A INSOLAÇÃO - Conto Fantástico Sobrenatural - Horacio Quiroga



A INSOLAÇÃO
Horacio Quiroga
(1878 – 1937)

O cachorro Old saiu pela porta e atravessou o pátio, com passo direito e preguiçoso. Deteve-se no limite do pasto, voltou-se para o monte, entrecerrando os olhos, o nariz vibrátil, e sentou-se tranquilo. Via a monótona planura do Chaco, com suas alternativas de campo e monte, monte e campo, sem outra cor que o creme do pasto e o negro do monte. Este cerrava o horizonte, a duzentos metros, por três lados da chácara. Para o oeste, o campo se alargava e se estendia em enseada, mas a iniludível linha sombria se destacava ao longe.

A essa hora matinal, o confim, ofuscante de luz, ao meio dia, adquiria repousada nitidez. Não havia uma nuvem, nem um sopro de vento. Sob a calma do céu prateado, o campo emanava tônica frescura, que trazia a alma pensativa, ante a certeza de outro dia de seca, melancolias de mais bem recompensado trabalho.

Milk, o pai do cachorro, cruzou por sua vez o pátio e sentou-se ao lado daquele, com preguiçoso queixume de bem-estar. Permaneciam imóveis, pois ainda não havia moscas.

Old, que mirava, havia pouco, a beira do monte, observou:

—A manhã está fresca.

Milk seguiu o olhar do cachorro e quedou com a vista fixa, pestanejando, distraindo.

Disse, após um momento:

—Naquela arvore ha dois falcões. Volveram a vista indiferente a um boi que passara, e, por hábito, continuaram mirando as coisas.

Entretanto, o oriente começava a purpurear-se em leque, e o horizonte havia perdido já sua matinal precisão. Milk cruzou as patas dianteiras e sentiu leve dor. Olhou seus dedos, sem se mover, decidindo por fim a cheirá-los. No dia anterior havia tirado um pique, e, recordando-se do que havia sofrido, lambeu longamente o dedo enfermo.

 —Não podia caminhar — exclamou, em conclusão.

Old não entendeu a que se referia.

Milk acrescentou:

—Há muitos bichos do pé.

Desta vez o cachorro compreendeu. E respondeu por sua conta, depois de largo tempo:

—Há muitos bichos do pé.

Calaram-se de novo, convencidos.

O sol saiu, e ao primeiro banho de luz, as pavas del mato lançaram ao ar puro o tumultuoso trombetear de sua charanga. Os cães, dourados ao sol oblíquo, baixaram os olhos, ducificando sua moleza em beato pestanejar. Pouco a pouco, a parelha aumentou com a chegada de outros companheiros: Dick, o taciturno preferido; Prince, cujo lábio superior, partido por um quati, deixava ver dois dentes, e Isondu, de nome indígena. Os cinco fox-terriers, estendidos e mortos de bem-estar, dormiram.

Ao cabo de uma hora ergueram a cabeça; pelo lado oposto do bizarro rancho de dois andares — o inferior de barro e o alto de madeira, com corredores e varanda de chalé — haviam percebido os passos de seu dono, que descia a escada. Mr. Jones, de toalha ao ombro, deteve-se um momento, ao canto do rancho, e mirou o sol, alto já. Tinha ainda o olhar morto e o lábio pendente, devido à sua vigília de whisky, mais prolongada que as habituais.

Enquanto se lavava, os cães se acercavam e lhe cheiravam as botas, meneando o rabo com preguiça. Como as feras amestradas, os cães conhecem o menor indicio de borracheira em seu amo. Afastaram-se com lentidão, a deitar de novo ao sol. Porém, o calor crescente os fez logo abandonar aquela sombra pela dos corredores.

O dia avançava como os precedentes de todo esse mês: seco, límpido, com quatorze horas de sol calcinante, que parecia manter o céu em fusão, e que em um instante quebrava a terra molhada em crostas esbranquiçadas. Mr. Jones foi à chácara, olhou o trabalho do dia anterior e retornou ao rancho. Em toda essa manhã não fez nada. Almoçou e subiu, para dormir a sesta.

Os trabalhadores voltaram, às duas, à carpição, não obstante a hora de fogo, pois os joios não deixavam o algodoal. Atrás deles foram os cães, muito amigos da cultura, desde que, no inverno passado, aprenderam a disputar aos falcões os insetos brancos que levantava o arado. Cada um se deitou sob um algodoeiro, acompanhando com seu ofego os golpes surdos da enxada.

No entanto, o calor crescia. Na paisagem silenciosa e cegadora do sol, o ar vibrava por todos os lados, ferindo a vista. A terra removida exalava um bafo de forno, que eles, com o mutismo de seus trabalhos, suportavam sobre a cabeça, envolta até a orelhas num lenço esvoaçante. Os cães mudavam a cada instante de planta, em procura de sombra mais fresca. Estendiam-se de comprido, mas a fadiga obrigava-os, para respirar melhor, a sentar-se sobre as patas traseiras.

Reverbera agora diante deles um pedaço pequeno de greda, que nem sequer se havia tentado arar. Ali o cachorro viu de pronto Mr. Jones, que o mirava fixamente, sentado sobre um tronco. Old se pôs em pé, meneando o rabo. Os outros também se levantaram, porém eriçados.

—É o patrão! — exclamou o cachorro, surpreendido pela atitude daqueles.
—Não, não é ele — replicou Dick.

Os quatro cães estavam juntos, grunhindo surdamente, sem tirar os olhos de Mr. Jones, que continuava imóvel, mirando-os.

O cachorro, incrédulo, ia avançar, mas Prince lhe mostrou os dentes:

 —Não é ele, é a morte.

O cachorro eriçou-se de medo e retrocedeu ao grupo.

—É o patrão morto? — perguntou ansiosamente.

Os outros, sem responder, romperam a ladrar com fúria, sempre em atitude de medroso ataque. Sem se mover, Mr. Jones se desvaneceu no ar ondulante.

Ao ouvir os alaridos, os trabalhadores haviam levantado os olhos, sem nada distinguir. Giraram a cabeça, para ver se tinha entrado algum cavalo na chácara, e de novo se dobraram.

Os fox-terriers volveram a passo ao rancho. O cachorro, eriçado ainda, adiantava-se e retrocedia com curtos trotes nervosos, e soube, pela experiência de seus companheiros, que quando uma coisa vai morrer, aparece antes.

—E como sabem que esse que vimos não era o patrão vivo? — perguntou.

—Porque não era ele — responderam displicentes.

 Logo a Morte — e com ela a mudança de dono, as misérias, as patadas — caia sobre eles! Passaram o resto da tarde ao lado de seu patrão, sombrios e alertas. Ao menor ruído, grunhiam. Mr. Jones sentia-se satisfeito pela sua vigilante inquietude.

Por fim, o sol se fundiu atrás do negro palmar do arroio, e na calma da noite prateada, os cães estacionaram em redor do rancho, em cujo andar superior Mr. Jones recomeçava sua vigília de whisky. À meia-noite ouviram seus passos, logo a dupla queda das botas no soalho de taboas, e a luz se apagou. Então os cães sentiram mais próxima a mudança de dono, e sós, a pretexto de que a casa dormia, começaram a chorar. Choravam em coro, transformando seus soluços convulsos e seco, como mastigados, num uivo de desolação, que a voz caçadora de Prince sustinha, enquanto os outros voltavam de novo ao soluço. O cachorro ladrava. A noite avançava, e os quatro cães de idade, agrupados à luz da lua, o focinho estendido e inchado de lamentos — bem alimentados e acariciados pelo dono que iam perder — continuavam chorando sua miséria doméstica.

Na manhã seguinte, Mr. Jones foi em pessoa buscar as mulas e as atrelar na carpideira, trabalhando até as nove. Não estava, no entanto, satisfeito. Além de nunca ter sido a terra bem rasteada, os discos não tinham fio, e com o passo rápido dias mulas, a carpideira soltava. Volveu com esta e afiou suas relhas; mas, um parafuso, em que, ao comprar sua máquina já havia notado uma falha, quebrou-se ao armá-la. Mandou um camarada a uma oficina próxima, recomendando-lhe o cavalo, um bom animal, porém ensolado. Alçou a cabeça ao sol incandescente do meio dia e insistiu para que não galopasse um momento. Almoçou em seguida e subiu. Os cães, que pela manhã não haviam deixado por um segundo a seu patrão, ficaram nos corredores.

A sesta pesava, abatida de luz e silencio. Todo o contorno estava brumoso, devido à cremação. Em redor do rancho, a terra branca do pátio, deslumbrada pelo sol a pino, parecia deformar-se em trêmulo fervor, que adormecia os olhos pestanejantes dos fox-terries.

—Não tem aparecido mais — disse Milk.

Old, ao ouvir aparecido, levantou as orelhas sobre os olhos. Desta vez, o cachorro, incitado pela evocação, pôs-se em pé e ladrou, pro- curando. Calou-se logo, com o grupo, entregue à sua defensiva caça de moscas.

 —Não venho mais — juntou Isondu.

—Havia uma lagartixa sob a raiz-grande — recordou Prince pela primeira vez.

Uma galinha, o bico aberto e as asas apartadas do corpo, cruzou o pátio incandescente, com seu pesado trote de calor. Prince seguiu-a preguiçosamente com a vista e saltou num repente:

— Vem outra vez! — gritou.

Pelo norte do pátio avançou só o cavalo em que o empregado havia ido. Os cães arquearam sobre as patas, ladrando com prudente fúria à Morte, que se acercava. O animal caminhava com a cabeça baixa, aparentemente indeciso sobre o rumo que ia seguir. Ao passar em frente ao rancho, deu uns tantos passos em direção ao poço, diminuindo progressivamente na crua luz.

Mr. Jones desceu; não tinha sono. Dispunha-se a prosseguir a montagem da carpideira, quando viu o camarada chegar inesperadamente a cavalo. Apesar de sua ordem, havia de ter galopado, para chegar a essa hora. Culpou-o, com toda sua lógica nacional, ao que o outro respondia com evasivas. Apenas livre e concluída sua missão, o pobre cavalo, em cujo arquear era impossível contar a pulsação, tremeu, baixando a cabeça, e caiu de costas. Mr. Jones mandou o camarada à chácara, com o rebenque ainda à mão, para não o expulsar, se continuasse ouvindo suas jesuíticas desculpas.

Os cães, porém, estavam contentes. A morte, que procurava seu patrão, havia se conformado com o cavalo. Sentiam-se alegres, livres de preocupação, e, em consequência, dispunham-se a ir para a chácara, atrás do camarada, quando ouviram Mr. Jones gritar por este, já longe, pedindo-lhe o parafuso. Não havia parafuso: o armazém estava fechado, o encarregado dormia etc. Mr. Jones, sem replicar, dependurou seu capacete e saiu em pessoa, em busca do utensílio. Resistia ao sol como um trabalhador, e o passeio era maravilhoso contra seu mau humor.

Os cães acompanharam-no, mas se detiveram à sombra da primeira alfarrobeira; fazia demasiado calor. Daí, firmes nas patas, o cenho contraindo e atento, viram-no afastar-se. Por fim, o medo da solidão pôde mais, e, com abatido trote, seguiram atrás dele.

Mr. Jones obteve seu parafuso e voltou. Para encurtar a distância, desde logo, evitando a poeirenta curva do caminho, marchou em linha reta para a chácara. Chegou ao riacho e se internou pelo sapezal, o diluviano sapezal do Saladito, que tem crescido, secado e abrolhado desde que há sapé no mundo, sem conhecer fogo. Os arbustos, arqueados em abobadas à altura do peito, entrelaçavam-se em blocos maciços. A tarefa de o atravessar, séria já em dia fresco, era muito dura a essa hora. Mr. Jones atravessou-o, não obstante, bracejando entre a falha estalante e poeirenta pelo barro que deixavam as enchentes, afogado de fadiga e acres exalações de nitrato. Saiu por fim e deteve-se na linde; porém, era impossível permanecer quieto sob esse sol e com esse cansaço. Marchou de novo. Ao calor crescente, que aumentava sem cessar, desde três dias atrás, agregava-se agora o sufocamento do tempo desfeito. O céu estava branco e não se sentia um sopro de vento. Faltava ar, com angustia cardíaca, que não permitia concluir a respiração.

Mr. Jones convenceu-se que havia passado o limite de sua resistência. Desde havia momentos, feria-lhe os ouvidos o pulsar das carótidas. Sentia-se no ar, como se dentro da cabeça lhe puxassem o crânio para cima.  Sentia vertigem ao mirar o pasto. Apressurou a marcha para acabar com isso de uma vez... e de pronto voltou a si e se encontrou em paragem distinta: havia caminhado meia quadra sem se dar conta de nada. Olhou para trás e a cabeça se lhe foi em nova vertigem. Entretanto, os cães seguiam atrás dele, trotando com a língua toda de fora. Às vezes, asfixiados, detinham-se à sombra de um esparto; sentavam-se precipitando seu arquejo, mas volviam ao tormento do sol. Afinal, como a casa estava próxima, apressaram o trote. Foi nesse momento que Old, que ia na frente, viu, atrás da rede de arame da chácara, Mr. Jones, vestido de branco, que caminhava para eles. O cachorro, com súbita lembrança, volveu a cabeça a seu patrão, e comparou.

—A morte! A morte! — uivou.

Os outros o haviam visto também, e ladravam eriçados. Viram que atravessara a rede de arame, e um instante julgaram que ia enganar-se; porém, ao chegar a cem metros, deteve-se, mirou o grupo com seus olhes celestes, e marchou para a frente.

—Que não caminhe depressa o patrão! — exclamou Prince.

 —Vai tropeçar com ele! — uivaram todos.

Com efeito, o outro, após breve hesitação, havia avançado, porém, não diretamente sobre eles como antes, senão em linha oblíqua e na aparência errônea, mas que devia levá-lo certo ao encontro de Mr. Jones. Os cães compreenderam que desta vez tudo se acabava, porque seu patrão continuava caminhando a passo igual, como um autômato, sem se ligar a nada. O outro chegava já juntaram o rabo e correram de costas, uivando. Passou um segundo e deu-se o encontro. Mr. Jones deteve-se, girou sobre si mesmo e caiu.

Os trabalhadores, que o viram cair, levaram-no às pressas ao rancho, mas tudo foi inútil; morreu sem ter voltado a si. Mister Moore, seu irmão materno, veio de Buenos Aires, esteve uma hora na fazenda, e em quatro dias liquidou tudo, voltando em seguida para o Sul. Os índios repartiram entre si os cães, que viveram desde então fracos e sarnentos, e iam todas as noites, com faminto segredo, roubar espigas de milho nas plantações alheias.

Tradução de autor desconhecido.
Fonte: “Ilustração Brasileira”, edição de 24 de fevereiro de 1922.

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