AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS - Conto Clássico de Terror - Robert E. Howard
AQUELES QUE MORAM SOB AS TUMBAS
Robert E. Howard
(1906 – 1936)
Tradução de Fernando Neeser de Aragão
Acordei
subitamente e me sentei na cama, me perguntando sonolento quem batia tão
violentamente à porta, ameaçando despedaçar os painéis. Uma voz guinchava,
intoleravelmente aguçada, como se por terror louco.
– Conrad,
Conrad! – alguém guinchava do outro lado da porta. – Pelo amor de Deus, deixe-me
entrar! Eu o vi! Eu o vi!
–
Parece ser Job Kiles – disse Conrad, erguendo sua longa estrutura do divã onde
estivera dormindo, após ter cedido sua cama para mim. – Não derrube a porta! –
ele gritou, procurando por seus chinelos – Estou indo!
– Bem,
apresse-se! – gritou o visitante invisível – Acabei de olhar para dentro dos
olhos do Inferno!
Conrad
acendeu uma luz e abriu rapidamente a porta; e, numa figura meio caída, meio
cambaleante e com olhos desvairados, reconheci o homem a quem Conrad chamara de
Job Kiles – um homem rançoso e miseravelmente velho, que vivia na pequena
propriedade vizinha à de Conrad. Agora, uma mudança pavorosa acontecera com o
homem, normalmente tão reservado e senhor de si. Seu cabelo ralo estava
totalmente eriçado; gotas de suor lhe brilhavam na barba cinza e, de tempos em
tempos, ele tremia como se de uma febre violenta.
– Em
nome de Deus, o que houve, Kiles? – exclamou Conrad, encarando-o – Você parece
que viu um fantasma!
– Um
fantasma! – a voz elevada de Kiles estalou e caiu num guincho de risada
histérica – Eu vi um demônio do Inferno! Eu lhe digo, eu o vi esta noite! Há
apenas alguns minutos! Ele me olhou pela minha janela e riu para mim! Oh, Deus,
aquela risada!
–
Quem? – Conrad perguntou brusca e impacientemente.
– Meu
irmão Jonas! – gritou o velho Kiles.
Até
Conrad se sobressaltou. Jonas, irmão gêmeo de Job, havia morrido há uma semana.
Tanto Conrad quanto eu tínhamos visto seu cadáver ser colocado na tumba, no
alto das inclinações íngremes das Colinas de Dagoth. Eu me lembrava do ódio que
existira entre os irmãos: Job, o avarento, e Jonas, o esbanjador, que passou
seus últimos dias em pobreza e solidão, na velha e arruinada mansão da família,
nos declives mais baixos das Colinas de Dagoth; todo o seu veneno pairando
sobre sua alma azedada, que se centrava no irmão sovina que morava numa casa
própria, no vale. Este sentimento havia sido recíproco. Até mesmo quando Jonas estava
morrendo, Job havia, de má vontade, se permitido ser convencido a ir até seu
irmão. Enquanto isso ocorria, ele havia estado sozinho quando este último
morreu, e a cena de morte deve ter sido horrenda, pois Job havia corrido para
fora da sala, trêmulo e com o rosto pálido, perseguido por uma horrível
crepitação de risada, quebrada bruscamente pelo súbito estrépito de morte.
Agora,
o velho Job tremia diante de nós, o suor lhe escorrendo da pele acinzentada e
balbuciando o nome de seu irmão morto.
– Eu o
vi! Eu me levantei e sentei esta noite mais tarde que o usual. Assim que
apaguei a luz para ir à cama, seu rosto me olhou malevolamente através da
janela, emoldurado pelo luar. Ele voltou do Inferno para me arrastar para
baixo, como jurou fazer enquanto morria. Ele não é humano! Há anos, ele não
era! Suspeitei disso quando ele retornou de sua longa perambulação no Oriente.
Ele é um demônio em forma humana. Um vampiro! Ele planeja me destruir corpo e
alma!
Fiquei
mudo e totalmente perplexo, e até Conrad não encontrou palavras. Confrontado
pela aparente evidência de completa loucura, o que dizer ou fazer? Meu único
pensamento era o de que Job Kiles estava obviamente insano. Ele agora agarrava
Conrad pela gola de sua roupa de dormir, e o sacudia violentamente na agonia de
seu terror.
– Só
há uma coisa a ser feita! – ele gritou, com a luz do desespero em seus olhos –
Devo ir até a tumba dele! Preciso ver, com meus próprios olhos, se ele ainda
jaz lá, onde o enterramos! E vocês devem vir comigo! Não ouso atravessar
sozinho a escuridão! Ele pode estar esperando por mim... jazendo à espera,
atrás de alguma sebe ou árvore!
– Isto
é loucura, Kiles! – advertiu Conrad – Jonas está morto... você teve um
pesadelo...
–
Pesadelo! – sua voz se ergueu a um grito estalado – Tive vários, desde que
fiquei ao lado de seu maligno leito de morte, e ouvi as ameaças blasfemas
escorrerem como um rio negro de seus lábios espumantes; mas aquilo não foi
sonho! Eu estava completamente acordado, e eu lhes digo... eu lhes digo que vi
meu irmão-demônio Jonas, me olhando malévola e horrendamente através da janela!
Ele
torceu as mãos, gemendo de terror, com todo o seu orgulho, compostura e
equilíbrio varridos por terror total, primitivo e animal. Conrad me olhou de
relance, mas eu não tinha sugestão a oferecer. O assunto parecia tão
completamente insano, que a única coisa óbvia a fazer parecia ser chamar a
polícia e mandar o velho Job para o manicômio mais próximo. Mas havia, em seus
modos, um terror fundamental que parecia atingir até mesmo a sensação ao longo
de minha espinha.
Como
se sentindo nossa dúvida, ele voltou a gritar:
– Eu
sei! Vocês acham que estou louco! Estou tão são quanto vocês! Mas estou indo
até aquela tumba, se eu tiver que ir só! E, se me deixarem ir só, meu sangue
ficará em suas consciências! Vocês irão?
–
Espere! – Conrad começou a se vestir apressadamente. – Nós vamos com você. Acho
que a única coisa que destruirá esta alucinação é ver seu irmão no caixão dele.
– Sim
– o velho Job riu terrivelmente. – Em sua tumba, no caixão sem tampa! Por que
ele preparou aquele caixão aberto antes de morrer, e deixou ordens para que
nenhum tipo de tampa fosse colocado sobre ele?
-–Ele
sempre foi excêntrico – respondeu Conrad.
- Ele
sempre foi um demônio – rosnou o velho Job. – Nós nos odiávamos desde a
juventude. Quando ele desperdiçou sua herança e voltou rastejando, paupérrimo,
ele se ressentiu porque eu não queria dividir com ele minhas riquezas tão
duramente adquiridas. Aquele cão negro! Aquele demônio das covas do Purgatório!
– Bom,
vamos ver logo se ele está em segurança na sua tumba – disse Conrad. – Está
pronto, O’Donnel?
–
Pronto – respondi, prendendo ao coldre minha pistola 45. Conrad riu.
– Não
consegue esquecer sua criação texana, hein? – ele gracejou. – Acha que pode ser
chamado para balear um fantasma?
– Bom,
você não sabe dizer – respondi. – Não gosto de sair à noite sem ela.
–
Pistolas são inúteis contra um vampiro – disse Job, movendo-se com impaciência.
– Só há uma única coisa que prevalecerá contra eles! Uma estaca enfiada no
coração negro do demônio.
–
Grandes céus, Job! – Conrad riu abruptamente. – Não consegue falar sério sobre
essa coisa?
– Por
que não? – Uma chama de loucura se ergueu em seus olhos. – Existiram vampiros
em épocas passadas... ainda existem no Leste Europeu e Oriente. Eu o ouvi se
gabar a respeito do próprio conhecimento de cultos secretos e magia negra.
Suspeitei disso... então, enquanto jazia moribundo, ele me contou seu segredo
medonho... jurou que voltaria do túmulo e me arrastaria com ele para o Inferno!
Saímos
de casa e atravessamos o gramado. Aquela parte do vale era pouco povoada,
embora poucas milhas a sudoeste brilhassem as luzes da cidade. Adjacente aos
jardins de Conrad a oeste, ficava a propriedade de Job, a casa escura avultando
magra e silenciosa por entre as árvores. Aquela casa era o único luxo que o
velho avarento permitia a si mesmo. Uma milha ao norte, fluía o rio, e ao sul
se erguiam os sombrios contornos negros daquelas baixas e onduladas colinas
estéreis, com longas inclinações cobertas por arbustos, às quais os homens
chamam de Colinas de Dagoth – um nome curioso, não-aparentado com qualquer
língua indígena conhecida, mas usado inicialmente por aqueles homens vermelhos
para designarem aquela cordilheira raquítica. Eram praticamente inabitadas.
Havia fazendas nas inclinações externas, em direção ao rio, mas os vales
internos tinham solos muito rasos, e as próprias colinas eram rochosas demais
para o cultivo. A pouco menos de 800 metros da propriedade de Conrad, se erguia
a estrutura vagabunda que havia abrigado a família Kiles durante uns 300 anos –
pelo menos, as pedras fundamentais datavam dessa época, embora o resto da casa
fosse mais moderno. Acho que o velho Job estremeceu ao olhar para ela, ali
empoleirada como um abutre no ninho, contra o negro fundo ondulado das Colinas
de Dagoth.
Era
uma selvagem noite ventosa, a qual atravessamos em nossa louca busca. Nuvens
passavam sem parar pela lua, e o vento uivava pelas árvores, trazendo estranhos
ruídos noturnos e pregando curiosas peças com nossas vozes. Nossa meta era a
tumba que se acocorava numa inclinação mais alta de uma colina que se projetava
do resto da cordilheira, correndo para trás e acima do planalto alto no qual se
erguia a casa do velho Kiles. Era como se o ocupante do sepulcro olhasse sobre
a casa ancestral e para o vale, que sua gente outrora possuíra da aresta ao
rio. Agora, todo o chão pertencente à velha propriedade era a faixa que subia
as inclinações até as colinas, a casa numa extremidade e a tumba na outra.
A
colina sobre a qual o túmulo fora construído divergia das demais, como eu
dissera, e, ao irmos para o sepulcro, passamos perto de sua extremidade íngreme
e coberta por matagal, a qual recuava bruscamente para dentro de um penhasco
vertical e coberto por moita. Estávamos nos aproximando da ponta dessa aresta,
quando Conrad comentou:
– O
que possuiu Jonas, para construir seu túmulo tão longe das criptas da família?
– Ele
não o construiu – rosnou Job. – Foi construído há muito tempo por nosso
ancestral, o velho Capitão Jacob Kiles, e por causa dele, esta projeção
particular ainda é chamada de Colina Pirata... pois ele era um bucaneiro e
contrabandista. Algum estranho capricho o fez construir seu tumulo lá em cima
e, em sua vida, ele passou muito tempo sozinho ali, especialmente à noite. Mas
ele nunca o ocupou, pois estava perdido no mar, numa luta com um navio de
guerra. Ele costumava observar, em busca de inimigos ou soldados, desde aquele
penhasco à nossa frente, e é por isso que as pessoas o chamam, até hoje, de
Cabo do Contrabandista.
“O
túmulo estava em ruínas, quando Jonas começou a morar na antiga casa, e ele o
restaurou para receber seus ossos. Ele bem sabia que não ousava dormir em solo
santificado! Antes de morrer, ele havia feito todos os preparativos – a tumba
havia sido reconstruída, e o caixão sem tampa colocado nela para recebê-lo...”.
Estremeci,
apesar de mim mesmo. A escuridão, as nuvens desvairadas passando pela lua
leprosa, os ruídos estridentes do vento, as sombrias colinas escuras avultando
sobre nós, as palavras desvairadas de nosso companheiro, tudo trabalhava minha
imaginação para povoar a noite com formas de horror e pesadelo. Olhei nervosamente
para as inclinações cobertas por arbustos, negras e repelentes na luz mutável,
e me vi desejando que não estivéssemos passando tão perto dos despenhadeiros
com moitas e assombrados por lendas do Cabo do Contrabandista, se sobressaindo
da cordilheira sinistra como a proa de um navio.
– Não
sou uma garota tola, para ser assustado por sombras. – O velho Job tagarelava.
– Vi seu rosto maligno na janela iluminada pela lua. Sempre acreditei
secretamente que os mortos caminham à noite. Agora... o que é isso?
Ele
parou bruscamente, congelado numa altitude de terror completo. Instintivamente,
aguçamos nossos ouvidos. Ouvimos os galhos das árvores se sacudirem na
ventania. Ouvimos o farfalhar alto da grama alta.
– É
apenas o vento – murmurou Conrad. – Ele distorce qualquer som.
– Não!
Não, eu lhe digo! Era...
Um
grito fantasmagórico veio com o vento – uma voz aguçada com medo e agonia
mortais:
–
Socorro! Socorro! Oh, Deus, tenha piedade! Oh, Deus! Oh, Deus!
– A
voz do meu irmão! – gritou Job. – Ele está me chamando desde o Inferno!
– De
onde ela veio? – sussurrou Conrad, com lábios subitamente secos.
– Não
sei. – Minha pele se arrepiava umidamente até meus membros. – Não sei dizer.
Pode ter vindo de cima... ou de baixo. Ela soa estranhamente abafada.
– O
aperto da sepultura abafa a voz dele! – guinchou Job. – A mortalha grudada nele
sufoca seus gritos! Eu lhes digo que ele uiva nas grelhas em brasa do Inferno,
e quer me arrastar para compartilhar seu destino! Lá! Lá sobre o túmulo!
– A
rota final de toda a humanidade – murmurou Conrad, cuja brincadeira medonha com
as palavras de Job não me adicionou conforto. Seguimos o velho Kiles, mal
conseguindo lhe seguir o passo enquanto ele galopava – uma figura magra e
grotesca, atravessando as inclinações e galgando em direção ao vulto acocorado,
ao qual o ilusório luar revelava como uma caveira brilhando obtusamente.
– Você
reconheceu essa voz? – murmurei para Conrad.
– Não
sei. Estava abafada, como você mencionou. Pode ter sido um truque do vento. Se
eu disser que achei que foi Jonas, você pensaria que estou louco.
– Não
agora – murmurei. – Achei que fosse insanidade, no início. Mas o espírito da
noite entrou no meu sangue. Estou pronto para acreditar em qualquer coisa.
Havíamos
galgado os declives e ficado diante da maciça porta de ferro do túmulo. Acima e
atrás dela, a colina se erguia íngreme, oculta por densos matagais. O sombrio
mausoléu parecia investido de agouro sinistro, causado pelos acontecimentos
fantásticos da noite. Conrad virou a luz de sua lanterna sobre aquela visão
ponderosa, com sua aparência antiga.
– Esta
porta não foi aberta – disse Conrad. – A tranca não foi violada. Veja: aranhas
já haviam feito suas teias por toda a soleira, e os fios estão intactos. O
capim diante da porta não foi pisado, como aconteceria se alguém tivesse
recentemente entrado no túmulo... ou saído dele.
– O
que são portas e janelas para um vampiro? – queixou-se Job. – Eles passam por
paredes sólidas como fantasmas. Eu lhes digo, não descansarei até ter entrado
nessa tumba e feito o que devo fazer. Tenho a chave... a única chave existente
no mundo que se encaixará naquela tranca.
Ele a
puxou para fora: uma ferramenta antiga, a qual enfiou na fechadura. Houve um
estalar e ranger de básculas enferrujadas, e o velho Job recuou, como se na
expectativa de algum fantasma com presas de hiena voar em sua direção, através
da porta que se abria.
Conrad
e eu espiamos a parte de dentro – e admito que eu me firmei, sacudindo por
conjecturas caóticas. Mas a escuridão lá dentro era estígia. Conrad fez menção
de ligar sua lanterna, mas Job o impediu. O velho parecia ter recuperado grande
parte de sua compostura normal.
–
Dê-me a lanterna – ele disse, e havia determinação sombria em sua voz. – Irei
só. Se ele retornou para o túmulo... se ele estiver novamente em seu caixão,
sei como lidar com ele. Esperem aqui, e se eu gritar, ou se ouvirem sons de
luta, corram para dentro.
–
Mas... – Conrad começou uma objeção.
– Não
questione! – guinchou o velho Kiles, começando novamente a se descompor. – Esta
é minha tarefa, e eu a farei só!
Ele
praguejou quando Conrad inadvertidamente girou o raio de luz diretamente em seu
rosto; logo, agarrando a lanterna e puxando algo de seu paletó, entrou
furtivamente no túmulo, empurrando a porta maciça para trás de si.
– Mais
insanidade – murmurei inquieto. – Por que ele insistiu tanto para o
acompanharmos, se pretendia entrar sozinho? E você percebeu o brilho nos olhos
dele? Pura loucura!
– Não
estou tão certo – respondeu Conrad. – Pareceu-me mais um triunfo maligno.
Quanto a estar só, você dificilmente pode chamar assim, pois estamos a apenas
poucos passos de distância dele. Ele tem algum motivo para não querer que
entremos na tumba com ele. O que foi aquilo que ele tirou do paletó, quando
entramos?
–
Parecia uma estaca afiada e um pequeno martelo. Por que ele pegaria um martelo,
já que não há o que ser desamarrado sobre o caixão?
–
Claro! – Conrad falou bruscamente. – Como fui tolo em não ter entendido. Não me
admira que ele queira adentrar o túmulo sozinho! O’Donnel, ele está falando
sério sobre esse disparate de vampiro! Não se lembra das insinuações que ele
deixou escapar, sobre estar preparado e tudo o mais? Ele pretende enfiar aquela
estaca no coração do irmão! Vamos! Não pretendo deixar que ele mutile...
Da
tumba, vibrou um grito que me assombrará quando eu estiver morrendo. Seu timbre
medonho paralisou nossos passos e, antes que pudéssemos recuperar o juízo,
houve um correr louco de pés, o impacto de um corpo voador contra a porta; e,
para fora da tumba, como um morcego soprado para fora dos portões do Inferno,
voou a figura de Job Kiles. Ele caiu de ponta-cabeça aos nossos pés, a lanterna
elétrica em sua mão caindo ao chão e se apagando. Atrás dele, a porta de ferro
ficou entreaberta e eu pensei ter ouvido um estranho barulho de deslizar e
arrastar na escuridão. Mas toda a minha atenção foi voltada para o coitado que
se torcia aos nossos pés em horríveis convulsões.
Nós
nos inclinamos sobre ele. A lua, deslizando de trás de uma nuvem escura,
iluminou seu rosto lívido e nós gritamos involuntariamente diante do horror ali
estampado. Toda a luz de sanidade fora apagada de seus olhos arregalados, como
uma vela apagada no escuro. Seus lábios frouxos se moviam, salpicando espuma.
Conrad o sacudiu:
–
Kiles, em nome de Deus, o que aconteceu com você?
Um
horrível choramingar babante foi a única resposta; logo, entre os sons
salivantes e sem significado, percebemos palavras humanas, babantes e meio
inarticuladas.
– A
coisa! A coisa no caixão!
Então,
quando Conrad gritou uma pergunta feroz, os olhos rolaram para cima e pararam,
os lábios contraídos se congelaram num horrível sorriso triste, e toda a
estrutura magra do homem parecia afundar e desmoronar sobre si mesma.
–
Morto! – murmurou Conrad, empalidecido.
– Não
vejo ferimento. – sussurrei, sacudido até minha própria alma.
- Não
há ferimentos... nenhuma gota de sangue.
–
Então... então... – Mal tive coragem de transformar o pensamento pavoroso em
palavras.
Olhamos
medrosamente para a tira retangular de negrura, destacada na porta parcialmente
aberta da tumba silenciosa. O vento guinchou subitamente através da grama, como
uma exultante canção de triunfo demoníaco; e um súbito tremor se apossou de
mim.
Conrad
se ergueu e endireitou os ombros.
–
Vamos! – ele disse. – Só Deus sabe o que se esconde naquele túmulo infernal...
Mas temos que descobrir. O velho estava muito agitado, presa de seus próprios
medos. Seu coração não era muito forte. Algo deve ter causado sua morte. Está
comigo?
Qual
terror de uma ameaça tangível e compreendida pode se igualar ao de uma ameaça
invisível e sem nome? Mas balancei minha cabeça em consentimento, e Conrad
pegou a lanterna, a ligou e grunhiu de prazer por ela não estar quebrada.
Então, aproximamo-nos da sepultura como homens que se aproximam da toca de uma
serpente. Minha pistola estava engatilhada em minha mão, quando Conrad abriu
bruscamente a porta. Sua luz dançava rapidamente sobre as paredes úmidas, chão
empoeirado e teto abobadado, até descansar no caixão sem tampa que se
encontrava sobre seu pedestal de pedra no centro. Deste, nós nos aproximamos
com a respiração presa, sem ousar fazer conjectura sobre qual horror estranho e
não-terrestre poderia ir ao encontro de nossos olhos. Inspirando rapidamente,
Conrad passou a luz de sua lanterna dentro dele. Um grito escapou dos nossos
lábios: o caixão estava vazio.
– Meu
Deus! – sussurrei – Job estava certo! Mas onde está o vampiro?
–
Nenhum caixão vazio tirou a vida do corpo de Job Kiles – respondeu Conrad. –
Suas últimas palavras foram “a coisa no caixão”. Havia algo dentro dele... algo
que, ao ser visto, extinguiu a vida de Job Kiles como uma vela apagada.
– Mas
onde está essa coisa? – perguntei com desconforto, um arrepio bem medonho me
subindo e descendo pela espinha. – Ela não pode ter saído da tumba, sem a
termos visto. Foi algo que pode ficar invisível à vontade? Estaria acocorada
invisível na tumba conosco, aqui neste instante?
– Esta
conversa é loucura – Conrad falou bruscamente, mas olhando rápida e
instintivamente sobre o ombro à direita e esquerda. Logo, ele acrescentou:
– Você
percebeu um leve odor repulsivo ao redor deste caixão?
– Sim, mas não consigo defini-lo.
– Nem
eu. Não é exatamente um ranço de cripta. É uma espécie de cheiro terrestre de
réptil. Ele me lembra vagamente os cheiros que senti debaixo da superfície da
terra. Ele se adere ao caixão... como se alguma coisa profana do fundo da terra
houvesse jazido ali.
Ele
correu a luz sobre as paredes novamente, e a deteve subitamente, focando-a na
parede de trás, a qual estava fora da camada de rocha da colina na qual a tumba
foi construída.
– Veja!
Na
parede supostamente sólida, aparecia uma longa abertura fina. Com uma só
passada, Conrad a alcançou, e juntos a examinamos. Empurramos cautelosamente a
porção da parede mais próxima dela, e ela cedeu silenciosamente para dentro,
abrindo-se numa escuridão tamanha como eu nunca sonhara existir deste lado da sepultura.
Recuamos involuntariamente e ficamos tensos, como se na expectativa de algum
horror noturno saltar sobre nós. Logo, a risada brusca de Conrad foi como um
choque de água gelada sobre nervos tensos.
- Pelo
menos, o ocupante da tumba usa um meio não-sobrenatural de entrar e sair – ele
disse. – Esta porta secreta foi evidentemente construída com extremo cuidado.
Veja, é meramente um grande bloco vertical de pedra que gira sobre um pino. E o
silêncio com o qual ele funciona mostra que o pino e os encaixes foram
lubrificados recentemente.
Ele
dirigiu seu raio de luz para dentro do buraco atrás da porta, e este revelou um
túnel estreito correndo paralelo à soleira da porta, claramente para dentro da
rocha sólida da colina. As paredes e o chão eram lisos e polidos, e o teto
curvo.
Conrad
recuou, voltando-se para mim:
–
O’Donnel, eu pareço sentir algo realmente obscuro e sinistro aqui, e tenho
certeza de que isso possui uma influência humana. Sinto como se tivéssemos nos
deparado com um rio negro e oculto, correndo sob nossos próprios pés. Para onde
ele leva, não sei dizer, mas creio que o poder por trás de tudo isso seja Jonas
Kiles. Acredito que o velho Job realmente viu seu irmão na janela esta noite.
– Mas,
a tumba vazia ou não, Jonas Kiles está morto.
– Acho
que não. Creio que ele estava num estado autoinduzido de catalepsia, tal como é
praticado pelos faquires hindus. Já vi alguns casos, e juraria que eles estavam
realmente mortos. Eles descobriram o segredo da animação suspensa voluntária,
apesar dos cientistas e céticos. Jonas Kiles viveu vários anos na Índia e, de
alguma forma, ele deve ter aprendido aquele segredo.
“O
caixão aberto, o túnel guiando do ponto da tumba à crença de que ele estava
vivo quando foi colocado lá. Por alguma razão, ele queria que as pessoas
acreditassem que havia morrido. Pode ser o capricho de uma mente perturbada.
Pode ter um significado mais profundo e sombrio. À luz de sua aparição ao irmão
e da morte de Job, acredito mais na segunda opção; mas, neste momento, minhas suspeitas
são horríveis e fantásticas demais para expressar em palavras. Contudo, eu
pretendo explorar este túnel. Jonas pode estar escondido em algum lugar dele.
Está comigo? Lembre-se, aquele homem pode ser um maníaco homicida, ou se não,
ele pode ser ainda mais perigoso que um louco”.
–
Estou com você – grunhi, apesar da minha pele se arrepiar diante da perspectiva
de mergulhar naquela cova escura. – Mas, e quanto ao grito que ouvimos ao
passarmos pelo Cabo? Não houve fingimento de agonia! E qual foi a coisa que Job
viu no caixão?
– Não
sei. Pode ter sido Jonas, vestido com algum disfarce infernal. Devo admitir que
há muito mistério unido a este assunto, mesmo que aceitemos a teoria de que
Jonas está vivo e por trás de tudo isso. Mas vamos olhar dentro daquele túnel.
Ajude-me a levantar Job. Não podemos deixá-lo aqui jazendo deste jeito. Nós o
colocaremos no caixão.
E
assim, erguemos Job Kiles e o colocamos no caixão do irmão que ele odiava, onde
ele jazeu com olhos vidrados mirando desde suas congeladas feições cinzas.
Enquanto eu o olhava, o canto fúnebre do vento parecia ecoar suas palavras em
meus ouvidos: “Lá! Sobre o túmulo”. E seu caminho o havia realmente levado para
o túmulo.
Conrad
entrou primeiro pela porta secreta, à qual deixamos aberta. Enquanto
adentrávamos aquele túnel negro, tive um momento de puro medo; e fiquei feliz
que a pesada porta externa da tumba não possuísse fecho de mola, e que Conrad
tivesse em seu bolso a única chave com a qual a tranca maciça pudesse ser
fechada. Tive uma sensação desconfortável de que o demoníaco Jonas poderia
trancar a porta, deixando-nos encerrados na tumba até o Juízo Final.
O
túnel parecia correr irregularmente cada vez mais para o leste... e se mover
cautelosamente, reluzindo a luz diante de nós.
– Este
túnel nunca foi aberto por Jonas Kiles – sussurrou Conrad – Há um verdadeiro ar
de antiguidade nele... Veja!
Outra
portada escura apareceu à nossa direita. Conrad dirigiu sua lanterna para
dentro dela, mostrando outra passagem mais estreita. Outras portas se abriram
dentro dela, em ambos os lados.
– É
uma rede regular – murmurei. – Corredores paralelos conectados por túneis
menores. Quem imaginaria tal coisa sob as Colinas de Dagoth?
– Como
Jonas Kiles a descobriu? – perguntou-se Conrad – Veja; há outra portada à nossa
direita... e outra... e mais outra! Você está certo... é uma verdadeira rede de
túneis. Quem, em nome do céu, os cavou? Devem ser o trabalho de alguma raça
pré-histórica desconhecida. Mas este corredor em particular foi usado recentemente.
Vê como a poeira está agitada no chão? Todas as portas estão à direita, e
nenhuma à esquerda. Este corredor segue a linha externa da colina, e deve haver
uma saída em algum lugar ao longo dele. Veja!
Estávamos
passando pela abertura de um dos escuros túneis que se cruzavam, e Conrad havia
lançado sua luz sobre a parede ao lado dele. Lá, nós vimos uma seta tosca,
feita com giz vermelho e apontando para o túnel menor.
– Isso
não pode levar para a saída – murmurei. – Ele mergulha ainda mais fundo nas
entranhas da colina.
–
Vamos segui-lo, de qualquer forma – respondeu Conrad. – Podemos achar
facilmente o caminho de volta para este túnel externo.
Então,
nós o adentramos, cruzando outros corredores maiores, e, em cada um,
encontrando a seta que ainda apontava o caminho por onde íamos. O fino raio de
luz de Conrad parecia quase perdido naquela densa escuridão, e presságios
inomináveis e medos instintivos me assombravam enquanto mergulhávamos cada vez
mais fundo no coração daquela colina amaldiçoada. Súbito, o túnel terminou
abruptamente numa escada estreita, que guiava para baixo e desaparecia na
escuridão. Um estremecimento involuntário me sacudiu enquanto eu descia o olhar
para aqueles degraus esculpidos. Quais pés profanos os haviam pisado em eras
esquecidas? Logo, nós vimos algo mais – uma pequena câmara se abrindo para o
túnel, bem no topo da escada. E, quando Conrad dirigiu sua luz para dentro dela,
uma exclamação involuntária irrompeu de meus lábios. Não havia ocupante, mas
ela estava cheia de evidências de ocupação recente. Entramos e ficamos seguindo
o movimento do fino raio de luz.
Que
aquela câmara havia sido ocupada por humanos, isso não me espantava, dadas as
nossas descobertas anteriores, mas ficamos horrorizados com a condição do
conteúdo. Havia uma cama de acampamento ao lado dela, quebrada, os cobertores
espalhados sobre o chão rochoso em tiras esfarrapadas. Livros e revistas
estavam rasgados em pedaços e espalhados a esmo; latas de comida jaziam
espalhadas sem cuidado, batidas e tortas, algumas delas arrebentadas e com seu
conteúdo derramado. Havia uma lâmpada esmagada sobre o chão.
– Um
esconderijo para alguém – disse Conrad. – E aposto minha cabeça que é Jonas
Kiles. Mas que caos! Veja estas latas, aparentemente abertas ao serem batidas
contra o chão de pedra... e esses cobertores, rasgados em tiras, como um homem
rasgaria um pedaço de papel. Bom Deus, O’Donnel, nenhum ser humano faria
tamanha devastação!
– Um
louco faria – murmurei – O que é isso?
Conrad
havia parado e apanhado uma agenda. Ele a ergueu até a luz de sua lanterna.
–
Muito rasgada – ele grunhiu. – Mas temos sorte, de qualquer forma. É o diário
de Jonas Kiles! Conheço sua caligrafia. Veja, esta última página está intacta e
com a data de hoje! Uma prova positiva de que ele está vivo, na falta de outra
prova.
– Mas
onde ele está? – sussurrei, olhando ao redor com medo. – E por que toda esta
devastação?
– A
única coisa na qual posso pensar – disse Conrad – é que o homem era, pelo
menos, parcialmente lúcido quando entrou nestas cavernas, mas, desde então,
ficou insano. É melhor ficarmos alertas; se ele está louco, é totalmente
possível que ele possa nos atacar no escuro.
– Eu
pensei nisso – grunhi com um estremecimento involuntário. – É um belo
pensamento: um louco se escondendo nestes infernais túneis negros, para saltar
sobre nossas costas. Prossiga; leia o diário, enquanto eu fico de olho na
porta.
– Vou
ler este último registro – disse Conrad. – Talvez ele lance alguma luz sobre o
tema.
E,
focando a luz sobre os rabiscos, ele leu:
“Agora
tudo está pronto para meu grande golpe. Esta noite, deixo para sempre este
abrigo, nem ficarei triste, pois a eterna escuridão e silêncio estão começando
a sacudir meus nervos de aço. Estou ficando imaginativo. Mesmo enquanto
escrevo, pareço ouvir sons furtivos, como se de coisas rastejando de baixo,
embora eu nunca tenha visto sequer um morcego ou uma cobra nestes túneis. Mas
amanhã ocuparei a bela casa de meu amaldiçoado irmão. Enquanto ele – e é uma
ótima zombaria eu me arrepender de não poder compartilhar isso com alguém –
tomará meu lugar na fria escuridão – mais escura e fria que estes túneis
escuros.
“Devo
escrever, se não posso falar disso, pois estou emocionado com a minha própria
sagacidade. Que astúcia diabólica a minha! Com quão demoníaca velhacaria eu
planejei e preparei! Não havia ninguém no caminho, antes da minha ‘morte’ – há,
há, há, se os tolos soubessem! –, no qual trabalhei nas superstições de meu
irmão – deixando cair alusões e místicas observações. Ele sempre me considerou
uma ferramenta do Maligno. Antes da minha ‘enfermidade’ final, ele tremeu à
beira de acreditar que eu havia me tornado sobrenatural ou infernal. Logo, em
meu ‘leito de morte’, quando despejei toda a minha fúria sobre ele, seu espanto
foi genuíno. Eu sabia que ele estava totalmente convencido de que sou um
vampiro. Bem, eu realmente conheço meu irmão. Estou certo de que ele fugiu de sua
casa e preparou uma estaca para enfiar em meu coração. Mas ele não tomará
atitude alguma, até ter certeza de que suas suspeitas são verdadeiras.
“Darei
a ele esta certeza. Esta noite, aparecerei em sua janela. Aparecerei e sumirei.
Não quero matá-lo de medo, porque assim meus planos de nada serviriam. Sei que,
quando ele se recuperar de seu primeiro susto, virá até minha tumba para me
matar com sua estaca. E, quando ele estiver em segurança na tumba, eu o
matarei. Trocarei de roupa com ele – o colocarei em segurança na tumba, no
caixão aberto – e voltarei furtivamente à sua bela casa. Nós nos parecemos
bastante um com o outro, de modo que, com meu conhecimento e boa educação,
posso imitá-lo perfeitamente. Além disso, quem suspeitaria? É bizarro demais –
fantástico demais. Assumirei sua vida onde ele a deixou. As pessoas podem se
surpreender com a mudança em Job Kiles, mas isso não irá além da surpresa.
Viverei e morrerei no lugar de meu irmão e, quando a morte vier realmente a
mim, que ela seja bastante adiada! Vou jazer em pompa, na cripta funerária do
velho Kiles, com o nome de Job Kiles em minha lápide, enquanto o verdadeiro Job
jaz, sem que ninguém imagine, na velha tumba da Colina do Pirata! Ah, é uma
ótima, ótima zombaria!
“Eu me
pergunto como o velho Job Kiles descobriu estes caminhos subterrâneos. Ele não
os construiu. Eles foram entalhados em cavernas obscuras e rocha sólida, pelas
mãos de homens esquecidos – há quanto tempo, eu não ouso arriscar uma
conjectura. Enquanto estou aqui, aguardando a hora de estar pronto para agir,
eu me entretive explorando-os. Percebi que são bem mais amplos do que eu havia
suspeitado. As colinas devem estar conectadas com eles, e eles afundam na terra
até uma profundeza incrível, pavimento sob pavimento, como os andares de um
prédio, cada pavimento conectado com o inferior por uma única escada. O velho
Jacob Kiles deve ter usado estes túneis – pelo menos, os do pavimento superior
– para o depósito do saque e contrabando. Ele construiu a tumba para ocultar
suas verdadeiras atividades e, é claro, abriu a entrada secreta e pôs a porta
no eixo. Ele deve ter descoberto as tocas através da entrada oculta do Cabo do
Contrabandista. A velha porta que ele construíra aqui era uma mera massa de
lascas apodrecidas e metal enferrujado, quando a encontrei. Como ninguém a
descobriu depois dele, é provável que ninguém encontre a nova porta que
construí com minhas próprias mãos, para substituir a antiga. Mesmo assim,
tomarei as devidas precauções no tempo certo.
“Eu
tenho me perguntado bastante sobre a identidade da raça que deve um dia ter
habitado estes labirintos. Não encontrei ossos nem crânios, embora eu tenha
descoberto, no pavimento superior, instrumentos curiosamente endurecidos de
cobre. Nos poucos andares seguintes, achei utensílios de pedra, até o décimo
andar, onde eles desapareceram. E, também no andar superior, encontrei porções
de paredes decoradas com pinturas grandemente desbotadas, mas evidenciando
habilidade indubitável. Estas gravuras pintadas, eu encontrei em todos os
pavimentos, inclusive no quinto, embora as decorações de cada andar fossem mais
toscas que as do andar superior, até as últimas pinturas serem meras manchas
sem significado, como as que um macaco faria com um pincel. Além disso, os
instrumentos de pedra eram muito mais toscos nos níveis inferiores, assim como
o feitio dos tetos, escadas, portadas, etc. Tem-se uma fantástica impressão de
uma raça aprisionada, cavando cada vez mais fundo dentro da terra negra, século
após século, e perdendo cada vez mais de seus atributos humanos, à medida que
afundava a cada novo nível.
“O
décimo-quinto andar não tem rima nem razão; os túneis correm sem rumo e sem plano
aparente – assumindo um contraste com o pavimento mais alto, o qual é um
triunfo da arquitetura primitiva, de modo que é difícil acreditar que tenham
sido construídas pela mesma raça. Muitos séculos devem ter se passado entre a
construção das duas camadas, e os construtores devem ter se degradado muito.
Mas a décima-quinta camada não é o fim destas tocas misteriosas.
“A
abertura da portada na única escada da camada mais alta foi bloqueada por
pedras, que haviam caído do teto – provavelmente há centenas de anos, antes do
velho Capitão Jacob descobrir aqueles túneis. Levado pela curiosidade, tirei os
escombros, apesar daquilo exigir demais de minha força, e abri um buraco na
pilha hoje mesmo, embora eu não tivesse tempo de explorar o que havia embaixo.
Eu, de fato, duvido que pudesse fazê-lo, pois minha luz me mostrou, não a
sucessão usual de degraus de pedra, mas um poço íngreme e liso, levando à
negrura lá embaixo. Um macaco ou uma serpente pode subir e descer por ele, mas
não um ser humano. Para quais fossos ele guia, eu não me importo em sequer
tentar imaginar. Por alguma razão, a descoberta de que a décima-quinta camada
não era a do poço não-pisado me deu uma estranha sensação arrepiante, e me
levou a fantásticas conjecturas sobre o destino final da raça que outrora viveu
nestas colinas. Supus que os escavadores, afundando cada vez mais na escala da
vida, haviam se extinguido nas camadas mais baixas, embora eu não tenha achado
nenhum resto para justificar minhas teorias. As camadas mais baixas não ficam
em rocha quase sólida, como as que estão mais próximas da superfície. Elas
estão em terra negra e numa espécie de pedra bem mole, e foram aparentemente
cavadas com os utensílios mais primitivos; em alguns lugares, elas até parecem
ter sido cavadas com dedos e unhas. Poderiam ser tocas de animais, exceto pela
tentativa evidente de imitar os sistemas mais bem-organizados acima. Mas, sob a
décima-quinta camada, como pude ver, mesmo através de minhas investigações
superficiais desde acima, toda imitação para; as escavações sob a décima-quinta
camada são buracos loucos e brutos; e, para quais profundezas eles descem, não
tenho desejo de saber.
“Sou
perseguido por fantásticas especulações no tocante à identidade da raça, que
literalmente afundou na terra e desapareceu em suas profundezas negras há tanto
tempo. Uma lenda insistia, entre índios destes arredores, que, muitos séculos
antes da chegada dos homens brancos, seus ancestrais expulsaram uma estranha
raça estrangeira para dentro das cavernas das Colinas de Dagoth, e a trancou
ali para que morresse. Que não morreram, mas sobreviveram de alguma forma por,
pelo menos, muitos séculos, é evidente. Quem eram, de onde vieram e qual foi
seu destino final, nunca se saberá. Antropólogos podem catar alguma evidência
das pinturas na camada mais alta, mas não pretendo que ninguém venha saber
sobre essas tocas. Alguns destes desenhos obscuros retratam inconfundivelmente
índios em guerra com homens evidentemente da mesma raça que os artistas. Estes
modelos, eu me aventuraria a dizer, lembram mais o tipo caucasiano que o
indígena.
“Mas
está chegando a hora de minha visita ao meu amado irmão. Irei pela porta no
Cabo do Contrabandista, e retornarei pelo mesmo caminho. Alcançarei a tumba
antes do meu irmão, por mais rápido que ele venha – e eu sei que ele virá.
Então, quando o ato estiver feito, sairei da tumba, e nenhum homem colocará
novamente o pé nestes corredores. Pois me certificarei de que a tumba não será
aberta, e uma conveniente explosão de dinamite derrubará rochas suficientes dos
penhascos acima, para selar de forma eficaz a porta no Cabo do Contrabandista
para sempre”.
Conrad
pôs a agenda dentro do bolso.
–
Louco ou são – ele disse sombriamente –, Jonas Kiles é um verdadeiro demônio.
Não estou muito surpreso, mas estou levemente chocado. Que plano infernal! Mas
ele errou em uma coisa: ele aparentemente supunha que Job viria sozinho para o
túmulo. A prova de que ele não calculou o bastante.
–
Basicamente – respondi. – Mas, no que diz respeito a Job, Jonas teve sucesso em
seu plano diabólico: ele conseguiu matar o irmão, de alguma forma.
Evidentemente, ele estava na tumba quando Job entrou. Ele, de alguma forma, o
aterrorizou até a morte, e então, evidentemente percebendo nossa presença,
escapuliu pela porta secreta.
Conrad
sacudiu a cabeça. Um nervosismo crescente ficava evidente em suas maneiras, à
medida que ele continuava a leitura do diário. De vez em quando, ele parava e
erguia a cabeça em atitude de escuta.
–
O’Donnel, não acredito que foi Jonas a quem Job viu no caixão... mudei um tanto
de opinião. Uma perversa mente humana estava inicialmente por trás de tudo
isto, mas alguns aspectos deste assunto, eu não posso atribuir à humanidade.
“Aquele
grito que ouvimos no Cabo, a condição desta sala, a ausência de Jonas, tudo
indica algo ainda mais obscuro e sinistro que o plano de assassinato feito por
Jonas Kiles”.
– O
que você quer dizer? – perguntei inquieto.
–
Suponha que a raça que cavou estes túneis não morreu! – ele sussurrou. –
Suponha que seus descendentes ainda vivam, em algum estado de existência
anormal, nos fossos negros sob os andares dos corredores! Jonas menciona, em
seus apontamentos, que ele pensou ter ouvido sons furtivos, como o de coisas
rastejando desde abaixo!
– Mas
ele morou nestes túneis durante uma semana. – adverti.
– Você
esquece que o poço que leva aos fossos foi obstruído até hoje, quando ele
removeu as rochas. O’Donnel, eu creio que os fossos mais baixos são habitados,
que as criaturas acharam seu caminho até estes corredores, e que foi a visão de
uma delas, dormindo no caixão, que matou Job Kiles!
– Mas
isto é completa loucura! – exclamei.
– Mas
estes túneis já foram habitados em tempos passados e, de acordo com o que
lemos, os habitantes devem ter decaído a um nível incrivelmente baixo de vida.
Que prova temos de que seus descendentes não continuaram vivendo nos horríveis
buracos negros que Jonas viu sob o compartimento mais baixo? Ouça!
Ele
apagou a lanterna e ficamos na escuridão por alguns minutos. De algum lugar,
ouvi um fraco e deslizante barulho rastejante. Deslizamos furtivamente para
dentro do túnel.
– É
Jonas Kiles! – eu sussurrei, mas uma sensação gelada subiu e desceu por minha
espinha.
–
Então, ele estava se escondendo lá embaixo – murmurou Conrad. – Os sons vêm da
escada... como se algo rastejasse de baixo. Não ouso acender a lanterna... se
ele estiver armado, pode sacar sua arma.
Eu me
perguntava por que Conrad, que tinha nervos de ferro na presença de inimigos
humanos, estaria tremendo como uma folha. Eu me perguntava por que pingos
gelados de horror sem nome estariam percorrendo minha espinha. E logo eu estava
eletrizado. De algum lugar de trás do túnel, na direção pela qual havíamos
chegado, ouvi outro som suave e repelente.
E,
naquele instante, os dedos de Conrad afundaram como aço em meu braço. Na
escuridão tenebrosa sob nós, duas faíscas amarelas e oblíquas cintilaram
subitamente.
– Meu
Deus! – veio o sussurro chocado de Conrad. – Não é Jonas Kiles!
Enquanto
falávamos, outro par se juntou ao primeiro – subitamente, a escuridão bem
abaixo de nós estava viva com flutuantes brilhos amarelos, como estrelas
malignas refletidas num golfo anoitecido. Eles fluíam escada acima em nossa
direção, silenciosos exceto por aquele detestável som deslizante. Um nojento
cheiro terroso fluía até nossas narinas.
– Para
trás, em nome de Deus! – ofegou Conrad, e começamos a recuar da escada, em
direção ao túnel pelo qual tínhamos chegado. Então, veio subitamente a
investida de algum corpo pesado através do ar, e, girando, atirei cega e a
queima-roupa na escuridão. E meu grito, quando o tiro iluminou momentaneamente
as sombras, foi ecoado por Conrad. No instante seguinte, corríamos pelo túnel
como homens correndo do inferno, enquanto, atrás de nós, algo caía pesadamente,
se debatia e espojava no chão, em suas convulsões de morte.
– Acenda
sua lanterna – ofeguei. – Não podemos nos perder nestes labirintos infernais.
O raio
de luz apunhalou a escuridão à nossa frente, e nos mostrou o corredor externo,
onde havíamos visto pela primeira vez a seta. Lá, nós paramos por um instante,
e Conrad dirigiu sua luz de volta ao túnel. Só vimos a escuridão vazia, mas,
além daquele curto raio de luz, só Deus sabe que horrores rastejavam pela
escuridão.
- Meu
Deus! Meu Deus! – Conrad ofegou. – Você viu? Você viu?
– Não
sei! – ofeguei. – Vislumbrei algo semelhante a uma sombra voadora, no clarão do
tiro. Não era um homem... tinha a cabeça semelhante à de um cão...
– Eu
não estava olhando naquela direção – ele sussurrou. – Eu olhava escada abaixo,
quando o clarão de sua arma cortou a escuridão.
– O
que você viu? – minha pele estava úmida de suor frio.
–
Palavras humanas não são capazes de descrever! – ele gritou. – A terra negra
ganhou vida, como se houvesse vermes gigantes. A escuridão se aglomerando com
vida blasfema. Em nome de Deus, vamos sair daqui... por este corredor, até o
túmulo!
Mas,
quando demos um passo adiante, fomos paralisados por sons furtivos à nossa
frente.
– Os
corredores estão inçados deles! – sussurrou Conrad. – Rápido! Pelo outro
caminho! Este corredor segue a linha da colina e deve levar até a porta no Cabo
do Contrabandista.
Até o
dia da minha morte, eu me lembrarei daquela fuga através daquele negro corredor
silencioso, com o horror que se movia furtivamente aos nossos calcanhares. Por
um momento, achei que algum espectro com presas de demônio pularia sobre nossas
costas, ou sairia da escuridão à nossa frente. Então, Conrad, dirigindo sua luz
turva para a frente, deu um soluço ofegante de alívio.
– A
porta, finalmente. Meu Deus, o que é isto?
Quando
sua lanterna brilhara sobre uma pesada porta com tranca de ferro, com uma chave
pesada na fechadura maciça, ele havia tropeçado sobre algo que jazia caído ao
chão. Sua luz mostrava uma contorcida forma humana, sua destruída cabeça
jazendo numa poça de sangue. O rosto estava irreconhecível, mas conhecíamos a
forma magra, ainda vestida em roupas de túmulo. A verdadeira Morte havia
finalmente alcançado Jonas Kiles.
– O
grito quando passamos pelo Cabo esta noite! – sussurrou Conrad – Era seu
guincho de morte! Ele havia retornado aos túneis, após se mostrar para seu
irmão... e o horror caiu sobre ele na escuridão!
Súbito,
enquanto nos erguíamos sobre o corpo, ouvimos novamente aquele maldito e
deslizante ruído rastejante na escuridão. Enlouquecidos, saltamos até a porta;
giramos violentamente a chave e abrimos bruscamente a porta. Com um soluço de
alívio, cambaleamos até a noite enluarada. Por um instante, a porta se abriu
atrás de nós; logo, quando nos viramos para olhar, uma rajada feroz de vento a
fechou.
Mas,
antes que ela se fechasse, uma figura medonha saltou em nossa direção, meio
iluminada pelos esparsos raios de lua: o esparramado corpo mutilado e, sobre
ele, uma cinza monstruosidade bamboleante – um horror de olhos flamejantes e
cabeça de cão, tal como loucos veem em negros pesadelos. Logo, a porta que se
fechara sumiu de vista, e fugimos através da inclinação sob o luar móvel. Ouvi
Conrad balbuciar:
–
Crias dos fossos negros de loucura e noite eterna! Obscenidades rastejantes
fervilhando no lodo das profundezas inimagináveis da terra... o horror supremo
do retrocesso... o ponto mais baixo da degeneração humana... bom Deus, seus
ancestrais eram homens! Os fossos sob a décima-quinta camada, para dentro de
quais infernos de blasfemo horror negro eles afundam, e por quais hordas
demoníacas são povoados? Deus proteja os filhos dos homens daqueles... Aqueles que
moram sob as tumbas!
Ilustração: Greg Staples
Barão amigo,que contaço heim !
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