O CORAÇÃO PERDIDO - Conto Clássico Fantástico - Emilia Pardo Bazán
O CORAÇÃO
PERDIDO
Emilia Pardo Bazán
(1851 – 1921)
Tradução de Paulo Soriano
Passeando, certa tarde, pelas ruas da cidade, vi que havia no chão
um objeto vermelho. Baixei-me: era um sangrento e vivo coração, que apanhei
cuidadosamente. “Alguma mulher deve tê-lo perdido”, pensei, ao observar a
brancura e a delicadeza da terna víscera que, ao contato de meus dedos,
palpitava como se estivesse dentro do peito de seu dono. Eu o envolvi,
esmeradamente, num lenço branco e o guardei,
escondo-o sob a minha roupa. Dediquei-me a averiguar quem seria a mulher que
havia perdido o coração na rua. Para melhor investigar, adquiri uns óculos
maravilhosos, que permitiam enxergar através do corpete, da roupa interior, da
carne e das costelas — como por esses relicários que são o busto de uma santa e
têm no peito uma janelinha de vidro — o lugar que ocupa o coração.
Assim que pus os meus óculos mágicos, fitei ansiosamente a
primeira mulher que passava e — oh, assombro! — vi que a mulher não tinha coração. Ela deveria
ser, sem dúvida, a proprietária de meu achado. O estranho foi que, ao lhe dizer
como havia encontrado o seu coração e indagar-lhe se queria tê-lo de volta, a
mulher, indignada, jurou e perjurou que não havia perdido coisa alguma; que seu
coração estava onde sempre estivera e que lhe sentia perfeitamente a pulsação, recebendo e lançando o sangue. Em vista da
teimosia da mulher, deixei-a e me virei para outra, jovem, linda, sedutora,
alegre. Santo Deus! Em seu branco peito havia o mesmo vazio, o mesmo buraco
rosado, sem nada, nada, em seu interior. Também esta não tinha coração. E
quando lhe ofereci, respeitosamente, aquele que eu trazia bem guardado, menos
ainda quis ela admitir a sua privação, alegando que lhe era uma grave ofensa
supor que lhe faltava o coração, ou que era tão descuidada a ponto perdê-lo em
via pública, sem se dar conta disto.
E passaram centenas de mulheres, velhas e moças, lindas e feias,
morenas e louras, melancólicas e vivazes; e para todas volvi os meus óculos, e
em todas notei que do coração só tinham o lugar, porque o órgão jamais havia
existido, ou o haviam perdido tempo atrás. E todas, sem exceção, ao querer eu
devolver-lhes o coração de que careciam, se recusavam a aceitá-lo, quer porque acreditavam que já o tinham, quer
porque sem ele estavam maravilhosamente bem, quer porque se julgavam ofendidas
com a oferta, quer porque não se atreviam a arrostar o perigo de possuir um
coração.
Já perdia eu a esperança de restituir a um peito de mulher o pobre coração abandonado, quando, casualmente, com a ajuda de minhas prodigiosas lentes, vislumbrei que passava por uma rua uma menina pálida, e em seu peito — por fim! — distingui um coração, um verdadeiro coração de carne, que saltitava, pulsava e sentia. Não sei por que — pois reconheço que seria um absurdo ofertar um coração a quem já o tinha tão vivo e desperto —, ocorreu-me experimentar presenteá-la com aquilo que todas haviam recusado; e eis que a menina, em vez de repelir-me como as demais, abriu o seio e recebeu o coração que eu, já tão cansado, iria deixar outra vez caído sobre os seixos.
Já perdia eu a esperança de restituir a um peito de mulher o pobre coração abandonado, quando, casualmente, com a ajuda de minhas prodigiosas lentes, vislumbrei que passava por uma rua uma menina pálida, e em seu peito — por fim! — distingui um coração, um verdadeiro coração de carne, que saltitava, pulsava e sentia. Não sei por que — pois reconheço que seria um absurdo ofertar um coração a quem já o tinha tão vivo e desperto —, ocorreu-me experimentar presenteá-la com aquilo que todas haviam recusado; e eis que a menina, em vez de repelir-me como as demais, abriu o seio e recebeu o coração que eu, já tão cansado, iria deixar outra vez caído sobre os seixos.
Enriquecida com dois corações, a menina pálida ficou mais pálida
ainda: as emoções, por insignificantes que fossem, faziam-na estremecer até a
medula; os afetos vibravam nela com cruel intensidade; a amizade, a compaixão,
a tristeza, a alegria, o amor, os ciúmes: tudo era nela profundo e terrível. E, muito ingênua, em vez de resolver-se a suprimir um de seus corações, ou os dois
ao mesmo tempo, dir-se-ia que se comprazia em viver dupla vida espiritual,
querendo, gozando e sofrendo duplamente, somando sentimentos tais que seriam
suficientes para extinguir a vida. A criança era como vela acesa pelos dois
extremos, que se consome em breves instantes. E, de fato, se consumiu. Deitada,
lívida, em seu leito de morte, tão
enfraquecida e magra que parecia um passarinho, vieram os médicos e garantiram
que o que lhe arrebatava deste mundo era a ruptura de um aneurisma. Ninguém (todos
são tão incompetentes!) soube descobrir a verdade: ninguém compreendeu que a
menina havia morrido por cometer a imprudência de dar asilo, em seu peito, a um
coração perdido na rua.
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