O SEGREDO DO PATÍBULO - Conto Clássico de Horror - Villiers de L’Isle Adam
O
SEGREDO DO PATÍBULO
Villiers de L’Isle Adam
(1838 – 1889)
Tradução de Paulo Soriano
Num dos mais macabros episódios de “Um Mil e Um Fantasmas”, Dumas narra
a história de um jovem médico que, após salvar, nas ruas da Paris
revolucionária, a vida de uma aristocrata fugitiva, é protagonista de uma
horripilante experiência científica. No conto “O Segredo do
Patíbulo”, Villiers de L’Isle
Adam (1838 ― 1889) retoma o mote inaugurado por Dumas e o explora aos
últimos limites: um médico condenado à morte por decapitação recebe a visita de
um colega cientista que o convida a participar, como cobaia, de um não menos
aterrorizante experimento post-mortem.
Ao Sr. Edmond de Goncourt[1]
As
recentes execuções fizeram-me lembrar de uma história extraordinária. Ei-la:
Na note de 5 de junho de 1864, às sete horas da
noite, o Dr. Edmond-Désiré Couty de la Pommerais, recentemente transferido da
prisão de Conciergerie[2]
para a de Roquette[3],
estava sentado, metido numa camisa de presidiário, na cela dos condenados à
morte.
Estava taciturno, tinha os olhos fixos e apoiava os
cotovelos no encosto da cadeira. Sobre a mesa, uma vela iluminava a palidez de
seu rosto frio. A dois passos, um carcereiro, encostado à parede, vigiava-o com
os braços cruzados.
Quase todos os prisioneiros são obrigados a um
trabalho diário, de cujo salário a Administração deduz, em caso de morte, o
preço da mortalha, que jamais é fornecida de graça. Só os condenados à morte
não têm que realizar trabalho algum.
O prisioneiro era um dos que não abrem o jogo. Nos
olhos dele não se lia medo ou esperança.
Tinha trinta e quatro anos. Moreno. De altura
mediana e bom talhe. Nas têmperas, os cabelos começavam a embranquecer. O olhar
era nervoso, semioculto; a fronte, meditativa. A sua voz era turva e breve; as
mãos, saturninas. Tinha a expressão circunspecta das pessoas silenciosas. Seus
modos eram de uma distinção estudada. Tal era a sua aparência.
(Todos se recordam que, nas audiências do Sena,
apesar do rigor de sua defesa, o advogado Lachoud não logrou desvanecer da
mente dos jurados o efeito produzido pelas conclusões do Dr. Tardieu e pela
acusação levada a efeito pelo promotor de justiça Oscar de Vallée. Acusado de
haver administrado doses mortais de digitalina a uma senhora amiga sua, com
premeditação e intuito de lucro, M. de la Pommerais ouviu a sentença de morte,
em razão da aplicação dos artigos 301 e 302 do Código Penal.)
Nessa noite de 5 de junho, ele ainda não sabia do
improvimento de sua apelação e da recusa de qualquer audiência de graça
solicitada por seus familiares. Somente o seu defensor, mais venturoso, fora
ouvido com displicência pelo imperador. O venerável abade Crozes, que antes de
cada execução exauria-se em súplicas às Tulherias[4],
voltara sem nada conseguir. Comutar a pena de morte em tais circunstâncias não
implicava aboli-la? O caso era exemplar. Na opinião do Ministério Público, o
improvimento era irretocável e deveria ser prontamente notificado aos
executores. O Sr. Hendreich fora encarregado de receber o condenado às nove e
cinco da manhã.
De repente, o estrépito das coronhas dos fuzis
ressoou no pavimento do corredor. A fechadura rangeu pesadamente. A porta se
abriu. As baionetas brilharam na penumbra. O diretor da Roquette, Sr.
Beauquesne, assomou à porta, acompanhado de um visitante.
Erguendo a cabeça, o Sr. de la Pommerais
reconheceu, a um olhar, naquele visitante, o ilustre cirurgião Armand Velpeau.
A um sinal do seu superior, o carcereiro saiu e o
Sr. Beauquesne, após uma muda apresentação, também se retirou, deixando a sós
os dois colegas, frente a frente, olhando-se mutuamente.
La Pommerais, em silêncio, indicou ao médico a sua
própria cadeira. Depois, sentou-se no catre em que os adormecidos, em sua
maioria, são logo despertados da vida num sobressalto. Como mal se viam, o
grande médico se aproximou do... paciente para melhor observá-lo e poder
conversar em voz baixa.
Volpeau chegava aos seus sessenta anos. No apogeu
de sua fama, herdeiro da cátedra de Larrey[5]
no Instituto[6],
primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris e, por suas obras, todas de um
rigor de dedução claro e brilhante, era um luminar da atual ciência patológica,
um emérito profissional que já se impunha como uma das sumidades do século.
Após um frio instante de silêncio, disse:
― Senhor, entre nós, médicos, as condolências são
inúteis. Por outro lado, uma afecção na próstata ― que, com certeza, me matará
em dois ou dois anos e meio ― me classifica, também, com uma distância de
poucos meses, na categoria dos condenados à morte. Assim, sem rodeios, vamos ao
que interessa.
― Então, segundo o senhor, doutor, a minha situação
jurídica é... sem esperança? ― interrompeu Le Pommerais.
― Receio que sim ― respondeu simplesmente Velpeau.
― A minha hora está marcada, então?
― Não sei. Mas, como nada há de concreto, o senhor
pode decerto contar com alguns dias.
La Pommerais enxugou a manga da camisa de detento
sobre a face pálida.
― Que assim seja. Obrigado. Estou pronto. Agora, o
quanto antes acontecer, melhor.
― Como o seu recurso não foi denegado, ao menos até
agora ― continuou Valpeau ―, a proposta que eu o farei é condicional. Se o
senhor for salvo, tanto melhor... Mas se, do contrário...
O grande cirurgião fez uma pausa.
― Do contrário...? — indagou La Pommerais.
Velpeau, sem responder, tirou do bolso um pequeno
estojo. Abriu-o, lançou mão do bisturi e, cortando a manga esquerda da camisa
de detento, pressionou o dedo médio sobre o pulso do jovem condenado.
― Senhor de La Pommerais ― disse ―, seu pulso
revela raros sangue frio e firmeza. A proposta que venho fazer-lhe, e esta deve
manter-se em segredo, dirigida que é a um médico cheio de energia, a um
espírito temperado nas convicções positivas de nossa ciência, e bem liberto dos
terrores fantásticos da morte, pode parecer uma extravagância ou mesmo um
escárnio criminal. Mas creio que sabemos quem somos. O senhor a levará,
portanto, em consideração, ainda que, no primeiro momento, a proposta possa
parecer-lhe inquietante.
― O senhor tem toda a minha atenção ― respondeu La
Pommerais.
― O senhor longe está de ignorar ― prosseguiu
Velpeau ― que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna
consiste em saber se persiste algum verdadeiro lampejo de memória, raciocínio e
sensibilidade no cérebro de um homem depois que tem a cabeça decepada.
A esta introdução inesperada, o condenado
estremeceu. Depois, recompondo-se, respondeu:
― Quando o senhor entrou, doutor ― respondeu ―, eu
estava justamente muito preocupado com este problema. Aliás, duplamente
interessante para mim.
― O senhor está a par dos trabalhos escritos sobre
esse assunto, desde os de Soemmering, Sue, Sédillot e Bichat[7]
até os mais modernos.
― Eu mesmo assisti, certa feita, a uma de suas
aulas de dissecação nos restos de um supliciado.
― Ah! Prossigamos, então. O senhor tem noções
exatas, do ponto de vista cirúrgico, sobre a guilhotina?
La Pommerais, depois e olhar atentamente para
Valpeau, respondeu friamente:
― Não, senhor.
― Hoje mesmo estudei minuciosamente o aparato ―
continuou, impassível, o doutor Velpeau. ― Eu o asseguro que é um instrumento
perfeito. A lâmina atua ao mesmo tempo como foice e clava. Corta o pescoço do
paciente em um terço de segundo. O decapitado, sob o impacto desse golpe fulgurante,
não pode sentir mais dor do que experimenta o soldado que, num campo de
batalha, tem um braço arrancado por uma bala. A sensação, pela exiguidade de
tempo, é nula e obscura.
― Pode ser que haja uma dor posterior. Duas feridas
permanecem vivas. Não foi Julia Fontenelle[8]
quem, dando os seus motivos, perguntou se esta mesma velocidade não é mais
dolorosa que a execução com alfanje ou machado?
― Bérard[9]
foi suficiente para fazer justiça a esse devaneio. Pessoalmente, estou
convencido, baseado em numerosas experiências e observações particulares, de
que a remoção instantânea da cabeça produz, instantaneamente, no indivíduo
decapitado, um absoluto efeito anestésico. Somente a síncope provocada pela
súbita perda de quatro ou cinco litros de sangue, que irrompem fora dos vasos ―
frequentemente com a força de projeção circular de um metro de diâmetro ―
bastaria para tranquilizar os mais temerosos. Quanto aos estremecimentos
inconscientes da máquina corporal mui repentinamente interrompida em seus
processos fisiológicos, estes não apresentam mais indícios de sofrimento que...
os frêmitos de, por exemplo, uma perna cortada, cujos músculos e nervos se
contraem, mas na qual já não se sente dor alguma. E digo que a febre nervosa da
incerteza, a solenidade dos preparativos fatais e o sobressalto do despertar
matinal são, nesse caso, o verdadeiro sofrimento. Como a amputação é
imperceptível, a dor real é apenas imaginária. Vamos! Um golpe violento na
cabeça não apenas não é sentido como não deixa consciência alguma do impacto. A
simples lesão das vértebras acarreta a insensibilidade absoluta. A separação da
cabeça, o corte da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o
coração e o cérebro não seriam suficientes para paralisar, nas profundezas do ser
humano, toda sensação, mesmo a mais tênue, de dor? Impossível, inadmissível! O
senhor sabe disto tão bem quanto eu.
― Pelo menos espero que seja assim, e assim o
espero ainda mais que o senhor ― respondeu La Pommerais. ― Porém, não é um
grande e rápido sofrimento físico ― apenas concebido pela desordem sensorial,
mas rapidamente sufocado pela crescente e inevitável ascendência da Morte ― o
que eu temo. É outra coisa.
― O senhor poderia me explicar? ― disse Velpeau.
― Escute ― murmurou La Pommerais após um instante
de silêncio. ― Em última instância, os órgãos da memória e da vontade ― se
estes estão circunscritos nos mesmos lóbulos em que constatamos no... no cão,
por exemplo ― não são afetados pela passagem da lâmina. Temos vivenciados
tantos diversos equívocos precedentes, tão inquietantes como incompreensíveis,
que não me deixo convencer facilmente da inconsciência imediata do decapitado.
Conforme as lendas, quantas cabeças não voltaram o olhar para aqueles que
falavam a elas? Memória de nervos? Movimentos reflexos? Palavras vazias!
Lembre-se da cabeça daquele marinheiro que, na clínica de Brest, uma hora e
quinze minutos após a decapitação, com um movimento, que pode ter sido
voluntário, das mandíbulas, cortou em dois um lápis colocado entre elas? Para não
citar mais outro entre mil exemplos, a questão real seria, pois, saber se fora
ou não o “eu” desse homem que, após a cessação da hematose, incitou os músculos
de sua cabeça exangue.
― O “eu” reside apenas no todo ― disse Velpeau.
― A medula espinhal prolonga o cerebelo ― respondeu
o Sr. de la Pommerais. ― Onde estará o todo sensitivo? Quem poderá revelá-lo?
Antes de oito dias, é certo que eu saberei... e esquecerei.
― Depende do senhor, talvez, que toda a humanidade
tenha, de uma vez por todas, a resposta ― respondeu lentamente Velpeau, os
olhos cravados em seu interlocutor. ― E, falando com franqueza, é por isto que
estou aqui. Fui delegado por uma comissão de nossos mais eminentes colegas da
Faculdade de Paris, e aqui está a permissão do imperador. Contém amplos
poderes, como o de prorrogar, se necessário, a ordem de execução.
― Não estou entendendo... Por favor, explique-se ―
respondeu, perplexo, La Pommerais.
― Senhor de la Pommerais, em nome da ciência que
ainda nos é cara, e não podemos hoje contar com muitos mártires magnânimos,
venho ― na hipótese para mim mais que duvidosa de que seria factível qualquer
experimento por nós engendrado ―, reclamar de todo o seu ser a maior soma de
energia e coragem que seja possível esperar da espécie humana. Se seu pedido de
clemência for denegado, o senhor será, como médico, um sujeito por si mesmo
capacitado à suprema operação que deve suportar. Sua cooperação seria, pois, a
inestimável na tentativa de... comunicação. É evidente, por maior que seja a
sua boa vontade, que tudo parece concorrer de antemão para o mais negativo dos
resultados. Mas, enfim, com o senhor ― supondo sempre que esta experiência não
seja absurda em princípio ―, é-nos oferecida uma chance em dez mil de iluminar
milagrosamente, por assim dizer, a fisiologia moderna. A ocasião deve ser,
portanto, aproveitada e, em caso de verificar-se exitosamente um sinal de
inteligência depois da execução, o senhor deixaria um nome cuja glória
científica apagaria para sempre a memória de sua mácula social.
― Ah! ― murmurou La Pommerais, pálido, mas com um
sorriso resoluto. ― Começo a compreender!… De fato, os suplícios revelaram os
fenômenos da digestão, disse-nos Michelot. Mas, qual seria a natureza de suas
experiências? Estímulos galvânicos? Excitação do ciliar? Injeção de sangue
arterial?
― Convém deixar claro que, imediatamente após à
triste cerimônia, seus restos mortais irão descansar em paz na terra e nenhum
de nossos bisturis o tocarão ― continuou Velpeau. ― Isto mesmo! Quando a lâmina
cair, eu, eu estarei lá, de pé, à sua frente, junto à guilhotina. Sua cabeça
passará das mãos do executor às minhas o mais rápido possível. Depois ― embora
a experiência, por sua simplicidade, não possa ser séria e conclusiva ―, eu
gritarei muito claramente em seu ouvido: “Sr. Couty de la Pommarais, em memória
do que combinamos em vida, o senhor pode, neste momento, baixar três vezes
seguidas as pálpebras de seu olho direito, conservando o outro aberto?” Se
neste momento, quaisquer que sejam as demais contrações faciais, o senhor
puder, por meio dessas três picadelas, avisar-me de que me ouviu e entendeu,
assim provando, pelo emprego da vontade e da memória permanecentes, o controle
sobre o músculo palpebral, o nervo zigomático e a conjuntiva ― dominando assim
todo horror, toda as ondas de impressões de seu ser ―, esse fato será
suficiente para iluminar a ciência e revolucionar as nossas convicções. E eu
saberei, não tenha dúvida, propalar o seu nome, de modo que, no futuro, será o
senhor lembrado não como um criminoso, mas como um herói.
Em face destas insólitas palavras, o Sr. de la
Pommerais pareceu dominado por uma comoção tão profunda que, com as pupilas
dilatadas e fixas no cirurgião, permaneceu em silêncio, petrificado, por um
minuto. Então, sem dizer uma palavra, levantou-se, deu alguns passos, muito
pensativo. Depois, sacudindo a cabeça, disse:
― A horrível violência do golpe irá arrancar-me de
mim mesmo. Realizar tal prodígio me parece superior a toda vontade e esforço
humanos ― disse. ― Além disso, diz-se que as probabilidades de sobrevida não
são as mesmas para todos os guilhotinados. Apesar disto, volte, senhor, na
manhã de minha execução. Responderei se me prestarei ou não essa tentativa, a
um tempo terrífica, revoltante e ilusória. Se eu disser não, conto com a sua discrição
para deixar que a minha cabeça sangre tranquilamente, até a exaustão, no balde
de estanho que há de recebê-la.
― Está bem, Sr. de la Pommarais ― disse Valpeau,
também se levantando. ― Reflita.
Cumprimentaram-se.
Um instante depois, o doutor Velpeau deixava a
cela, o carcereiro retornava, e o condenado, resignado, se estendia no catre
para dormir ou pensar.
Quatro dias depois, às cinco e meia da matina, o
Sr. Beauquesne, o abate Crozes, o Sr. Claude e o Sr. Potier, escrivão da corte
imperial, entraram na cela. Acordado, e à notícia da hora fatal, o Sr. de la
Pommerais ergueu-se muito pálido e se vestiu rapidamente. Em seguida, falou dez
minutos com o abade Crozes, de quem já havia recebido visitas. Sabe-se que o
santo sacerdote estava dotado desta santa unção de inspiração que infunde
coragem na hora extrema. Depois, vendo que o doutor Velpeau chegava, disse:
― Eu tenho treinado. Veja!
E, durante a leitura da sentença, conservou fechada
a pálpebra direita, olhando fixamente o cirurgião com olho esquerdo
completamente aberto.
Volpeau se inclinou demoradamente diante do médico
e depois voltou-se para o Sr. Hendreich, que entrava com o seu ajudante, e
trocou com o cirurgião um sinal de cumplicidade.
Os preparativos foram rápidos. Com ele, não se
verificou o fenômeno do encanecimento dos cabelos sob o corte da tesoura. Uma
carta de despedida da esposa ao réu, lida em voz baixa pelo capelão,
umedeceu-lhe os olhos com lágrimas que o sacerdote enxugou piedosamente com o
retalho tirado de sua camisa. Uma vez de pé, e com o casaco lançado sobre os
ombros, tiveram que soltar as amarras de seus pulsos. Em seguida, ele recusou o
copo de aguardente e o séquito seguiu pelo corredor. Ao chegar ao portão,
estando o colega no limiar, disse-lhe, em voz baixa:
― Até logo! E adeus!
De repente, as grandes abas de ferros se
entreabriram e giraram à sua frente.
O vento da manhã invadiu a prisão. Amanhecia. A
grande praça se estendia à sua frente, cercada por um duplo cordão de
cavalaria. Adiante, a dez passos, num semicírculo de gendarmes montados, que à
sua chegada desembainharam os sabres ruidosos, erguia-se o patíbulo. A uma
certa distância, entre os enviados da imprensa, alguns tiravam os chapéus.
Mais abaixo, atrás das árvores, ouvia-se o rumor da
multidão, enervada pela noite de espera. Nas coberturas das tavernas, nas
janelas, jovens dissolutas, pálidas, vestidas com sedas vistosas, algumas ainda
segurando garrafas de champanha, assomavam em companhia de tristes ternos
negros. No ar da manhã, sobre a praça, as andorinhas voejavam de cá para lá.
Solitária, preenchendo o espaço e limitando o céu,
a guilhotina parecia estender até o horizonte a sombra de seus braços erguidos,
entre os quais, muito longe, lá em cima, no azul da alvorada, via-se cintilar a
derradeira estrela.
Diante desta fúnebre aparição, o condenado
estremeceu. Depois, avançou resolutamente em direção ao cadafalso... Subiu as
escadas. Agora, a lâmina triangular brilhava sobre a negra estrutura, ocultando
a estrela. Sobre a prancha fatal, beijou, depois do crucifixo, uma mecha de
seus próprios cabelos, recolhidos durante os aprestos pelo abade Crozes. E,
depois de levá-los aos lábios, disse:
—Para ela!...
As cinco personagens se destacavam, em silhueta,
sobre o patíbulo. Naquele momento, o silêncio tornou-se tão profundo que um
ruído de um galho quebrado, à distância, sob o peso de um curioso, chegou
misturado a gritos e risos hediondos até o trágico grupo. Depois, ao soar a
hora cujo golpe ele não deveria ouvir, o Sr. de la Pommerais viu à sua frente,
do outro lado, o estranho experimentador. Este, com a mão pousada na
plataforma, o observava! Pommerais fechou olhos, concentrando-se.
Bruscamente, a báscula se moveu, o jugo caiu, o
botão cedeu e o brilho da lâmina despencou. Um terrível choque sacudiu a
plataforma. Os cavalos se agitaram ao cheiro magnético do sangue. O eco do
ruído ainda vibrava quando a cabeça ensanguentada da vítima fazia-se palpitar
entre as mãos impassíveis do cirurgião de Pitié[10],
tingindo-lhe de púrpura os dedos, os punhos e as roupas.
Era uma cara lúgubre, terrivelmente branca, com os
olhos abertos e absortos, as sobrancelhas retorcidas e ricto crispado: os
dentes se entrechocavam. O queixo, na parte extrema do maxilar inferior, havia
sido seccionado.
Volpeau inclinou-se rapidamente sobre aquela cabeça
e formulou, junto ao ouvido direito, a pergunta combinada. Conquanto inabalável
fosse este homem, o resultado o fez estremecer com uma espécie de terror frio:
a pálpebra do olho direito havia baixado, enquanto o olho esquerdo,
escancarado, o fitava.
Os cílios se separaram, como se por um resultado de
um esforço interior, mas a pálpebra não mais se levantou. Aquela fisionomia, de
segundo em segundo, tornou-se rígida, gélida, imóvel. Era o fim.
O doutor Vealpau devolveu a cabeça ao Sr. Hendreich
que, reabrindo o cesto, a pousou, como era o costume, entre as pernas do tronco
já inerte.
O grande cirurgião mergulhou a mão em um dos baldes
destinados à lavagem, que já começava, da guilhotina. Em torno dele, a
multidão, inquieta, se dispersava, sem reconhecê-lo. O médico enxugou as mãos,
sempre em silêncio.
Depois, a passo lento, com a fronte pensativa e
grave, dirigiu-se ao coche estacionado numa esquina da prisão. Enquanto subia,
viu que o furgão da justiça se afastava em trote em direção a Montparnasse[11].
[1] Edmond- Louis
-Antoine Huot de Goncourt (1822 – 1896), escritor francês.
[2] Prisão parisiense
que acolheu, dentre outros prisioneiros, a rainha Maria Antonieta.
[3] No século XIX, a
Rue de la Roquette abrigava, em cada um dos lados, uma prisão. A Grande
Roquette passou a encarcerar, a partir de 1851, os condenados que aguardavam a
execução da pena morte.
[4] Palácio onde
residia despachava o então imperador da França, Napoleão III. Foi destruído por
um incêndio em 1871. Suas ruínas foram demolidas onze anos depois.
[5] Dominique-Jean
Larrey (1766 - 1842), médico e cirurgião militar francês.
[6] Institut de France (em português,
Instituto da França) é uma instituição acadêmica francesa, fundada em Paris em
25 de outubro de 1795. Abarca várias instituições, dentre elas a famosa Académie des Sciences.
[7] Samuel Thomas von
Sömmerring (1755 – 1830), médico e anatomista alemão; Pierre Sue (1739 - 1816),
médico e cirurgião francês; Charles-Emmanuel Sédillot (1804 – 1883), médico
militar e cirurgião francês; Marie François Xavier Bichat (1771 – 1802), médico,
anatomista e fisiologista francês.
[8]
Jean-Sébastien-Eugène Julia de Fontenelle (1780 – 1842), médico e químico
francês.
[9] August Bérard
(1802 – 1846), cirurgião francês.
[10] Hospital
parisiense.
[11] Cemitério
parisiense.
Muito bom esse conto
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