AROMA DE ESTRELAS - Conto de Ficção Científica - Tânia Souza
AROMA
DE ESTRELAS
Tânia Souza
Tudo
é cinza e frio. Meus passos ecoam neste imenso deserto. Por onde olho, vejo
apenas vastidão de pedras e cavernas. Em uma delas, resido. Não se trata de uma
caverna qualquer. Foi adaptada por mim. Contém o que necessito para permanecer
em ordem e funcionando. Aqui, os dias e as noites são longos. Não se ouve o
lamento de animais, não se ouve sons, ruídos, não se vê movimento algum além de
poeira cósmica ocasional. Estamos no planeta Sunriand. Na verdade, um
planetoide de ricos minérios, mas instável para a sobrevivência humana. Não há
água em Sunriand. Não há comida. Não há vida. Apenas eu e a carcaça de outras
máquinas que deixaram de funcionar.
Um nome... Sim, eu tive um nome, mas
ele se esvai com outras lembranças e não consigo buscá-lo nos desenhos do
passado. Outrora fui cidadã, hoje sou propriedade do estado, sou uma
prisioneira. Estou cumprindo pena em Sunriand. Não há absolutamente ninguém
aqui. Teoricamente, também não estou aqui.
A Liga da Moral me condenou a cinco
anos de trabalho nas minas deste planetoide deserto. O corpo que fora meu
permanece nos laboratórios da LM. Entretanto, minha mente fervilha. Não sei
quanto tempo posso resistir. Inicialmente eu não estava só, mas poucos
sobreviveram à desolação. A solidão tem um efeito devastador na alma humana.
Entretanto, a cada momento que a sombra toma conta desse imenso deserto num
simulacro de noite, meus sonhos revivem. Quando a claridade vem, trabalho sem
cansaço. Ainda que eu não quisesse, a máquina está ligada a mim e não posso
combatê-la. Minha pena é a solidão.
Meus olhos não me reconhecem neste
corpo metálico, sensações físicas como o calor, cansaço e fome ainda estão na
minha mente, mas meu corpo recebe o que necessita. Nomearam-me 1WR2. Se tenho
um nome, é este. Apenas uma ideia resistindo dentro do frio metal.
A tecnologia permite ao meu cérebro
permanecer aqui. Estou conectada a esta máquina e devo preservá-la. Minha morte
não compensa para nossa equilibrada economia e meus óvulos perfeitos estão preservados
para reprodução. Uma saúde resistente a moléstias e pestes foi o que me salvou
da Colônia de Reaproveitamento de Material Orgânico.
Meu crime? Meu crime não prescreve,
dado que insisto no erro.
Meus algozes insistem que tirei uma
vida. Que perverti um perfeito servo da Ordem e da Lei. Daniel está morto, mas
sei que dei vida a ele. Lutou contra gigantes disfarçados em moinhos. Conhece O
Cavaleiro de La Mancha? Daniel não conhecia, os nascidos na Nova Ordem
tampouco. Conheci Dom Quixote através dos meus pais, ambos amavam a literatura
como uma das grandes conquistas da humanidade. Traziam esse amor de um tempo
distante, antes da Liga da Moral ser o centro do governo.
Posso ainda ouvir a voz de minha mãe
contando-me sobre os gigantes, descrevendo Dulcineia de Toboso. Na nossa
pequena ilha familiar, ler não era crime. Apenas uma aventura a ser escondida
de todos. Decorei cada palavra do livro amarelado. Com o passar do tempo, o
mundo se transformava cada vez mais rápido. A tecnologia crescia
vertiginosamente junto a insana busca pelo poder.
Nas últimas guerras, as bombas não
destruíram apenas a matéria. Em meio à miséria, a fome, as doenças, toda a
humanidade parecia perversa. Os homens vagavam piores que feras. Entretanto, as
cidades sobreviventes se reorganizaram sob o julgo pesado da LM. Por algum
tempo, a ordem e a lei foram importantes para estabelecer a nova sociedade, mas
então começaram as proibições. As perseguições. Velha história que não se cansa
de repetir! Tudo se converteu em pecado, toda manifestação cultural se
converteu em crime. Computadores, músicas, games e livros foram proibidos. Toda
ficção estava proibida, apenas a tecnologia a serviço da lógica e da
sobrevivência permanecia de forma controlada. No entanto, eu já o sabia cada
vocábulo, cada suspiro, Dom Quixote estava entranhado em mim.
Quando meus pais foram levados a
Colônia de Reaproveitamento de Material Orgânico, fui incorporada aos grupos de
estudantes que reconstruiriam a nação. Trabalhar na Colônia de Repovoamento foi
um orgulho para mim. Acreditei que contribuiria para o futuro do planeta. Ah,
Daniel, eu o amei. Certa noite, sob um céu quase oculto em névoas, a lua
insistia em enviar alguns tímidos raios. Contei a ele a saga do cavaleiro da
triste figura. Daniel era um cientista, cresceu sob o julgo da Lei. Mas era
jovem e trazia em si a essência da humanidade. Apaixonou-se pela história,
pedia-me sempre que a repetisse. Discutíamos a vontade, a ordem, a paixão. Essa
mesma paixão pela liberdade o contagiou. Contestar, combater.
Uma das normas da Colônia de
Repovoamento era a seleção dos embriões promissores frente à destruição dos
imperfeitos. Como questionar o equilíbrio que a Colônia de Repovoamento
estabelecera? Daniel questionou, foi além, tentando destruir parte do
laboratório, divulgou a crueldade oculta sob o véu de ordem. Muitos se chocaram
e foi preciso readaptar as normas, mas ele terminou reaproveitado e eu
condenada por levá-lo a exaltação. Literatura. Eis meu crime.
Mas tudo isso consta nos registros. O
que não está nos registros são meus dias aqui em Sunriand. Não é fácil ser uma
criminosa nestes dias. Opções: Colônia de Reaproveitamento de Material
Orgânico. Trabalho forçado. Reconstrução das áreas destruídas. E experiências
como estas, ainda pioneiras devido à crueldade da punição. Mas em nome da
ciência e do lucro, é permitido. Meu corpo pertence à LM. Quiseram eles que
minha mente também o fosse, incorporada a esta máquina que comando e com a qual
diariamente extraio desse planetoide insípido um metal precioso. Um trabalho
que necessita do conhecimento humano somado a força e pericia de um robô. Mas
meus pensamentos são livres. Quando vago olhando as estrelas talvez meu corpo
chore. Não há tecnologia que combata minha dor. Aqui, sou revestida do mais
resistente material. Juntas perfeitas em ordenado funcionamento, aparência
imitando a forma humana, as primeiras experiências que romperam esse limite
foram desastrosas. Sou um cérebro prisioneiro no corpo de uma máquina, um
"corpo" feminino. Mas meus sonhos são livres, e eles não podem me
impedir de sonhar.
Em satélites e planetas desse imenso
universo, outras cumprem penas como a minha. Mulheres cujos corpos já não lhe
pertencem, fadadas a solidão e ao vazio. Mentes que ousaram contestar a LM.
Mentes que de alguma forma, sobrevivem. Que não estão sob controle. Olha para
as estrelas e minhas palavras captam a dor de cada uma delas.
Estou aqui há mais de um ano. Oito
vezes a nave de recolhimento esteve aqui para ser carregada com os minerais e
pedras que coletei. Oito vezes olhei para um rosto humano. Um rosto curioso
frente ao metal branco que reveste as engrenagens dessa máquina que me contém.
A face inexpressiva oculta os meus sentimentos, mas para nosso grande espanto,
meu e dele, um robô pode chorar. Uma lágrima escura, negra como o óleo que
percorre minhas engrenagens desliza no metal pálido quando o vejo. Uma lágrima
capaz de romper barreiras inimagináveis.
Junto às fortunas desse solo, retornam
a terra as minhas maiores riquezas e a cada dia, aumenta o número de pessoas
interessadas em divulgá-las. Descobri, entre os preciosos metais e minérios,
uma rocha flexível. Separada do veio original, endurece gradualmente. Nas
noites insones, é nela que escrevo. Conto minha saga, reconto histórias há
muito não ouvidas. Invento universos, registro o aroma das estrelas. Ouso
poesias. Ele, o meu carcereiro, se encarrega de escondê-las. De divulgá-las.
Assim, preservo a sanidade e compartilho a saga de um povo perdido no espaço.
Perdido de si mesmo. Escrevo e as palavras estão eternamente gravadas na pedra
e na mente dos que as leem.
Caminho sem pressa neste deserto cinza
e frio, perfuro rochas e mecanicamente, organizo a riqueza para meu antigo lar.
Até quando resistirei consiste em um mistério, para mim e para os cientistas
que controlam esse experimento. A um sinal deles, minha mente estará calada,
mas enquanto houver vida, haverá verbo e uma história há se contar.
Estou nas minas de Sunriand há mais de
um ano. E escrevo. Em algum lugar, em um planeta quase esquecido por mim,
alguns leem palavras de uma máquina que chora e reaprendem a sonhar.
Belíssimo!
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