GABRIEL ERNEST - Conto Clássico de Terror - Saki



GABRIEL-ERNEST

Saki (Hector Hugh Munro)

(1870 – 1916)

Tradução de Paulo Soriano

 

Nascido na Birmânia, filho de pais britânicos, Hector Hugh Munro, mais conhecido como Saki (1870 — 1916), foi — assim como Ambrose Bierce — um hábil contista que aliava, com maestria, o humor — cáustico e irônico — ao terror. “Gabrie-Ernest”, conto de lobisomens, foi publicado em “The Westminster Gazette” em 1909. 

 

Há um animal selvagem em seus bosques — disse o artista Cunningham, enquanto era conduzido à estação. Esta foi a única observação que ele fez ao longo de todo o trajeto, mas, como Van Cheele havia falado sem parar, o silêncio de seu companheiro não havia sido notado.

— Uma ou outra raposa extraviada e umas tantas doninhas da região. Nada mais fabuloso que isto — disse Van Cheele. O artista não disse mais nada.

— O que você quis dizer com animal selvagem? — perguntou Van Cheele pouco depois, quando estavam na plataforma.

— Nada. Apenas uma fantasia minha. O trem está chegando — disse Cunningham.

Naquela mesma tarde, Van Cheele saiu para um de seus frequentes passeios nos bosques de sua propriedade. Havia uma ave migratória empalhada em seu estúdio e ele conhecia os nomes de um grande número de flores selvagens. Assim, a sua tia tinha, de algum modo, certa razão para descrevê-lo como um grande naturalista. De toda forma, era ele um grande caminhante. Tinha o costume de tomar, mentalmente, nota de tudo o que via nesses passeios, não tanto para contribuir para com a ciência contemporânea, mas sobretudo para munir-se de temas em suas conversações. Quando as campânulas azuis começaram a florescer, ele fez questão de participar o fato a todas as pessoas. A época do ano poderia ter prevenido seus ouvintes da probabilidade de tal ocorrência, mas pelo menos pensaram que Van Cheele estava sendo absolutamente franco com eles.

Todavia, o que Van Cheele viu naquela tarde em particular fora algo muito distante de suas experiências ordinárias. Numa plana saliência rochosa, que pende sobre uma laguna profunda, em meio a uma clareira de um bosque de carvalhos podados, um jovem de cerca de dezesseis anos estava estendido, secando deliciosamente os seus membros morenos ao sol. Tinha os cabelos molhados, redistribuídos na cabeça por um mergulho recente. Seus olhos castanho-claros, que, de tão brilhantes, tinham quase o fulgor dos de um tigre, dirigiram-se para Van Cheele com uma certa atenção indolente. Aquela era uma aparição inesperada e o homem enredou-se no processo, que não lhe era habitual, de pensar antes de falar. De onde teria surgido aquele rapaz de aparência selvagem? A esposa de um moleiro perdera um garoto há uns dois meses — supunha-se que arrastado pela corrente que movia o moinho —, mas aquela era só uma criança, não um rapaz crescido.

— O que está fazendo aqui? ¬— perguntou Van Cheele.

— Tomando sol, é evidente — respondeu o rapaz.

— Onde você mora?

— Aqui, nestes bosques.

— Você não pode morar nos bosques — disse Van Cheele.

— São bosques muito belos — disse o rapaz, com certo tom de condescendência na voz.

— Mas, onde dorme à noite?

— Não durmo à noite. É quando estou mais ocupado.

 

Van Cheele começou a ter a irritante sensação de estar lidando com um problema que lhe escapava.

— De que você se alimenta? — perguntou.

— De carne — respondeu o rapaz. E pronunciou aquela palavra com tanto gosto que parecia saboreá-la.

— Carne? Que espécie de carne?

— Já que lhe interessa, de coelhos, aves selvagens, lebres, aves de cativeiro, cordeiros e crianças, quando consigo alguma. Geralmente, elas estão muito bem trancadas à noite, quando geralmente caço. Há dois meses que não provo carne de criança.

Ignorando a natureza provocante da última observação, Van Cheele cuidou de conduzir o rapaz ao tema de uma possível caça furtiva.

— Você fala à toa quando afirma alimentar-se de lebres (o aspecto do rapaz não indicava aptidão a tanto). As lebres de nossas colinas não são facilmente capturadas.

— À noite, caço sobre quatro patas — foi a resposta um tanto enigmática.

— Suponho, então, que você está a dizer que caça com cães... — arriscou Van Cheele.

O rapaz virou-se lentamente de costas e soltou um sorriso baixo e estranho, agradável como um contentamento e desagradável como um grunhido.

— Não acho que algum cão ficaria ansioso pela minha companhia, sobretudo à noite.

Van Cheele deu-se conta de que havia algo de pavoroso naquele rapaz de olhos peculiares e estranho modo de falar.

— Não posso permitir que permaneça nestes bosques — declarou, em tom autoritário.

 

— Suponho que você há de me preferir aqui e não em sua casa — disse o jovem.

A perspectiva daquele animal desnudo e selvagem na casa ordenada e perfeita de Van Cheele era evidentemente alarmante.

— Se você não vai embora por si mesmo, terei de obrigá-lo a partir — disse Van Cheele.

O rapaz virou-se como um raio, mergulhou na laguna e, em um instante, já havia percorrido, com o seu corpo molhado e brilhante, a metade da distância à margem onde estava Van Cheele. Numa lontra, o movimento não teria nada de especial; mas, para Van Cheele, era algo de surpreendente num rapaz. Ao fazer um involuntário movimento de recuo, seu pé escorregou no chão úmido e ele se viu prostrado na margem, com aqueles olhos amarelos de tigre não muito distantes dos seus. Quase institivamente, levou a mão à garganta. O rapaz riu novamente. Era um sorriso em que o grunhido fizera desaparecer todo o contentamento. Depois, com outro de seus movimentos rápidos e surpreendentes, fugiu, mergulhando num emaranhado de ervas e samambaias.

— Que animal selvagem extraordinário! — exclamou Van Cheele, enquanto se levantava. E logo se lembrou da observação de Cunningham: “há um animal selvagem em seus bosques”.

Retornando, devagar, para casa, Van Cheele pôs-se a repensar uma série de acontecimentos locais que poderia ser associada à existência daquele surpreendente jovem selvagem.

Ultimamente, algo contribuía para a escassez de amimais silvestres naquelas florestas. As galinhas desapareciam das fazendas, as lebres quase não eram vistas e chegaram-lhe queixas dos que haviam perdido cordeiros nos rebanhos que pastavam nas colinas. Seria possível que aquele rapaz selvagem estivesse caçando naquela região em companhia de algum cão inteligente? O jovem falara de caçar “sob quatro patas” durante a noite, mas também insinuara, estranhamente, que nenhum cão gostaria de estar junto a ele, “especialmente à noite”. Tudo era verdadeiramente intrigante. Ao repassar os diversos saques ocorridos nos últimos dois nesses, terminou por chegar repentinamente a um ponto morto, que se refletiu tanto em sua caminhada quanto em suas especulações. A criança perdera-se no moinho há dois meses, e a teoria aceita por todos era a de que ela havia caído na corrente do moinho, que a levara... Mas a mãe sempre dissera ter ouvido um grito vindo do lado de casa voltado para a colina, na direção oposta ao rio. Malgrado naturalmente impensável, ele desejou que o jovem não tivesse feito a aterradora alusão à carne de criança que provara há dois meses. Coisas tão horrendas não deveriam ser ditas jamais, nem mesmo por brincadeira.

Contrariamente aos próprios costumes, Van Cheele não se sentia disposto a contar aos outros a descoberta que fizera no bosque. Sua posição de conselheiro da igreja e juiz de paz se veria comprometida de certo modo pelo fato de estar abrigando em sua propriedade uma personalidade de reputação duvidosa. Havia mesmo a possibilidade de que fosse responsabilizado pelos pesados prejuízos decorrentes do desaparecimento das aves de cativeiro e cordeiros. Nessa noite, ao jantar, estava num mutismo inabitual.

— O que aconteceu à sua língua? — disse a tia. — Mais parece que você viu um lobo.

Van Cheele, que não conhecia esse velho ditado, considerou estúpida aquela observação. Se tivesse encontrado um lobo sem sua propriedade, a sua língua estaria extraordinariamente ocupada com o assunto.

No dia seguinte, durante o café da manhã, Van Cheele percebeu que a incômoda sensação provocada pelo incidente do dia anterior não havia de todo desaparecido. Resolveu ir de trem à cidade vizinha, que era sede episcopal, procurar Cunningham e inteirar-se do que ele havia realmente visto. Indagaria ao amigo por que motivo fizera a observação a respeito do animal selvagem do bosque. Tomada tal decisão, a sua habitual alegria em parte retornou, e ele se pôs a cantarolar uma musiquinha enquanto seguia ao estúdio para fumar o cigarro costumeiro. Ao entrar, a melodia foi subitamente interrompida por uma exclamação religiosa. Graciosamente estendido na poltrona, numa atitude de repouso quase exagerada, jazia o rapaz do bosque. Estava mais seco que da última vez que Van Cheele o havia visto, mas sem nenhuma outra alteração perceptível em sua aparência.

— Como se atreve a vir aqui? — perguntou Van Cheele, furioso.

— Você me disse que eu não podia ficar nos bosques — disse, calmamente, o rapaz.

— Mas eu não lhe disse que viesse para cá.  E se minha tia o vir assim?

E com a intenção de minimizar tal catástrofe, Van Cheele apressadamente cobriu o máximo possível seu indesejado visitante com as dobras do Jornal da Manhã. Nesse momento, a tia entrou no gabinete.

— Este pobre rapaz extraviou-se e perdeu a memória. Não sabe quem é e nem de onde vem — Van Cheele explicou, desesperadamente, olhando apreensivo para o rosto do “garoto perdido”, a fim de verificar se era capaz de adicionar alguma inconveniente sinceridade às suas outras propensões selvagens.

A senhorita Van Cheele ficou imensamente interessada.

— Talvez tenha uma inicial em suas roupas de baixo — sugeriu.

— Parece que perdeu a maior parte delas — disse Van Cheele, procurando freneticamente manter o Jornal da Manhã em seu lugar.

Um garoto nu e sem lar fascinava tanto a senhorita Van Cheele quanto um gatinho de rua ou um cãozinho abandonado.

— Devemos fazer tudo o que for possível por ele — decidiu ela e, em curto espaço de tempo, um mensageiro enviado à Paróquia, onde havia um pajem jovem, regressara com um terno e alguns acessórios necessários como camisa, colarinho, sapatos etc. Vestido, limpo e arrumado, o rapaz nada perdera, aos olhos de Van Cheele, de sua aterradora expressão; mas sua a tia o achara encantador.

— Devemos dar-lhe um nome até que saibamos quem ele realmente é — disse ela. — Gabriel-Ernest, eu acho. São nomes agradáveis e apropriados.

Van Cheele concordou, embora intimamente duvidasse que os nomes haviam sido dados a um rapaz adequado e agradável. E seus temores não foram amenizados pelo fato de o seu velho e sereno cão de caça fugir de casa logo à chegada do rapaz, de modo a continuar tremendo e latindo no pomar, enquanto que o canário, normalmente tão ativo vocalmente quanto o próprio Van Cheele, limitava-se a soltar alguns pios assustados. Mais do que nunca estava decidido a consultar Cunningham sem perda de tempo.

Enquanto ele se dirigia à estação ferroviária, sua tia cuidava para que Gabriel-Ernest a ajudasse a entreter as crianças da escola dominical no chá daquela tarde.

Cunningham, inicialmente, não estava disposto a mostrar-se comunicativo.

— Minha mãe morreu de uma doença mental — explicou —, de maneira que você compreenderá que sou avesso a lhe participar qualquer coisa de natureza impossível ou fantástica que eu tenha visto ou que pense que tenha visto.

— Mas o que foi que você viu? — insistiu Van Cheele.

— O que eu suponho que vi foi algo tão incomum que ninguém, em são juízo, poderia crer que realmente aconteceu. Na última noite em que estive com você, eu estava meio oculto entre os arbustos, à entrada do pomar, admirando o pôr do sol. De repente, percebi a presença de um rapaz nu, alguém que se banhara nalguma laguna próxima, e que permanecera no declive da colina para também contemplar o entardecer. Sua atitude sugeria de tal modo a aparência de um fauno silvestre da mitologia pagã que imediatamente me ocorreu contratá-lo como modelo. Estava prestes a chamá-lo quando o sol despareceu, e todos os matizes laranja e rosa abandonaram a paisagem, deixando-a fria e cinza. Neste preciso instante, algo surpreendente aconteceu: o rapaz também desapareceu!

— Como assim? Desapareceu no nada? — perguntou Cheele, excitado.

— Não. Esta é a parte terrível da história — respondeu o artista. — Na encosta, onde estivera o rapaz há um segundo, agora havia um grande lobo, quase negro, com presas reluzentes e olhos amarelos e cruéis. Pense que...

Mas Van Chelle não se deteve com algo tão inútil quanto um pensamento. Corria já, a toda velocidade, à estação. Repeliu a ideia de um telegrama. “Gabriel-Ernesto é um lobisomem” era uma tentativa desesperadamente inadequada para explicar o que estava acontecendo, e sua tia pensaria que se tratava de uma mensagem cifrada cuja senha não lhe fora fornecida. Sua única esperança era chegar em casa antes do pôr do sol. O táxi que tomou ao desembarcar na estação parecia conduzi-lo com uma lentidão exasperante pelas estradas rurais, que já ganhavam matizes rosados e violáceos sob a luz do sol poente. Sua tia já recolhia os restos de geleia e o bolo quando ele chegou.

— Onde está Gabriel-Ernest? — ele perguntou, quase a gritar.

— Está levando para casa o filho dos Toop — disse a tia. — Já estava ficando tarde e não me pareceu seguro deixar que o menino voltasse sozinho. Que belo pôr do sol, não é mesmo?

 

Mas Van Cheese, embora não ignorasse o brilho do céu no ocidente, não ficou para discutir aquela beleza. A uma velocidade para a qual estava precariamente dotado, correu ao longo das sendas estreitas que levavam à casa dos Toop. De um lado, fluía a rápida corrente que movia o moinho; do outro, elevava-se a encosta desnuda da colina.

O arco minguante do sol ainda era visto no horizonte. Na próxima curva, Van Cheele deveria encontrar a incôngrua dupla que procurava. De repente, todas as cores sumiram e a luz cinzenta dominou, com um rápido estertor, a paisagem. Van Cheele ouviu um estridente grito de terror e estacou.

O pequenino Toop e Gabriel-Ernest nunca mais foram vistos, mas encontraram as roupas do rapaz jogadas no caminho. Concluíram que a criança caíra na água e que o rapaz se despira e atirara-se ao rio, numa vã tentativa de salvá-la. Van Cheele e alguns trabalhadores, que na ocasião por ali se encontravam, testemunharam ter ouvido o grito estridente do garoto nas proximidades do lugar onde as roupas foram achadas. A senhora Toop, que tinha outros onze filhos, resignou-se decentemente ao luto, mas a senhorita Van Cheese lamentou sinceramente o desaparecimento do rapaz desgarrado. Graças à sua iniciativa, assentaram uma placa de bronze, na igreja paroquial, em memória de “Gabriel-Ernest, rapaz desconhecido que sacrificou corajosamente a sua vida pela de outra pessoa”.

Van Cheele apoiava a tia na maioria de suas moções, mas se recusou por completo a subscrever um contributo financeiro à placa memorial de Gabriel-Ernest.

 

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