METEMPSICOSE - Conto de Terror - Paulo Soriano
METEMPSICOSE
Paulo
Soriano
Os
primeiros momentos que se seguiram à cessação das minhas funções orgânicas
foram extremamente agradáveis.
Lembro-me,
perfeitamente, que, de alguma forma, eu podia vislumbrar uma radical mudança em
meu semblante. A minha face, há pouco contraída pela dor, deixava-se permear
pela languidez de um alívio absoluto e, aos poucos, assumia uma imobilidade de
morte.
De
alguma forma, eu flutuava sobre a equipe médica. Os homens de branco
curvavam-se sobre o meu corpo. Lutavam para trazer-me de volta à vida. Mas eu
não queria isso. Sentia-me maravilhosamente bem. Havia uma leveza que eu nunca
dantes havia experimentado. Eu me sentia tão leve e tão luminoso quanto a
própria luz. Ligth as the ligth.
Mas o deleite inefável – aquele prazer suave e
demorado – pôs-se a esmorecer. Algo que antecipava a dor cruciante se
insinuava em um ponto indefinido da substância etérea em que eu me havia
convertido. Supus que os médicos logravam êxito nas manobras de reanimação.
Eu
ainda estava ligado ao meu corpo. Um tênue filamento de luz opaca escorria de
meu corpo físico e, em volutas ascendentes, debilmente me cingia. Sabia,
perfeitamente, que aqueles momentos seriam decisivos e selariam o meu destino.
De súbito, veio-me um estremecimento. Toda
luminosidade que me circundava esvaeceu-se como fumo, e o que restou foi apenas
um negrume áspero e frio, uma imensidão de espaços tenebrosos, pesados como
chumbo, que turvavam o ambiente e penetravam em minha alma com a precisão de
bisturis. O que me restou de consciência mergulhou, então, num estado de
aflição indescritível, e, em fração de segundos, toda a minha vida
descortinou-se em seus olhos imateriais. Então vieram as memórias, aquelas
terríveis reminiscências de minha torpe existência, cravejada de sordidez e
vilania.
A
negra bruma que me circundava adquiria, aos poucos, um quê de consistência. O
que era sombra concentrava-se num corpo definido. Custou-me muito pouco a
reconhecer em que se recompunha aquela réstia abjeta. Ao meu lado, formava-se a
terrível silhueta de meu pai, mais asquerosa do que nunca; velava-me, pois, o
mesmo homem a quem sempre odiei e a quem pus fim à vida violentamente, sem dó,
para usurpar-lhe a maldita herança.
Com grande esforço, olhei para baixo. O liame
resplandecente que me ligava ao corpo físico, para a minha alegria, tornava-se
mais alvo e substancioso. Na verdade, eu já não mais queria a morte. A
repugnante presença de meu pai, naquele ambiente de treva, era-me insuportável.
Se era o meu destino de morte habitar as regiões mais sombrias que os demônios
podem conceber aos homens inescrupulosos, eu bem o aceitaria, resignadamente.
Mas, jamais a companhia de meu pai. Daria tudo para retornar ao meu corpo.
Lutaria até as minhas últimas forças, se preciso fosse.
À medida que meu pai se afastava de mim, a luz
voltava a me envolver. Vi, abaixo de mim, uma leve ondulação em meu peito.
Considerei que o meu corpo respirava novamente. Pouco a pouco, eu sentia que
voltava ao corpo físico.
A
prazerosa sensação de bem-estar, que eu voltara a experimentar há poucos
segundos, foi subitamente interrompida. Vi que uma sombra se acercava do meu
corpo material. Era o meu pai. Entre os médicos, ele voltava os olhos hediondos
para mim. E, com as mãos em garras, precipitava-se ferozmente contra o meu
peito, mutilando o meu coração.
– Deixe-me viver! – implorei.
Naquele
momento, um filamento iridescente prolongou-se da negra aura de meu pai e
enroscou-se no meu corpo, com a maleabilidade e força constritora de uma
serpente.
O
meu pai sorriu-me um esgar tenebroso, estendendo as garras e envolvendo-me a
garganta.
E,
à medida que meu pai se esforçava em meu pescoço material, obstruindo o pouco
que restava de minha respiração, o filamento de luz, que me ligava a minha alma
ao corpo físico, fenecia. Quando o liame não era mais que um tênue fio, tão
frágil quanto uma linha de costura, vi o meu pai arrebatá-lo com uma das mãos,
arreganhar os dentes e parti-lo com uma mordidela rápida e ruidosa.
Desesperado, eu me afastei cada vez mais de
meu corpo, impelido pelo vento que se elevava das regiões abissais, como se
fora um balãozinho que escapa das mãos de uma criança. E, assim, lenta e
melancolicamente, eu me distanciava de mim mesmo, penetrando mais e mais num
antro frio e repleto de treva e solidão.
De meu pai, como se fora o rabo de um demônio,
partiu um novo fiapo luminoso, que se uniu e amalgamou definitivamente ao meu
corpo físico.
Ao
longe, eu vi que os médicos davam por encerradas as manobras frenéticas.
Eles estavam satisfeitos. Haviam logrado
êxito. A vida restaurara-se naquele corpo ainda jovem.
A
última coisa que vi, antes que a espessura das trevas obscurecesse a minha
visão, foi o sorriso de esgar de meu pai desenhar-se numa face que um dia fora
minha.
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