O TESTEMUNHO DO CADÁVER - Narrativa Clássica de Terror - Augustin Calmet
O TESTEMUNHO DO CADÁVER
Augustin
Calmet
(1672
– 1757)
O
bispo Santo Estanislau[1] comprou
a um gentil-homem, chamado Pedro, uma propriedade situada às margens do rio
Vístula, no território de Lublin, em proveito de sua igreja em Cracóvia. Pagou
o preço ao vendedor, solenemente, na presença de testemunhas, como era o
costume naquele país, mas sem reduzir a termo a compra e venda, pois, naquela
época, não se escrituravam tais negócios, senão muito raramente, na Polônia.
Estanislau tomou posse dessa propriedade pela autoridade do rei, e sua igreja dela
desfrutou pacificamente por cerca de três anos.
Nesse
meio tempo, Pedro, que havia vendido a propriedade, faleceu. O rei da Polônia,
Boleslau[2],
que havia concebido um ódio implacável contra o santo bispo, porque ele o repreendeu
livremente por seus excessos, procurando uma ocasião para prejudicá-lo,
instou os três filhos de Pedro, seus herdeiros, a reivindicar a propriedade que
seu pai havia vendido, sob o pretexto de não ter sido paga. Prometeu-lhes
apoiá-los no litígio, e fazer com que recobrassem a terra. Assim, os três fidalgos
citaram o bispo a comparecer perante o rei, que estava então em Solec, ocupado
em distribuir justiça em sua tenda de campanha, conforme o antigo costume do
país, na assembleia-geral da nação.
O
bispo, citado perante o rei, sustentou que havia comprado e pago pela
propriedade em questão. O dia estava começando se pôr, e o bispo corria grande
risco de ser condenado pelo rei e seus conselheiros. De repente, como se
inspirado pelo Espírito Divino, prometeu ao rei trazer, em três dias, Pedro, de
quem havia adquirido a terra, à sua presença, e a promessa foi aceita com
zombaria, como algo impossível de ser realizado.
O
santo bispo se dirigiu a Pictravin, onde
permaneceu em oração e jejum, com os seus familiares, por três dias. No
terceiro dia, ostentando as vestes pontifícias, acompanhado por seu clero e uma
multidão de pessoas, seguiu ao sepulcro de Pedro e ordenou que a pedra tumular
fosse levantada. Escavando o lugar, encontraram o cadáver descarnado e
corrompido. O santo ordenou ao cadáver que comparecesse perante o tribunal do
rei e prestasse testemunho da verdade. O defunto se levantou e foi coberto com
uma capa. O santo o segurou pela mão e o levou redivivo aos pés do rei. Ninguém
teve a ousadia de interrogá-lo. Mas ele tomou a palavra e declarou que, de boa-fé,
havia vendido a propriedade ao prelado, e que havia recebido o pagamento por
ela. Após o quê, ele repreendeu severamente seus filhos, que haviam acusado tão
maliciosamente o santo bispo.
Estanislau
perguntou a Pedro se desejaria permanecer vivo para fazer penitência. Ele
agradeceu e disse que não se exporia novamente ao perigo de pecar. Estanislau
reconduziu-o ao seu túmulo e, lá chegando, Pedro novamente adormeceu no Senhor.
Pode-se
supor que tal cena tenha um número infinito de testemunhas e que toda a Polônia
tenha sido rapidamente informada do sucedido. Mas o rei ainda mais se irritou contra o santo.
Algum tempo depois, matou-o com as próprias mãos, quando o santo saía do altar.
O bispo teve o corpo cortado em setenta e duas partes, a fim de que nunca mais
fosse reunido para dar-lhe o culto que lhe era devido, como ao corpo de mártir
da verdade e da liberdade pastoral.
Versão em português: Paulo Soriano.
Narrativa constante do Traité sur les apparitions des esprits et
sur les vampires ou les revenants de Hongrie, de Moravie, etc. (Tratado
sobre as aparições dos espíritos e sobre os vampiros ou redivivos da Hungria,
da Morávia etc.), de 1751.
[1]
Estanislau de Szczepanów (1030 – 1079),
bispo de Cracóvia, foi canonizado em 1253 pelo papa Inocêncio IV.
[2]
Boselau II (c. 1041 – 1081) foi rei da Polônia entre 1076 e 1079. Conta-se que,
excomungado por Estanislau, em razão de relações ilícitas que mantinha com uma
dama nobre, assassinou pessoalmente o prelado enquanto este celebrava a missa.
No mesmo ano do incidente, o rei foi deposto e exilado.
Comentários
Postar um comentário