O HORRÍVEL - Conto Clássico de Horror - Guy de Maupassant
O HORRÍVEL
Guy de Maupassant
(1850 – 1893)
A noite tépida descia
lentamente.
As senhoras tinham ficado
no salão da quinta. Os homens, sentados ou a cavalo nas cadeiras do jardim,
fumavam diante da mesa abandonada, carregada de taças e cálices.
Seus charutos brilhavam
como olhos na sombra espessa, de minuto em minuto.
Acabavam de narrar um
terrível acidente acontecido na véspera: dois homens e três mulheres afogados à
vista dos convidados em frente ao rio.
O General G...
pronunciou-se:
— Sim, estas coisas são emocionantes, mas não
são horríveis.
“O horrível — esta velha
palavra — quer dizer muitíssimo mais que terrível. Um medonho acidente como este emociona. Para que se experimente o horror, é preciso
mais que a emoção da alma e mais que o espetáculo de uma morte terrível. É preciso um calafrio de mistério ou uma
sensação de pavor anormal, sobrenatural. Um homem que morre, mesmo nas
condições mais dramáticas, não causa horror. Um campo de batalha não é horrível. Os crimes, os mais vis, raramente são
horríveis.
Eis dois exemplos
pessoais que me fizeram compreender o que se pode entender pelo horror.
O primeiro foi durante a
guerra de 1870[1].
Nós nos retiramos para
Pont-Audemer, depois de termos atravessado Rouen. O exército — vinte mil homens
aproximadamente, vinte mil homens derrotados, debandados, desmoralizados,
esgotados — ia reagrupar-se no Havre.
A terra estava coberta de
neve.
A noite caía. Dede a
véspera que não se comia. Fugia-se, porque os prussianos não estavam longe.
Toda a planície normanda,
lívida, manchada pela sombra das árvores em volta das herdades, se estendia sob
um céu negro, rude e sinistro.
Não se ouvia mais nada,
na luz eterna do crepúsculo, além de um ruído confuso, brando e descompassado
de tropas em marcha, de um bater de pés infinito, misturado de um vago tinido
de equipamentos e de sabres. Os homens, curvados, arqueados, sujos, muitas
vezes mesmo esfarrapados, arrastavam-se, apressavam-se sobre a neve com longo
passo extenuado.
A pele das mãos colava ao
aço das culatras, porque gelava terrivelmente nessa noite. Muitas vezes, eu via soldado tirar os sapatos
para andar com os pés nus, de tanto que sofria com o calçado, e deixava em cada
passada um traço de sangue.
Depois, no fim de algum
tempo, sentava-se num campo para descansar alguns minutos, e não se levantava
mais. Cada homem que sentava era um homem morto.
Tínhamos deixado atrás de
nós muitos desses pobres soldados estropiados, que contavam tornar a partir
imediatamente, desde que tivessem descansado um pouco as suas pernas
inteiriçadas. Mas, mal cessavam de se
mover, de fazer circular em sua carne cansada o sangue quase inerte, um
entorpecimento invencível apoderava-se deles, pregava-os à terra, fechava-lhes
os olhos, paralisava em segundos esta mecânica humana estafada. E eles se abatiam um pouco, com as testas
apoiadas nos joelhos, sem, contudo, cair
de todo, porque seus rins e seus membros tornavam-se imóveis, duros como um
pau, impossíveis de dobrar ou de endireitar.
E nós outros, mais
robustos, íamos sempre, gelados até a medula, avançando por uma força de
movimento dado nessa noite, nessa neve, nessa planície fria e mortal, esmagados
pelo pesar, pela derrota, pelo desespero, sobretudo oprimidos pela abominável
sensação do abandono, do fim, da morte, do nada.
Percebi dois gendarmes[2]
que seguravam pelo braço um homenzinho singular, velho, sem barba, de aspecto
verdadeiramente surpreendente.
Procuravam um oficial,
porque acreditavam ter prendido um espião.
A palavra espião correu logo entre os estropiados
e estes fizeram um círculo em volta do prisioneiro. Uma voz gritou:
— É preciso fuzilá-lo!
E todos esses soldados,
que caíam de cansaço, que se conservavam de pé apoiados nas suas espingardas,
tiveram subitamente esse arrepio de cólera furiosa e bestial, que impele as
multidões ao massacre.
Eu quis falar. Era então o comandante do batalhão. Mas não
se conheciam mais chefes. Teriam fuzilado a mim mesmo.
Um dos policiais disse:
— Há três dias que ele
nos segue, pedindo a todo mundo informações sobre a artilharia.
Eu procurei interrogar
este ser:
— Que andas fazendo? O que
queres? Para que acompanhas o exército?
Ele balbuciou algumas
palavras numa linguagem ininteligível.
Era deveras um estranho
personagem, de espáduas estreitas, de olhar sonso, e tão perturbado diante de
mim que não me restava mais dúvida alguma de que era mesmo um espião. Ele me considerava de cima a baixo, com um ar
humilde, estúpido e manhoso.
Os homens à nossa volta
gritavam:
— Ao paredão! Ao paredão!
Eu disse aos gendarmes:
— Respondeis pelo prisioneiro?
Não tinha acabado de
falar quando um empurrão terrível me deitou por terra, e eu vi, por um segundo,
o homem tomado pelos soldados furiosos, derrubado, ferido, arrastado à beira da
estrada e lançado contra uma árvore, já quase morto, sobre a neve.
E logo fuzilaram-no.
Os soldados atiravam
nele. Tornavam a carregar as armas e atiravam de novo, com um furor brutal.
Batiam-se para ter a sua
vez. Desfilavam diante do cadáver e disparavam repetidas vezes, como se
desfilassem diante de um féretro para lançar água benta.
Mas, de repente, um grito
soou:
— Os prussianos! Os prussianos!
E eu ouvi, por todo o
horizonte, o rumor imenso do imenso exército perdido que corria.
O pânico, nascido desses
tiros sobre esse vagabundo, havia enlouquecido os próprios executores que, sem
compreender que o pavor vinha deles mesmos, fugiram e desapareceram na sombra.
Eu fiquei só, diante do
corpo com os dois gendarmes que, retidos pelo dever, haviam permanecido perto
de mim.
Eles levantaram aquela
carne moída, mole e sangrenta.
— É
preciso revistá-lo — disse-lhes.
E dei
uma caixa de fósforo de cera que tinha em meu bolso. Um dos soldados iluminava o outro. Eu estava
em pé entre os dois.
O
gendarme que revistava o corpo declarou:
—
Vestido com uma blusa azul, camisa branca, calças e um par de sapatos.
O
primeiro fósforo apagou-se. Acendeu-se
outro. O homem continuou, remexendo os bolsos:
— Uma
faca de chifre, um lenço xadrez, uma caixa de rapé, um punhado de barbante, um
pedaço de pão.
O
segundo fósforo apagou-se. Acendeu-se o
terceiro. O gendarme, depois de ter por
muito tempo apalpado o cadáver, exclamou:
— É
tudo.
Eu
disse:
— Vamos
despi-lo. Acharemos talvez alguma coisa
contra a pele.
E, para
que os dois soldados pudessem agir ao mesmo tempo, eu mesmo me pus a
iluminá-los. Eu os via, ao clarão rápido
do fósforo, tirar a roupa, peça por peça, pôr a nu este fardo de carne ainda
quente e morta.
De
súbito, um deles exclamou:
— Ah,
meu comandante, é uma mulher!
Eu não
vos poderia dizer que estranha e pungente sensação de agonia me oprimiu o
coração. Não podia acreditar naquilo, e ajoelhei-me sobre a neve, diante dessa
massa informe para ver: era mesmo uma mulher!
Os dois
gendarmes, interditos e desmoralizados, esperavam que eu emitisse uma opinião.
Mas eu
não sabia o que pensar, o que supor.
Então, o
brigadeiro pronunciou-se lentamente:
— Talvez
ela viesse procurar seu filho, que era soldado de artilharia, e de quem não
tinha notícias.
E o
outro respondeu:
— Talvez
fosse isto mesmo...
Eu, que
já tinha visto coisas bem terríveis, comecei a chorar. E senti, em face dessa morta, nessa noite
gelada, no meio dessa planície negra, diante desse mistério, diante dessa
desconhecida, assassinada, o que quer dizer a palavra horror.
Eu tive esta mesma sensação no ano passado interrogando
um fuzileiro argelino, que era um dos sobreviventes da missão Flatters.
Vós conheceis os detalhes desse drama atroz. Mas há
um que, decerto, ignoreis.
O coronel ia ao Sudão pelo deserto e cruzava o
imenso território dos tuaregues, que são, nesse oceano de areia, que vai do
Atlântico ao Egito, e do Sudão à Argélia, uma espécie de piratas comparáveis
aos que antigamente assolavam os mares.
Os guias que conduziam a coluna pertenciam à tribo
dos Chambaa, de Ouargla.
Um dia, montaram o acampamento em pleno deserto, e
os árabes declararam que, como a fonte ainda estava um tanto distante, iriam
recolher a água com todos os camelos.
Apenas um homem preveniu o coronel de que era uma
armadilha. Flatters não acreditou, e
acompanhou a caravana com os engenheiros, os médicos e quase todos os seus
oficiais.
Eles foram assassinados junto à fonte e todos os
camelos capturados.
O capitão do posto árabe de Ouargla, que ficara no
acampamento, assumiu o comando dos sobreviventes, spahis e fuzileiros, e iniciaram a retirada, abandonando as
bagagens e os víveres, por falta de camelos para transportá-los.
Então, eles partiram naquela solidão sem sombras e
sem fim, sob um sol devorador, que os abrasava de manhã à noite.
Uma tribo veio render-se, trazendo tâmaras. Estavam
envenenadas. Quase todos os franceses morreram e, entre eles, o último oficial.
Só ficaram alguns spahis, com seu comandante Pebóguim, e mais alguns fuzileiros
nativos da tribo Chambaa. Tinham ainda
dois camelos, que desapareceram uma noite com os árabes.
Em seguida, os sobreviventes compreenderam que
teriam de devorar-se uns aos outros e, logo que descobriram a fuga de dois
homens com os dois animais, os que ficaram se separam e começaram a andar, cada
um de per si, na areia macia, sob a cruel chama do sol. Conservavam entre si
uma distância maior que a de um tiro de fuzil.
Andaram, assim, o dia todo, levantando, em cada
lugar, na extensão abrasada e plana, essas colunas de poeira que denunciam, ao
longe, quem caminha pelo deserto.
Mas, numa manhã, um dos viajantes se desviou
bruscamente, aproximando-se de seu companheiro.
E todos pararam para olhar.
O homem na direção de quem marchava o soldado
faminto não fugiu. Caiu ao chão e
apontou a arma para o que se aproximava.
Quando viu que o outro estava a uma boa distância, atirou. Mas não o
atingiu. Este continuou avançando e, depois, assumindo a sua vez, matou o seu
camarada.
Então, de todo o horizonte, acorreram os demais,
para garantir a sua parte. E o que havia matado, esquartejando o morto, distribuiu
as postas.
E se separaram novamente aqueles aliados
irreconhecíveis, até que o próximo assassinato os unisse novamente.
Durante dois dias eles viveram daquela carne humana
compartilhada. Em seguida, voltou a fome, e o primeiro a matar matou outra vez.
E, novamente, como um açougueiro, trinchou o cadáver e o ofereceu aos
companheiros, mantendo apenas a sua parte.
E assim continuou a retirada de antropófagos.
O último francês, Pobéguim, morreu
assassinado nas margens de um poço, na véspera do dia em que chegou o
socorro. Vós compreendeis agora o que é
o que eu entendo por horrível?”
Eis o
que nos contou, naquela noite, o general G...
Conto originariamente publicado, em sua primeira parte, sem
indicação do tradutor, no “Diário da Tarde”, de Curitiba/PR, nos dias 6 e 7 de
dezembro de 1904. A versão em português da segunda parte é de autoria de Paulo Soriano.
[1] Maupassant refere-se à guerra
franco-prussiana, conflito bélico entre o Império Francês e o Reino da Prússia,
que se estendeu entre julho de 1870 e maio de 1871.
Maravilhosa história!! Site ótimo, sempre com contos esquecidos pelas editoras!! Parabéns!
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