BOCATORTA - Conto Clássico de Terror - Monteiro Lobato
BOCATORTA
Monteiro
Lobato
(1882
- 19480
A
quarto de légua do arraial do Atoleiro começam as terras da fazenda de igual
nome, pertencente ao major Zé Lucas. A meio entre o povoado e o estirão das
matas virgens dormia de papo acima um famoso pântano. Pego de insidiosa argila
negra fraldejado de velhos guaiambés nodosos, a taboa esbelta cresce-lhe à
tona, viçosa na folhagem eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência,
longas varas soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor de telha
que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a batuíra
de longo bico, e saltita pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo se
ouriça nos espinheiros marginais. Fora disso, rãs, nimbuias pensativas e, a
rabear nas poças verdinhentas de algas, a traíra, esse voraz esqualozinho do
lodo. Um brejo, enfim, como cem outros.
Notabiliza-o,
porém, a profundidade. Ninguém ao vê-lo tão calmo sonha o abismo traidor oculto
sob a verdura.
Dois,
três bambus emendados que lhe tentem alcançar o fundo subvertem-se na lama sem
alçar pé.
Além
de vários animais sumidos nele, conta-se o caso do Simas, português teimoso
que, na birra de salvar um burro já atolado a meio, se viu engolido lentamente
pelo barro maldito. Desde aí ficou o atoleiro gravado na imaginativa popular
como uma das bocas do próprio inferno.
Transposto
o abismo, a vegetação encorpa, até formar a mata por cujo seio corre a estrada
mestra da fazenda.
Na
manhã daquele dia passara por ali o trole do fazendeiro, de volta da cidade.
Além do velho, de sua mulher Don'Ana e de Cristina a filha única, vinha a
passeio o bacharel Eduardo, primo longe e noivo da moça. Chegaram e agora
ouviam na varanda, da boca do Vargas, fiscal, a notícia do sucedido durante a
ausência. Já contara Vargas do café, da puxada dos milhos e estava na criação.
—
Porcos têm sumido alguns. Uma leitoa rabicó e um capadete malhado dos
"Polancham", há duas semanas que moita. Para mim — ninguém me tira da
cabeça — o ladrão foi o negro, inda mais que essa criação costumava se alongar
das bandas do brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do
maldelazento. Aquilo, Deus me perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não
"querem" me acreditar...
O
major sorriu àquele "querem". Vargas, com ojeriza velha ao mísero
Bocatorta, não perdia ensanchas de lhe atribuir malefícios e de estumar o
patrão a corrê-lo das terras que aquilo, Nossa Senhora! até enguiçava uma
fazenda...
Interessado,
o moço indagou da estranha criatura.
—
Bocatorta é a maior curiosidade da fazenda, respondeu o major. Filho duma
escrava de meu pai, nasceu, o mísero, disforme e horripilante como não há
memória de outro. Um monstro, de tão feio. Há anos que vive sozinho, escondido
no mato, donde raro sai e sempre de noite, O povo diz dele horrores — que come
crianças, que é bruxo, que tem parte com o demo. Todas as desgraças acontecidas
no arraial correm-lhe por conta. Para mim, é um pobre-diabo cujo crime único é
ser feio demais. Como perdeu a medida, está a pagar o crime que não cometeu...
Vargas
interveio, cuspilhando com cara de asco:
— Se o doutorzinho o visse!... É a coisa mais
nojenta deste mundo.
—
Feio como o Quasímodo? — Esse não conheço, seu doutor, mas estou aqui estou
jurando que o negro passa diante do... como é? Eduardo apaixonava-se pelo caso.
—
Mas, amigo Vargas, feio como? Por que feio? Explique-me lá essa feiura.
Grande
parola quando lhe davam trela, Vargas entreparou um bocado e disse: — O doutor
quer saber como é o negro? Venha cá.
Vossa
Senhoria agarre um judas de carvão e judie dele; cavoque o buraco dos olhos e afunde
dentro duas brasas alumiando; meta a faca nos beiços e saque fora os dois;
'ranque os dentes e só deixe um toco; entorte a boca de viés na cara; faça uma
coisa desconforme, Deus que me perdoe.
Depois,
como diz o outro, vá judiando, vá entortando as pernas e esparramando os pés.
Quando cansar, descanse.
Corra
o mundo campeando feiura braba e aplique o pior no estupor. Quando acabar
agarre no judas e ponha rente de Bocatorta. Sabe o que acontece? O judas fica
lindo!...
Eduardo
desferiu uma gargalhada.
—
Você exagera, Vargas. Nem o diabo é tão feio assim, criatura de Deus!
—
Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se acredita. Aquilo é feiura que só
vendo!
—
Nesse caso quero vê-la. Um horror desse naipe merece uma pernada.
Nesse
momento surgiu Cristina à porta, anunciando café na mesa.
—
Sabe? — disse-lhe o noivo. — Temos um belo passeio em perspectiva: desentocar
um gorila que, diz o Vargas, é o bicho mais feio do mundo.
—
Bocatorta? — exclamou Cristina com um reverbero de asco no rosto. — Não me
fale. Só o nome dessa criatura já me põe arrepios no corpo.
E
contou o que dele sabia.
Bocatorta
representara papel saliente em sua imaginação. Pequenita, amedrontavam-na as
mucamas com a cuca, e a cuca era o horrendo negro. Mais tarde, com ouvir às
crioulinhas todos os horrores correntes à conta dos seus bruxedos, ganhou
inexplicável pavor ao noctâmbulo. Houve tempo no colégio em que, noites e
noites a fio, o mesmo pesadelo a atropelou. Bocatorta a tentar beijá-la, e ela,
em transes, a fugir. Gritava por socorro, mas a voz lhe morria na garganta.
Despertava arquejante, lavada em suores frios.
Curou-a
o tempo, mas a obsessão vincara fundos vestígios em sua alma.
Eduardo,
não obstante, insistia.
—
É o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru da realidade para
desmanchar exageros de imaginação.
Vamos
todos, em farrancho — e asseguro-te que a piedade te fará ver no espantalho, em
vez dum monstro, um simples desgraçado digno do teu dó.
Cristina
consultou-se por uns momentos e: — Pode ser — disse. — Talvez vá. Mas não
prometo! Na hora verei se tenho coragem...
A
maturação do espírito em Cristina desbotara a vivacidade nevrótica dos terrores
infantis. Inda assim vacilava.
Renascia
o medo antigo, como renasce a encarquilhada rosa de Jericó ao contato de uma
gota d'água. Mas vexada de aparecer aos olhos do noivo tão infantilmente
medrosa, deliberou que iria; desde esse instante, porém, uma imperceptível
sombra anuviou-lhe o rosto.
Ao
jantar foram o assunto as novidades do arraial — eternas novidades de aldeias,
o Fulano que morreu, a Sicrana que casou. Casara um boticário e morrera uma
menina de quatorze anos, muito chegada à gente do major. Particularmente
condoída, Don'Ana não a tirava da ideia.
—
Pobre da Luisinha! Não me sai dos olhos o jeito dela, tão galante, quando vinha
aqui pelo tempo das jabuticabas.
Ali,
naquela porta — "Dá licença, Don'Ana!" — tão cheia de vida,
vermelhinha do sol... Quem diria...
—
E ainda por cima a tal história de cemitério... interveio Cristina. Papai
soube? Corriam no arraial rumores macabros. No dia seguinte ao enterramento o
coveiro topou a sepultura remexida, como se fora violada durante a noite; e viu
na terra fresca pegadas misteriosas de uma "coisa" que não seria
bicho nem gente deste mundo. Já duma feita sucedera caso idêntico por ocasião
da morte da Sinhazinha Esteves; mas todos duvidaram da integridade dos miolos
do pobre coveiro sarapantado. Esses incréus não mofavam agora do visionário,
porque o padre e outras pessoas de boa cabeça, chamadas a testemunhar o fato,
confirmavam-no.
Imbuído
do ceticismo fácil dos moços da cidade, Eduardo meteu a riso a coisa muita
fortidão de espírito.
—
A gente da roça duma folha de imbaúba pendurada no barranco faz logo, pelo
menos, um lobisomem e três mulas-sem-cabeça. Esse caso do cemitério: um cão
vagabundo entrou lá e arranhou a terra. Aí está todo o grande mistério!
Cristina
objetou:
— E os rastos?
— Os rastos! Estou a apostar como tais rastos
são os do próprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do
casco...
—
E o padre Lisandro? — acudiu Don'Ana, para quem um testemunho tonsurado era
documento de muito peso.
Eduardo
cascalhou uma risada anticlerical e, trincando um rabanete, expectorou:
— Ora, o padre Lisandro! Pelo amor de Deus,
Don'Ana! O padre Lisandro é o próprio coveiro de batina e coroa! A propósito...
E
contou a propósito vários casos daquele tipo, os quais no correr do tempo
vieram a explicar-se naturalmente, com grande cara d'asno dos coveiros e
lisandros respectivos.
Cristina
ouviu, com o espírito absorto em cismas, a bela demonstração geométrica.
Don'Ana concordou da boca para fora, por delicadeza. Mas o major, esse não piou
sim nem não. A experiência da vida ensinara-lhe a não afirmar com despotismo,
nem negar com "oras — Há muita coisa estranha neste mundo... — disse,
traduzindo involuntariamente a safada réplica de Hamlet ao cabeça forte do
Horácio.
Zangara
o tempo quando à tarde o rancho se pôs de rumo ao casebre de Bocatorta.
Ventava.
Rebojos de nuvens prenhes sorviam as últimas nesgas do azul.
Os
noivos breve se distanciaram dos velhos que, a passos tardos, seguiam
comentando a boa composição do futuro casal. Não havia nisso exagero de pais.
Eduardo, embora vulgar, tinha a esbelteza necessária para ouvir sem favor o
encômio de rapagão, e Cristina era um ramalhete completo das graças que os
dezoito anos sabem compor.
Donaire,
elegância, distinção... pintam lá vocábulos esbeiçados pelo uso esse punhado de
quês particularíssimos cuja soma a palavra "linda" totaliza? Lábios
de pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a
noite, dentes de pérola... as velhas tintas de uso em retratos femininos desde
a Sulamita não pintam melhor que o "linda!" dito sem mais enfeites
além do ponto de admiração.
Vê-la
mordiscando o hastil duma flor de catingueiro colhida à beira do caminho, ora
risonha, ora séria, a cor das faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a
brincarem-lhe nas têmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de
junho, era compreender a expressão dos roceiros: Linda que nem uma santa.
Olhos,
sobretudo, tinha-os Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém, as sombras
de sua alma coavam neles penumbras de estranha melancolia. Melancolia e
inquietação. O amoroso enlevo de Eduardo esfriava amiúde ante suas repentinas
fugas. Ele a percebia distante, ou pelo menos introspectiva em excesso,
reticência que o amor não vê de boa cara. E à medida que caminhavam recrescia
aquela esquisitice. Um como intáctil morcego diabólico riscava-lhe a alma de
voejos pressagos. Nem o estimulante das brisas ásperas, nem a ternura do noivo,
nem o "cheiro de natureza" exsolvido da terra, eram de molde a
esgarçar a misteriosa bruma de lá dentro.
Eduardo
interpelou-a:
—
Que tens hoje, Cristina? Tão sombria...
E
ela, num sorriso triste:
— Nada!.. Por quê? Nada... É sempre nada
quando o que quer que é lucila avisos informes na escuridão do subconsciente,
como sutilíssimos ziguezagues de sismógrafo em prenúncio de remota comoção
telúrica. Mas esses nadas são tudo!...
—
À esquerda, pelo trilho! A voz do major chamou-os à realidade. Um carreiro mal
batido na macega esgueirava-se coleante até a beira dum córrego, onde se
reuniram de novo.
O
major tomou a frente, e guiou-os floresta adentro pelos meandros duma picada.
Era ali o mato sinistro onde se alapavam Bocatorta e o seu cachorro lazarento,
Merimbico, nome tresandante a satanismo para o faro do poviléu.
Às
sextas-feiras, na voz corrente do arraial, Merimbico virava lobisomem e se
punha de ronda ao cemitério, com lamentosos uivos à lua e abocamentos às pobres
almas penadas — coisa muito de arrepiar.
O
sombrio da mata enoiteceu de vez o coração de Cristina.
—
Mas, afinal, para onde vamos, meu pai? Afundar no atoleiro, como o Simas? Meu
pai já fez o testamento?
— Já, minha filha — chasqueou o major —, e
deixo o Bocatorta para você...
Cristina
emudeceu. Retransia-a em doses crescentes o velho medo de outrora, e foi com um
estremecimento arrepiado que ouviu o ladrido próximo de um cão.
—
É Merimbico — disse o velho. — Estamos quase.
Mais
cem passos e a mata rasgou-se em clareira, na qual Cristina entreviu a biboca
do negro. Fez-se toda pequenina e achegou-se a Don'Ana, apertando-lhe
nervosamente as mãos.
—
Bobinha! Tudo isso é medo?
— Pior que medo, mamãe; é... não-sei-quê!
Não
tinha feição de moradia humana a alfurja do monstro. À laia de paredes,
paus-a-pique mal juntos, entressachados de ramadas secas. Por cobertura,
presos, com pedras chatas, molhos de sapé no fio, defumado e podre. Em redor,
um terreirinho atravancado de latas ferrugentas, trapos e cacaria velha. A
entrada era um buraco por onde mal passaria um homem agachado.
—
Olá, caramujo! Sai da toca que estão cá o sinhô moço e mais visitas! — gritou o
major.
Respondeu
de dentro um grunhido cavo. Ao ouvir tão desagradável som, Cristina sentiu
correr na pele o arrepio dos pesadelos antigos, e num incoercível movimento de
pavor abraçou-se com a mãe.
O
negro saiu da cova meio de rastos, com a lentidão de monstruosa lesma. A
princípio surgiu uma gaforinha arruçada, depois o tronco e os braços e a
traparia imunda que lhe escondia o resto do corpo, entremostrando nos rasgões o
negror da pele craquenta.
Cristina
escondeu o rosto no ombro de Don'Ana — não queria, não podia ver.
Bocatorta
excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando,
sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas
largas, violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas,
mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num
esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se
lhe estampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a
culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas
cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé
humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de
sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada de escaras cinzentas.
Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a teratologia
caprichasse em criar a sua obra-prima.
À
porta do casebre, Merimbico, cachorro à-toa, todo ossos, pele e bernes, rosnava
contra os importunos.
Don'Ana
e a filha afastaram-se, engulhadas. Só os homens resistiram à nauseante vista,
embora a Eduardo o tolhesse uma emoção jamais experimentada, misto de asco,
piedade e horror. Aquele quadro de suprema repulsão, novo para seus nervos,
desnorteava-lhe as ideias. Estarrecido como em face da Górgona, não lhe vinha
palavra que dissesse.
O
major, entretanto, trocava língua com o monstro, que em certo ponto, a uma
pergunta alegre do velho, arregaçou na cara um riso. Eduardo não teve mão de
si. Aquele riso naquela cara sobre-excedia a sua capacidade de horripilação.
Voltou o rosto e se foi para onde as mulheres, murmurando:
—
É demais! É de fazer mal a nervos de aço...
Seus
olhos encontraram os de Cristina e neles viram a expressão de pavor da preá
engrifada nas puas da suindara — o pavor da morte...
Quando
deixaram a floresta, morria a tarde sob o chicote dum vento precursor de chuva.
—
Foi imprudência, Cristina, vires sem um xalinho de cabeça ao menos!... Queira
Deus...
A
moça não respondeu. D'olhos baixos, retransida, respirava a largos haustos,
para desafogo dum aperto de coração nunca sentido fora dos pesadelos.
Generalizara-se
o silêncio. Só o major tentava espanejar a impressão penosa, chasqueando ora o
terror da filha, ora o asco do moço; mas breve calou-se, ganho também pelo
mal-estar geral.
Triste
anoitecer o daquele dia, picado a espaços pelo surdo revoo dos curiangos. O
vento zunia, e numa lufada mais forte trouxe da mata o uivo plangente de
Merimbico.
Ao
ouvi-lo, um comentário apenas escapou da boca do major:
— Diabo!
Fechara-se
a noite e vinham as primeiras gotas de chuva quando pisaram no alpendre do
casarão.
Cristina
sentiu pelo corpo inteiro um calafrio, como se a sacudisse a corrente elétrica.
No
dia seguinte amanheceu febril, com ardores no peito e tremuras amiudadas. Tinha
as faces vermelhas e a respiração opressa.
O
rebuliço foi grande na casa.
Eduardo,
mordido de remorsos, compulsava com mão nervosa um velho Chernoviz, tentando
atinar com a doença de Cristina; mas perdia-se sem bússola no báratro das
moléstias. Nesse em meio, Don'Ana esgotava o arsenal da medicina anódina dos
símplices caseiros.
O
mal, entretanto, recalcitrava às chasadas e sudoríferos. Chamou-se o boticário
da vila. Veio a galope o Eusébio Macário e diagnosticou pneumonia.
Quem
já não assistiu a uma dessas subitâneas desgraças que de golpe se abatem, qual
negro avejão de presa, sobre uma família feliz, e estraçoam tudo quanto nela
representa a alegria, e esperança, o futuro? Noites em claro, o rumor dos
passos abafados... E o doente a piorar... O médico da casa apreensivo, cheio de
vincos na testa... Dias e dias de duelo mudo contra a moléstia incoercível... A
desesperança, afinal, o irremediável antolhado iminente; a morte pressentida de
ronda ao quarto...
Ao
oitavo dia Cristina foi desenganada; no décimo o sino do arraial anunciou o seu
prematuro fim.
—
Morta!...
Eduardo
escondia as lágrimas entre as almofadas do leito, repetindo cem vezes a mesma
palavra.
Alcançava-lhe
o significado tremendo e, no entanto, quantas vezes a ouvira como a um som oco
de sentido! A imagem de Cristina morta, a esfervilhar na dissolução dentro da
terra gelada, contrapunha-se às visões da Cristina viva, toda mimos d'alma e
corpo, radiosa manhã humana de cuja luz toda se impregnara sua alma. Cerrando
os olhos, revia-se durante o passeio fatal, envolta nas brumas de vagos
pressentimentos. Vinham-lhe à memória as suas palavras dúbias, a sua vacilação.
E arrepelava-se por não ter adivinhado na repulsa da moça os avisos informes de
qualquer coisa secreta que tenazmente a defendia. Tais pensamentos, enxameantes
como moscas em torno à carne viva da dor de Eduardo, coavam nele venenos
cruéis.
Fora,
o sol redoirava cruamente a vida.
Brutalidade!...
Morria
Cristina e não se desdobravam crepes pelo céu, nem murchavam as folhas das
árvores, nem se recobria de cinzas a terra...
Espezinhado
pela fria indiferença das coisas, fechou-se na clausura de si próprio, torvo e
dolorido, sentindo-se amarfanhar pela pata cega do destino.
Correram
horas. Noite alta, acudiu-lhe a ideia de ir ao cemiterinho beijar num último
adeus o túmulo da noiva.
Por
sobre a vegetação adormecida coava-se o palor cinéreo da minguante. Raras
estrelas no céu, e na terra nenhum rumorejo além do remoto uivar de um cão —
Merimbico talvez — a escandir o concerto das untanhas que coaxavam glu-glus nas
aguadas.
Eduardo
alcançou o cemitério. Estava encadeado o portão. Apoiou a testa nos frios
varões ferrugentos e mergulhou os olhos queimados de lágrimas por entre os
carneiros humildes, em busca do que recebera Cristina.
No
ar, um silêncio de eternidade.
Brisas
intermitentes carreavam o olor acre dos cravos-de-defunto floridos na tristeza
daquele cemitério da roça.
Seu
olhar pervagava de cruz em cruz na tentativa de atinar com o sítio onde
Cristina dormia o grande sono, quando um rumor suspeito lhe feriu os ouvidos.
Direis um arranhar de chão em raspões cautelosos, ao qual se casava o resfôlego
duma criatura viva.
Pulsou-lhe
violento o sangue. Os cabelos cresceram-lhe na cabeça. Alucinação? Apurou os
ouvidos: o rumor estranho lá continuava, vindo de um ponto sombreado de
ciprestes. Firmou a vista: qualquer coisa agachava-se na terra.
Súbito,
num relâmpago, fulgurou em sua memória a cena do jantar, o caso de Luisinha, as
palavras de Cristina.
Eduardo
sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos e, ganho dum pânico desvairado, deitou a
correr como um louco rumo à fazenda, em cujo casarão penetrou de pancada, sem
fôlego, lavado em suor frio, despertando de sobressalto a família.
Com
gritos de espanto, que o cansaço e o bater dos dentes entrecortavam, exclamou
entre arquejos: — Estão desenterrando Cristina... Eu vi uma coisa desenterrando
Cristina...
—
Que loucura é essa, moço? — Eu vi... — continuava Eduardo com os olhos
desmesuradamente abertos. — Eu vi uma coisa desenterrando Cristina...
O
major apertou entre as mãos a testa. Esteve assim imóvel uns instantes. Depois
sacudiu a cabeça num gesto de decisão e, horrivelmente calmo, murmurou entre
dentes, como em resposta a si próprio:
—
Será possível, meu Deus? Vestiu-se de golpe, meteu no bolso o revólver e
atirando três palavras enigmáticas à estarrecida Don'Ana, gritou para Eduardo
com inflexão de aço na voz: — Vamos! Magnetizado pela energia do velho, o moço
acompanhou-o qual sonâmbulo.
No
terreiro apareceu-lhes o capataz.
—
Venha conosco. A "coisa" está no cemitério.
Vargas
passou mão de uma foice.
—
Vai ver que é ele, patrão, até juro! O major não respondeu — e os três homens
partiram a correr pelos campos em fora.
A
meio caminho, Eduardo, exausto de tantas emoções, atrasou-se. Seus músculos
recusaram-lhe obediência. Ao defrontar com o atoleiro, as pernas lhe fraquearam
de vez e ele caiu, ofegante.
Entrementes,
o major e o feitor alcançavam o cemitério, galgavam o muro e aproximavam-se
como gatos do túmulo de Cristina.
Um
quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco jazia fora do túmulo
— abraçado por um vulto vivo, negro e coleante como o polvo.
O
pai de Cristina desferiu um rugido de fera, e qual fera mal ferida arrojou-se
para cima do monstro. A hiena, mau grado a surpresa, escapou ao bote e fugiu.
E, coxeando, cambaio, seminu, de tropeços nas cruzes, a galgar túmulos com
agilidade inconcebível em semelhante criatura, Bocatorta saltou o muro e fugiu,
seguido de perto pela sombra esganiçante de Merimbico.
Eduardo,
que concentrara todas as forças para seguir de longe o desfecho do drama, viu
passar rente de si o vulto asqueroso do necrófilo, para em seguida desaparecer
mergulhando na massa escura dos guaiambés.
Voando-lhe
no encalço, viu passar em seguida o vulto dos perseguidores.
Houve
uma pausa, em que só lhe feriu o ouvido o rumor da correria. Depois, gritos de
cólera, de envolta a um grunhir de queixada caído em mundéu — e tudo se
misturou ao barulho da luta que o uivo de Merimbico dominava lugubremente.
O
moço correu a mão pela testa gelada: estaria nas unhas dum pesadelo? Não; não
era sonho. Disse-lho a voz alterada do feitor, esboçando o epílogo da tragédia:
—
Não atire, major, ele não merece bala. Pra que serve o atoleiro? E logo após
Eduardo sentiu recrudescer a luta, entre imprecações de cólera e os grunhidos
cada vez mais lamentosos do monstro. E ouviu farfalhar o mato, como se por ele
arrastassem um corpo manietado, a debater-se em convulsões violentas. E ouviu
um rugido cavo de supremo desespero. E após, o baque fofo de um fardo que se
atufa na lama.
Uma
vertigem escureceu-lhe a vista; seus ouvidos cessaram de ouvir; seu pensamento
adormeceu...
Quando
voltou a si, dois homens borrifavam-lhe o rosto com água gelada. Encarou-os,
marasmado. Ergueu-se, mal firme, apoiado a um deles. E reconheceu a voz do
major, que entre arquejos de cansaço lhe dizia:
—
Seja homem, moço. Cristina já está enterrada, e o negro...
—
... está beijando o barro, concluiu sinistramente o Vargas.
Ao
raiar do dia, Merimbico ainda lá estava, sentado nas patas traseiras, a uivar
saudosamente com os olhos postos no sítio onde sumira o seu companheiro.
Nada
mais lembrava a tragédia noturna nem denunciava o túmulo de lodo açaimador da
boca hedionda que babujara nos lábios de Cristina o beijo único de sua vida.
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