei piscar um olho. Eu sabia que o torpor já estava se esvaindo. Por isso, concentrei-me em mover uma das pálpebras, enquanto o Dr. Leviano assoviava e examinava os meus dentes. Mas, quando consegui mexer a pálpebra direita, o médico já estava de costas, decerto procurando por um dos seus instrumentos hediondos.

Dr. Frívolo retornou com um bisturi na destra. Curvou-se sobre o meu corpo pachorrentamente. Ia mergulhar o bisturi no meu peito. Foi quando senti o bem-vindo calor inundar e percorrer todo o meu corpo, trazendo-me um alívio morno e levando consigo toda rigidez. Agora eu sabia que o sol mergulhara definitivamente no horizonte. Meus músculos eram novamente flexíveis. Foi por isso que colhi, em pleno ar, a mão do médico, que descia. Justamente no momento em que o bisturi afiado projetava a sua sombra mortal sobre o meu tórax.

***

A frivolidade dissipou-se instantaneamente do olhar do jovem médico. Agora, o que assomava em suas negras pupilas era o pânico. Era a surpresa, violenta e atroz. Mas o olhar evoluiu para um doloroso esgar quando eu, imprimindo na mão esquerda uma força grotesca, fiz com que o seu pulso estalasse, após um movimento tão rápido quanto brusco. O médico uivou. Mirou atônito o pulso partido e depois me dirigiu os olhos perplexos. Vi uma sombra crescente de horror transbordar os seus olhos quando ele percebeu que os meus dentes agora eram navalhas aguçadas e luzidias. E o terror espalhou-se por sua face encrespada quando avancei para o pescoço, triturando e dilacerando a jugular, donde o sangue viscoso manava em profusas e regulares erupções.

Hoje sou bem mais cauteloso na escolha do antro tenebroso que me serve de refúgio e de descanso, longe das cruzes e de meus perseguidores. Fico feliz ao imaginar o quão quedaram surpresos médicos e policiais ao constatarem que o meu corpo havia desaparecido. E que, sobre a mesa de necropsia, o que se via não era o meu cadáver a esperar pela autópsia, mas o corpo nu de um médico-legista, completamente exangue, e com uma monstruosa laceração no dorso da garganta.

Ilustração: Jaime Vilena García.

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