A TRILHA - Eudes de Pádua Colodino
A TRILHA
Eudes de Pádua Colodino
O velho caminhava firme pela trilha que cortava o
matagal rasteiro. Na planície ao redor, donde se podia ver até onde se perdia a
vista, em todas as direções, apenas vasto ermo. Acima de si, o céu azul com
algumas nuvens e o sol que brilhava claro no ar puro. Sequer ao longe se via
alguma variação no relevo plano. Nada como montanhas, declives, morros
escarpados... Nada. Só a planície, enorme, selvagem. O silêncio era quebrado unicamente
pelo som de suas gastas sandálias no solo arenoso da trilha e pelo vento que
agitava o mato.
E o velho seguia só. Seu aspecto era o de um homem
que carregava anos e anos sobre os ombros, a experiência de tão longeva vida
refletida em seus olhos altivamente sábios. Sob o chapelão, longos cabelos e
barba, trajes rotos, porém dignos. Em suas costas carregava uma grande mochila
cheia de preciosidades sem valor aos que vivem pelas riquezas mundanas. No
cinturão, uma pesada espada e, nas mãos, um cajado e um mapa de pergaminho.
Seus passos decididos estacaram-se de súbito.
Segurando o chapéu, olhou o sol e calculou as horas. Já era tarde. Sacou do
cinturão uma cabaça com água e tomou um gole. Enxugou o suor e consultou o
mapa. Estava no caminho certo, e isso aliviou seu coração. Sempre aliviava. A
esperança por algo muito melhor na chegada ao seu destino lhe enchia de
estranha alegria. Sorriu sozinho e retomou a trilha. Nunca titubeava.
Após algum tempo, sua sombra se alongava mais e
mais atrás de si. Parou. À sua frente, um repentino e confuso emaranhado de
rotas. Nenhuma placa, nenhum indicativo do caminho. A trilha agora se dividia
em várias outras; pelo aspecto, umas mais abandonadas, outras mais utilizadas. Todas
traçavam rumos retilíneos para além de onde a vista alcançava, mas no horizonte
nada havia de diferente ou que pudesse ser usado como referência. Mais uma vez
consultou o mapa.
Enquanto lia, ouviu um farfalhar na vegetação próxima.
Virou-se na direção do som, e viu alguém: este estava quieto, imóvel. O velho
não fazia a mínima ideia de onde aquele indivíduo viera, pois não ouvira passos
próximos de si há muito tempo; tempo sequer imaginado. Os dois ficaram se
estudando por alguns instantes, e o velho percebeu que alguma coisa estranha
havia naquele ser: seus pés eram idênticos, como se fossem dois pés esquerdos.
Estava descalço e andrajoso, seu fedor vinha em lufadas nervosas. Era um homem,
mas não parecia. Não parecia ter raciocínio humano ou alma. Não o conhecia, mas
lhe parecia familiar. Seu olhar inexpressivo e sem brilho passava tremenda
sensação de desesperança; mais pareciam dois poços profundos e vazios.
Os dois se encaravam sem esboçar um único som. Ao
primeiro movimento do velho, um movimento qualquer, o homem lançou-se em
disparada contra si. Sua corrida desengonçada era vigorosa, mas o velho possuía
muita experiência e sagacidade. Não demonstrou medo do indivíduo, e
desembainhou rapidamente sua espada. Defendeu o primeiro golpe com o lado cego
da arma, e sentiu o peso do punho daquele ser; era muito forte. A expressão
fria do inimigo tomou formas bestiais sob a ira do ataque, e continuou
golpeando como um martelo o velho, que somente se defendia com o perfil plano e
sem fio da espada.
Lutaram por longo tempo sem um desfecho sequer. Na
sua profunda sabedoria, o velho sabia que logo escureceria e não poderia ficar
naquilo por muito tempo, pois por mais habilidoso e tenaz que fosse, a
juventude do rival poderia ser vantajosa a este em longo prazo. Em um rápido
movimento, virou a espada, cortando profundamente a pele do braço direito do
inimigo, que soltou um grito animalesco de dor. Aproveitando-se disto, o velho
endireitou a espada e desferiu-lhe um poderoso golpe no ventre. Este, colocando
suas mãos sobre o mortal ferimento que vertia muito sangue por entre seus
dedos, ajoelhou-se e caiu de lado na trilha, emitindo pueris sons guturais. Seu
sangue, vermelho vivo, parecia ferver a terra que era banhada pelo caldo em que
se esvaía sua vida. O velho, no fundo de seu coração, lamentou o ocorrido.
Olhando o outro sangrando a seus pés, limpou a espada, pegou suas coisas
espalhadas no chão e voltou-se para a trilha. Não teria tempo sequer de dar um
enterro digno ao estranho naquele momento; o faria pela manhã.
Relembrando que sua trilha multiplicara em inúmeros
ramais e vendo que a lua já brilhava com alguma força conferida pelo sol
poente, o velho desistiu de prosseguir naquele dia. Pouco ao longe viu uma
árvore frondosa e foi até ela armar acampamento. Estava cansado e precisava de
repouso.
...
A lua cheia e as miríades de estrelas iluminavam a
imensidão coberta pelo capim rasteiro e brilhoso, movimentado caprichosamente pela
leve bruma. O velho dormia sob a árvore ao lado de uma pequena fogueira. Na
trilha, o outro ser estava caído sobre uma poça de sangue ressecado. Formigas
subiam pela sua boca semiaberta e seca. Mas ainda respirava. Arregalou os olhos
num forte suspiro. Cerrou os punhos e sentiu a dor do golpe; quase morrera. Mas
não morreria fácil, tal golpe não lhe causaria ferimento fatal: o ser não era
homem, mas um demônio. Colocou-se de quatro, retomando a força. Não acreditou
que perdera a luta, e enorme ódio apossou-o. Arregalou os olhos, arranhou o
chão de terra arenosa suja de sangue enegrecido e urrou. Urrou contra os céus,
e debatia-se furiosamente em espasmos confusos e violentos. Parecia um animal
manco enlouquecido, gritando a plenos pulmões, jogando terra e mato para o
alto, imerso em fúria e soberba. Seus gritos profanos eram indistinguíveis, e
perdiam-se pela vastidão. Socava o chão com tremenda força até quase arrebentar
os nós dos dedos.
Babando e espumando de ódio, visualizou a fogueira
sob a árvore; o homem estava lá. Seu olhar demoníaco partiu de furiosa
frustração para a perversa alegria. Uma ideia maldita surgiu em sua mente, e
vislumbrou sua chance de vitória. Enfrentando o homem jamais conseguiria, mas
havia uma forma mais traiçoeira – como era de seu gosto – de derrotá-lo.
Ajoelhou-se, cravou suas unhas compridas na carne peitoral e rasgou-se,
gritando desgraçadamente. O vento aumentou e seu corpo desfez-se em fumaça
negra com fedor de enxofre, densa como o fundo do mar, pesada como se fosse
feita de puro chumbo.
O jato de fumaça subiu e preencheu todo o céu sobre
a planície, assumindo a forma de tenebrosa nuvem de tempestade. Esta nuvem trovejava
e expelia uma chuva de cinzas sobre o solo, relampejando rubros coriscos. O
vento ficou ainda mais forte, e a nuvem transformou-se em um violento
redemoinho, deslocando-se na direção do homem, que continuava a dormir imprudentemente
alheio a tudo aquilo.
Chegando ao homem, o redemoinho tocou-o e
rapidamente mergulhou em seu peito, puxando toda a nuvem para dentro. Em um
piscar de olhos, o céu estava limpo de novo e apenas uma brisa moribunda
percorria os campos. O velho continuava a dormir como se nada tivesse
acontecido.
...
Pela manhã, o ancião acordou. Deitado de costas,
olhando para cima, viu que a árvore sob a qual repousara estava totalmente
desfolhada e morta. Piscou novamente e, focando a velha visão, teve pasma certeza
do que via. Escorou-se dolorosamente sobre seus cotovelos e pôs-se sentado com
incomum dificuldade. Olhando a planície ao seu redor, toda queimada pelas cinzas
de algum vulcão, fedendo fumaça e enxofre, sentiu-se desolado. Não estava assim
quando pegou no sono; tampouco se sentia tão mal.
Pegou seu cajado que repousava perto de si e,
escorando-se nele, ficou de pé, suspirando. Sentia-se exausto e cheio de dores.
Era velho, mas nunca sentira algo assim; era como se um peso enorme fora
colocado sobre si. Olhando suas coisas ao redor, todas intactas, viu o mapa.
Caminhando até ele, pegou-o e leu. Não teve reação. A esperança que sempre
enchia seu espírito quando lia aquele antigo mapa transformou-se em amarga
descrença. Jogou o pergaminho de lado e sentou-se novamente. Pela primeira vez
desde que começou a caminhada, há muitos e muitos anos, sentia dúvida. A
certeza o abandonou, junto com a esperança e a alegria em viver. Não entendia o
que estava acontecendo, e assim ficou por muitas horas e dias, contemplando o
vazio inexplicável que tomara sua alma. Acima de si o triste sol se levantava e
se punha, dando lugar às estrelas e à lua sem brilho que iluminavam aquele deserto
desfalecido até o sol nascer outra vez. O vento levantava as cinzas e fazia
redemoinhos sinistros de madrugada, a poeira fustigava seu pétreo rosto, mas o
velho permanecia catatônico.
...
Depois de longo e incalculável tempo, o velho
levantou-se e seguiu a caminhada, mas não mais usou o mapa; apegou-se a uma
estranha certeza dentro de si de que sabia para onde ia. Seus pés o levaram a
regiões sombrias, muito diferentes daquele risonho lugar que era o objetivo de
sua caminhada. Agora se arrastava como um vulto por paragens sem luz e sem
vida, e os penhascos e abismos escuros o satisfaziam funestamente. Passava longas
horas do dia meditando coisas sem sentido, e suas noites tornaram-se
atribuladas. A desgraça o havia tomado sem sequer perceber ou esboçar uma
reação. Ruía por dentro e estava longe, muito longe de seu destino.
Numa de suas andanças por lugares mortos,
vislumbrou uma pedra muito alta. Pateticamente arremedando sua antiga
vitalidade, escalou mancando os calhaus frios e enegrecidos da encosta do
penhasco. Alcançando o topo, olhou para baixo. Tentou se lembrar de como chegou
àquela situação, mas sua mente estava tremendamente confusa. Guardava dentro de
si uma semente de luz, mas estava cercada por trevas. Uma lágrima escorreu pela
sua face cavada de rugas, olhou para baixo; nada via. Era muito profundo o
vale. Vale da morte... Fechou os olhos, resoluto. Abandonou-se de si mesmo para
a fatal queda.
Estacou.
Estava tomado por um impulso interno que não o
permitia pular. Desesperado por incomum sentimento, sentia um tremendo combate
interno. Algo estranho a si estava tentando dominá-lo. Por dentro sentia como
se queimasse nas chamas do inferno, e sua consciência retornou plena por um
instante, como o sol que aparece por entre as nuvens num dia chuvoso. De
repente, percebeu o que ocorria. O forte velho rangeu seus dentes e tensionou
todos os músculos. Abriu os olhos para o alto e soltou forte grito que ecoou no
abismo, causando a revoada de alguns corvos e abutres de suas encostas.
O velho era sábio em demasia. Percebeu que era
tarde demais. Reunindo todas suas forças, pegou a espada da bainha e tentou
atentar contra sua funesta existência, mas foi contido. Caiu no chão, sofrendo,
gritando. Sua consciência se esvaía lentamente como o fechar de cortinas de uma
peça teatral. No seu último instante, vislumbrou sua face pelo reflexo da
lustrosa espada que jazia ao seu lado: seu olhar era o mesmo do seu adversário
da luta passada: frio, sem vida, vazio. Olhou para os pés; ambos esquerdos. Até
as surradas sandálias tinham os dois pés esquerdos. Já agia sob a influência do
demônio a muito tempo e não sabia. Sem forças e sem esperança, exaurido,
entregou-se.
...
O vento fustigava o cume da alta montanha,
balançando os trapos da roupa que cobria o corpo caído no seu alto. Um coiote
fora atraído para o fresco cadáver, farejando sua pele enrugada e imunda. De
orelhas empinadas, tomou grande susto quando aquele homem morto começou a se
mexer. Correu enquanto este se levantava, vacilante. Sua face era impassível,
inexpressiva. Seus olhos de profundo negrume percorreram o ambiente ao redor.
Sentia-se em casa, mas aquilo não lhe bastava. Precisava de mais em sua
existência amaldiçoada e insatisfeita. Olhou para o oriente e viu um pedaço de
céu azul. Um maldito pedaço de céu azul. E planícies verdejantes.
Principiou sua marcha. Não raciocinava como homem,
e ninguém era capaz de entendê-lo. Agia conforme sua condição demoníaca. Outras
vítimas eram necessárias.
O pequeno coiote viu sua última refeição escapar,
de longe. Seus instintos animalescos o preveniram de ameaçadora coisa. Seu
potente focinho não farejava um cadáver, mas algo pior, muito putrefato,
repugnante até para o pior dos carniceiros. Mas essa coisa estava viva,
alucinantemente perigosa, curvada à esquerda, afastando-se para o leste, para o
nascente, costas banhadas pelas luzes rubras do crepúsculo daquelas terras
malditas em sua marcha de morte.
Comentários
Postar um comentário