O VELHO DA PENA PATELA - Conto de Terror - Adela Figueroa Panisse
O
VELHO DA PENA PATELA
Adela
Figueroa Panisse
"Com que vamos construir os nossos
lares?” O rapaz levantou a vista do chão, olhou para
frente e viu-o. Lá ele estava com a vista, de olhos vácuos, dirigida para o
infinito. O seu ar solene impressionava-o sempre: Sentado na pedra branca que
eles chamavam a “Pena Patela” apoiava-se levemente na bengala – comprida – que,
fincada no chão, apontava para ao céu. Uma perna dobrada e a outra estendida
sobre a pedra. A mão direita pegando no bordão e a esquerda pousada no joelho.
Parecia confundir-se com a paisagem até formar parte dela. De perfil enxuto,
queixo proeminente, barba branca e cabelo longo, semelhava um velho druida,
como aqueles que o pai lhe tinha ensinado num livro antigo. Ou como aqueles dos
que ouvira falar quando ia, pelo verão, à Irlanda à casa dos primos.
O
lugar em que se encontrava o ancião era um pequeno outeiro que dominava a parte
alta do vale do Minho. A Pena Patela era a atalaia preferida do Gaibor.
A
vista podia alargar-se até alcançar as suaves montanhas sagradas das Penas de
Rodas quando o tempo era bom e o ar estava limpo como naquela tarde de outono.
Lá embaixo o Minho perdia-se nos poços do Piago e acalmava as suas presas entre
as ilhas, nos remansos de Marcelhe.
Nos
dias úmidos de inverno, depois de chover, ia até a Pena com os seus amigos e
deixavam-se escorregar pela superfície da pedra como se esta fosse um tobogã
natural, até chegarem ao caminho que a rodeava vindo da beira do rio.
O
Gaibor acercou-se ao Velho com precaução. Sentia um misto de medo e de atração
fatal por ele.
Ia-o
cumprimentar, já quase começara a dizer: “As boas tardes, Sr. Olegar”, mas
interrompeu-o um murmúrio que saía da boca do Homem.
"Caminhando,
caminhando, caminhando
Vê-la-ai-vai
a Santa Companha
A
levar pelo Mundo a terrível
Espécie
da ‘palavra’.”
O
Rapaz ficou paralisado, não se atrevendo a mexer nem para adiante nem para
trás. Não teve medo porque sabia – tinha-lho contado a Sr. a Rosália que era a
vizinha de mais acima de sua casa – que
a Companha não podia aparecer de dia.
O
sol estava ainda alto, não se iria deitar por uma ou duas horas. De maneira que
reagiu rapidamente e retomou o cumprimento que tinha iniciado:
–
Boas tardes, Sr. Olegar, que é o que está a ver?
–
Olá, Gaibor. Sabes bem que eu não vejo as coisas reais. Apenas é que poso
enxergar as coisas espirituais.
–
Mas, então, que é o que está a cantar? Eu fiquei assustado quando lhe ouvi
recitar aquele canto triste.
–
E fazes bem em tê-lo. Todas as pessoas deveriam temer a Santa Procissão das
Almas. Sabes o que é a Santa “Companha”?
–
A Rosália tem-me contado algo, mais não sei muito bem.
–
A Santa “Companha” é uma procissão que anda pela terra. Nomeadamente nas noites
escuras. Não gostam tanto do luar. E voltou cantar com a sua rouca voz a
cantiga monocórdia:
“Destemido
exército errante
A
dançar pela Terra em redondeza,
–
A Música na cabeça –
Uma
dança macabra e emigrante.
Com
destino a nenhures
Alcança
chegar a toda parte
Como
mancha de azeite
Como
seixos ‘rolantes’.”
O
Gaibor sentiu um calafrio que lhe percorreu as costas. Teve que se assegurar
algo nos calcanhares para não perder o equilíbrio. Mas a curiosidade podia mais
que o medo e sempre quis saber mais alguma coisa. Olhou para o velho com aceno
de esperar outra explicação.
–
A Santa Companha são as almas do purgatório, que não têm repouso, porque ainda
não puderam entrar no Céu e, como estão irrequietas à espera de o puderem
fazer, andam pelos caminhos penando. Levam fachos acendidos para se alumiar.
–
E então, podem-se ver.
–
Ai! Meu amigo, isso é que não convém.
–
Por quê? – Quis saber o Gaibor, sentando-se à beira do Sr. Olegar e cada vez
mais interessado, enquanto sentia crescer em seu interior aquela mistura de
medo e de curiosidade.
–
Porque a Santa “Companha” vai envolta num ar frio. É um alento de purgatório
que nem é de Inferno nem de Céu. O bafo do Inferno é quente, pode mesmo fazer
arder as silveiras se uma fenda diabólica lhe permitisse sair das profundezas
da terra. No em tanto, o ar do Céu é como um vento de rosas, suave e
rescendente como um perfume. Quando uma pessoa tem a sorte de ser atingida por
este último, é como se a felicidade lhe entrasse por todos os poros da sua
pele.
Mas,
há de quem é abafado pelo ar de purgatório! Essa pessoa já nunca mais vai viver
entre os vivos. Mesmo que pareça um vivo, já não o é, porque o seu corpo
tornar-se há oco como a casca vazia dum ovo. Pode mesmo andar, e enganar aos
que olhem para ele, mas, como está vácuo, torna-se frágil e quebradiço, de
maneira que com o menor golpe vai-se esquartejar. Igual que acontecer com uma
casca de ovo esvaziada. Eu já tenho visto as cinzas esfareladas dum alguém que,
parecendo vivo, partiu, subitamente, em mil pedaços.
– Ah!
O Gaibor não entendia muito bem o que o velho
queria dizer, mas, como era um rapaz educado, ensinado a respeitar aos anciãos,
acenou com a cabeça como se compreendesse.
E
continuou sentado à beira do velho, a fazer perguntas.
–
E então, que era aquilo que o Senhor cantava há pouco?
–
Eu estava apenas a escorrentar a “Companha”. Porque, ainda que seja de dia,
hoje à noite pode vir passear por este Outeiro, caminhando pelo carreiro que há
ao pé desta Pena Patela. Estou apenas a advertir. Se alguém anda perdido pelos
caminhos e lhe alcançasse a dar o ar frio da Santa Procissão, fica prendido em
ela e já nunca mais volta para a sua casa. Desta maneira a Companha cresce nas
noites escuras de névoa ou de lua nova acrescentando mais um elo na cadeia de
fachos que a formam.
O
Gaibor escutava com espanto até que já não aguentou mais. Começou logo a sentir
um frio que lhe subia desde os pés até as coxas e que já lhe queria ascender
pelo vão caminho do coração, embora, sendo ainda novo, não soubesse com
precisão onde é que este órgão se encontrava dentro de seu corpo. Um tremor
começou a sacudi-lo, primeiro suavemente e depois com algo mais de força. Teve
de fazer um esforço grande para se erguer e a seguir descolar os sapatos do
chão. Quando se viu com força e capaz de correr, disse ao velho, com voz
aflita:
–
Adeus, Sr. Olegar. Tenho de ir merendar à minha casa. Meu pai está a minha
espera.
Um
grito de chamada veio em sua ajuda.
–
Gaibor, Gaibor! Entra em casa que já é tarde!
O
rapaz virou-se rapidamente lançou um “boas tardes” apressurado e correu para
onde seu pai o chamava.
Enquanto
corria, ouvia a voz profunda e rouca do Sr. Olegar a cantarolar num tom de
monocórdia e de salmodia :
“Lavradores
incansáveis de caminhos
A
marcar os vieiros com pegadas
De
pés, engenhos e palavras".
Essa
noite, depois de ter jantado e preparado as tarefas de classe, o Gaibor pôs-se
a olhar pela janela de seu quarto, sempre a pensar no Sr. Olegar. Só o fundo
preto do Céu era o que se via – ou não se via – da sua atalaia.
No
silêncio da noite, quando as luzes vão se apagando e os lares adormecem junto
com os seus moradores, o Gaibor ia sentindo como o som surdo e escuro da noite
lhe premia o coração, ao mesmo tempo em que o cansaço lhe vencia. Deitou-se
cheio de aquela mistura de medo e curiosidade que o tinha invadido quando
tivera a conversa com o Velho das barbas brancas que olhava a paisagem da Pena
Patela sem a poder ver desde os seus olhos cegos.
Já
o sono queria-lhe entrar pela porta dos pensamentos e ainda voltou escutar a
voz profunda e rouca do Sr. Olegar que salmodiava:
“Caminhando,
caminhando, caminhando
Já
lá vem a Santa Companha:
Destino
errante sempiterno
A
procura do final imaginado
dum
caminho entre o Céu e o Inferno
Prendido
nas cadeias do seu fado:
Andar
sobre a terra e sobre as águas
Com
o olhar posto na linha inalcançável
Do
horizonte de risos e de ‘bágoas’
O
Gaibor tapou-se com o cobertor até cobrir a cabeça. Logo embrulhou-se com os
lençóis da cama. Dentro do seu leito ficou encolhido e assim adormeceu e passou
a noite inteira sem se mexer dentro da cama.
A
luz do sol fê-lo acordar à manhãzinha. Já nada se lembrava do acontecido o dia
anterior. O pai tinha saído cedo para o trabalho e ele tomou o pequeno almoço
com o avô, que o acompanhou à paragem do bus da escola.
Só
foi à tarde, quando voltou para casa, que lembrou ao velho Sr. Olegar. Como
ainda era dia e estava sol, pediu para ir brincar e apanhar umas pinhas para o
lume da lareira. Foi logo para a Pena Patela, mal dissimulando uma louca
ansiedade que lhe apertava no peito até case lhe fazer enjoar.
O
Sr. Olegar não estava mais sentado na Pedra. Mas lá estava a bengala branca que
o homem tivera pela mão no dia anterior e, na sua beira, pelo chão apareciam
inúmeros cascalhos brancos, como de casca de ovo ou de ossos quebrados.
Gaibor
sentiu uma rachada de vento vindo do caminho que, desde embaixo da Pena Patela,
contornava esta. Teve frio e voltou a correr para sua casa enquanto chamava
pelo seu avô para que lhe abrisse a porta.
–
E então sempre cansaste de brincar? Sei que não havia pinhas no pinheiral.
–
Não, avô, não eram pinhas o que havia. O que lá fica já não dá para fazer fogo.
Tem tudo ardido.
O
Pai e o avô olharam para o Gaibor de relance. O aspecto de preocupação que
transcendia não dava para lhe fazer perguntas. Decidiram deixar o rapaz
tranquilo e todos três puseram-se a preparar o jantar.
Gaibor
ainda escuta, nas noites nevoentas da invernia uma voz que salmodia:
Caminhando,
caminhando, caminhando
Velai
vem a Santa Cooompaanhaa.
EPÍLOGO
Agora
o Gaibor já nunca mais tem medo de ser apanhado pelo ar frio do purgatório que
expelem as almas.
O
seu pai e o seu avô disseram-lhe que o purgatório não existia, nem tampouco o
inferno. Que o céu aparecia sempre que a gente estava contente e era feliz, o que
acontecia com frequência na vida do Gaibor.
O
Sr. Olegar está na residência para anciãos. O pai do Gaibor conseguiu-lhe lá um
lugar porque, para além de ser ceguinho, não tinha família que o cuidasse.
As
enfermeiras ralham com ele todos os dias porque intenta contar-lhes histórias
da Santa Companha e pretende meter-lhes medo sob a ameaça de que uma noite de
geada e névoa vão ser apanhadas pela procissão das ânimas. E seu corpo
converter-se-á numa casca de ovo vazia.
Por
enquanto canta os seus versos, como uma ladainha que semelha uma premonição:
“Caminhando, caminhando, caminhando
Já
lá vai a Santa “Companha”
A
levar pelo mundo a terrível,
‘Cruel
espécie da palavra.’
Espécie,
enfim, a invasora da Terra,
Gente,
Seres Humanos."
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Nota do editor: Na Galiza fla-se o português: visete o Portal Galego da Língua:
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