A RESSUSCITADA - Conto Clássico de Horror - Emilia Pardo Bazán



A RESSUSCITADA
Emilia Pardo Bazán
(1851 – 1921)
Tradução de Paulo Soriano



Ardiam os quatro círios, derramando bagas de cera. Um morcego, desgarrando-se da abóbada, lançava-se ao ar, descrevendo curvas desengonçadas. Uma forma negra, fugidia, deslizou ao rés das lousas e subiu, com sombria cautela, por uma prega do pano mortuário. No mesmo instante, Dorotea de Guevara, que jazia no túmulo, abriu os olhos.

Bem sabia que não estava morta. Mas um véu de chumbo — um cadeado de bronze — a impedia de ver e falar. Ouvia, isto sim, e percebia — como percebe-se entressonhos — o que com ela fizeram ao lavá-la e amortalhá-la. Escutou os gemidos de seu marido e sentiu as lagrimas de seus filhos em sua face branca e rígida. E agora, na solidão da igreja fechada, recobrado o sentido, sobressaltava-se em grande espanto. Não era pesadelo, mas realidade. Ali estava o féretro, ali estavam os círios... e ela mesma envolta no branco sudário, no peito o escapulário de Nossa Senhora da Graça.

Erguido o corpo, a alegria de existir se sobrepôs a tudo. Vivia. Que bom é viver, reviver, não cair no poço escuro. Em vez de ser baixada ao amanhecer, nos ombros de criados, à cripta, voltaria ao seu doce lugar, e ouviria o alarido regozijado dos que a amavam, e que agora a pranteavam sem consolo. A ideia deliciosa da felicidade que traria à casa fez pulsar o seu coração, ainda debilitado pela síncope. Lançou fora do ataúde as pernas, saltou ao chão e, com a rapidez suprema dos momentos críticos, mudou de planos. Chamar por alguém, pedir auxílio em tais horas seria inútil. E de esperar o amanhecer, na igreja solitária, não era capaz. Imaginava que na penumbra da nave assomavam as caras zombeteiras de fantasmas e soavam os dolentes queixumes de almas penadas... Tinha outro recurso: sair pela capela do Cristo.






Era sua: pertencia à sua família em patronato. Dorotea iluminava perpetuamente, com rica lâmpada de prata, a santa imagem de Nosso Senhor da Penitência. Sob a capela abrigava-se a cripta, lugar de repouso dos Guevara Benavides. Via-se com dificuldade a alta grade à esquerda, filigranada, com partes revestidas de ouro avermelhado, muito antigo. De sua alma, Dorotea elevou uma súplica fervorosa ao Cristo. Senhor! Que encontrasse as chaves no lugar. E as apalpou: ali pendiam as três, o molho. A da própria grade, a da cripta, pela qual se descia por uma escada em caracol dentro do muro, e a terceira chave, que abria a portinhola oculta entre os baixos-relevos do retábulo e dava para a ruela estreita, onde erguia a sua fachada senhorial o casarão de Guevara, fraqueado por torreões. Pela porta disfarçada entravam os Guevara para assistir à missa em sua capela, sem cruzar a nave. Dorotea abriu, empurrou... Estava fora da igreja, estava livre.

Dez passos até a sua casa... O palácio se erguia silencioso, grave como um enigma. Dorotea empunhou a aldraba, trêmula, como se fosse uma mendiga que pede abrigo em uma hora de desamparo. “Esta é mesmo a minha casa?”, pensou, ao golpear pela segunda vez, firmemente... Ao terceiro golpe, ouviu-se um ruído dentro da vivenda muda e solene, envolta em seu recolhimento como se em amplas vestimentas de luto. E ressoou a voz de Pedralvar, o escudeiro, que resmungava:

— Quem é? Quem chama a estas horas?  Que raios te partam!

— Abre, Pedralvar, por tua vida... Sou a tua senhora, sou dona Dorotea de Guevara. Abre logo!

— Arreda-te daqui, ó bêbado infernal...  Se saio, por Deus que te arrebento!

— Sou dona Dorotea... Abre... Não reconheces a minha voz?

Uma negativa, enrouquecida pelo medo, veio novamente em resposta. Em vez de abrir, Pedralvar subia as escadas outra vez. A ressuscitada bateu com a aldraba mais duas vezes. A austera casa pareceu reanimar-se; o terror do escudeiro correu através dela como um calafrio na espinha. A aldraba insistia, e à porta se escutaram passos, corridas e cochichos. O portão ornamentado, entreabrindo as suas folhas, rangeu, e um agudo grito saiu da boca rosada da criada de quarto Lucigüela, que erguia um candelabro de prata com vela acesa, e o deixou cair de súbito: havia encarado a sua senhora, a defunta, arrastando a mortalha e olhando-a atentamente...

Passado algum tempo, recordava Dorotea — já vestida de veludo estriado genovês —, trançadas as madeixas com pérolas, e sentada em uma poltrona de almofadões, junto à janela — que também Enrique de Guevara, seu marido, gritou ao reconhecê-la. Gritou e retrocedeu. Não era de alegria o grito, mas de espanto... De espanto, sim. A ressuscitada não podia duvidar. Pois acaso os seus filhos — dona Clara, de onze anos e dom Félix, de nove — não haviam chorado de puro susto quando viram a mãe que retornava da sepultura? E com pranto mais aflito, mais angustiado que o derramado na ocasião em que a levaram ao sepulcro... Ela, que acreditava que seria recebida entre exclamações de intensa felicidade! Não há dúvida que dias depois celebraram uma função soleníssima em ação de graças. Sem dúvida de que deram uma faustosa recepção aos parentes e achegados. Sem dúvida, enfim, que os Guevara fizeram tudo o quanto se deve fazer para demonstrar satisfação pelo singular e inesperado evento ocorrência que lhes devolvera a esposa e mãe.

Mas dona Dorotea, com o cotovelo apoiado no peitoril do janelão e as faces metidas entre as mãos, pensava em outras coisas. Desde o seu retorno ao palácio, todos fugiam dela, dissimuladamente. Dir-se-ia que o sopro frio do sepulcro, o hálito glacial da cripta flutuava ao redor de seu corpo. Enquanto comia, notava que o olhar dos serviçais e dos filhos desviava-se obliquamente de suas mãos pálidas, e que, quando aproximava de seus lábios secos a taça de vinho, os garotos estremeciam. Por acaso não lhes parecia natural que a gente do outro mundo comesse e bebesse? E dona Dorotea regressara desse país misterioso, que as crianças conjecturam, ainda que não o conheçam... Se as pálidas mãos maternais tentavam brincar com os louros cachos de dom Félix, o pequenino, de sua feita, se desviava, com o gesto de quem evita o contacto de coalhar o sangue. E à hora amedrontadora do anoitecer, quando as grandes figuras da tapeçaria parecem oscilar, se Dorotea cruzava com dona Clara no refeitório do pátio, a criança, apavorada, fugia como se foge de uma maldita assombração.

A seu turno, o marido — guardando a Dorotea tanto respeito e reverência que maravilhava aos demais — não mais voltara a cingir-lhe a cintura com o braço forte... Em vão a ressuscitada retocava as faces com rubros cosméticos, mesclava às suas tranças fitas e pérolas e derramava sobre o corpete vidrinhos de essências do Oriente. Pela transparência da maquiagem entrevia-se a lividez de cera; em volta do rosto persistia a forma da touca funerária, e entre os perfumes sobressaía o bafo úmido dos mausoléus. Houve um momento em que a ressuscitada fez ao marido uma lícita carícia. Queria saber se seria repelida. Dom Enrique se deixou abraçar passivamente, mas em seus olhos — negros e dilatados pelo horror que, contra a sua vontade, assomava às janelas do espírito —, naqueles olhos dantes galantes, atrevidos e luxuriosos, leu Dorotea uma frase que zumbia dentro de seu cérebro, já invadido por rajadas de demência.

“Donde tu voltaste, não se volta...”

E bem tomou as suas precauções. O propósito devia realizar-se de tal maneira que nunca seria revelado, seria um segredo eterno.  Buscou o molho de chaves da capela e mandou fazer outras iguais por um jovem ferreiro, que partia com o regimento para Flandres no dia seguinte. De posse das chaves de seu sepulcro, saiu Dorotea, sem ser vista, uma tarde, coberta com um manto, e entrou na igreja pela portinhola, escondendo-se na capela de Cristo.  E ao retirar-se o sacristão, fechando o templo, Dorotea desceu lentamente à cripta, alumiando-se com um círio preso a um candeeiro. Abriu a porta apodrecida, fechou por dentro e se deitou, apagando antes o círio com o pé.


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