O GAROTO ATORMENTADO POR DEMÔNIOS - Narrativa Clássica de Terror - Antonio de Torquemada
O GAROTO ARTORMENTADO POR DEMÔNIOS
Antonio de
Torquemada
(c. 1507 – 1569)
Vemos
muitas vezes que os demônios existem para atormentar e extenuar os homens, não
somente causando-lhe grande danos, senão também trazendo-lhes a morte, e de duas
coisas, que eu sei muito bem notórias, uma vos quero dar por exemplo.
Na
vila onde eu nasci e me criei, havia um homem honrado e letrado, o qual tinha
dois filhos, um dos quais poderia ter doze ou treze anos. O garoto fez uma travessura que irritou a sua
mãe de uma tal maneira que esta começou a oferecê-lo e encomendá-lo muitas vezes
ao Demônio, desejando que levasse o filho consigo.
Isto
aconteceu à dez da noite, que se fazia muito escura. E como a mãe não se cansava
de proferir aquelas maldições, o garoto, com medo, correu ao curral da casa e
ali desapareceu. E sumiu de um modo que, ainda que o procurassem com todo
cuidado, não o puderam achar. E disto ficaram os pais muito admirados, porque
as portas estavam cerradas e não havia por onde sair o garoto.
E
havendo, assim, passado das duas horas, estando já os pais fatigados, ouviram
um estrondo em uma câmara situada acima deles, e escutaram também o menino que,
com muita dor, parecia estar gemendo. Lá subindo, e abrindo a porta, que estava
fechada a chave, acharam-no tão maltratado que era a maior lástima do mundo. Além
de levar toda a roupa rasgada e reduzida a muitos pedaços, tinha o rosto, as mãos
e quase todo o corpo contundido, coberto por arranhões, como se produzidos por
espinhos. E ficara o menino tão desfigurado e deformado que, durante toda a
noite, os pais não descansaram em fazer o possível para curá-lo, dando-lhe todos
os benefícios de que se poderiam valer em seu benefício.
No
dia seguinte, quando o menino parecia haver recobrado o juízo, perguntaram-lhe
o que lhe acontecera durante a noite.
Ele disse que, estando no curral, havia visto, sobre si, uns homens
enormes, horrendos e assustadores. Estes, sem nada dizer, agarraram-no e o
levaram pelos ares com grande velocidade, e não há no mundo o que possa voar
tão rapidamente. Descendo a uns bosques muito cheios de espinhos, arrastaram-no,
por meio deles, de uma parte e para outra. Puseram-no, assim, numa situação
que, por fim, haveria de matá-lo. Mas ele teve o tino de encomendar-se, com
grande fé, à Nossa Senhora, para que o valesse. Naquele instante, aquelas
visões, que lhe haviam arrastado pelos ares, meteram-no pela janela pequena da câmara
e ali o deixaram, retornando para onde haviam vindo.
Conheci
este garoto muito tempo depois, e da aflição que passou ficou surdo e abobalhado,
de maneira que nunca voltou a ser o que era dantes, e pesava-lhe que
perguntassem ou trouxessem à memória aquilo por que havia passado.
Versão em
português: Paulo Soriano.
Narrativa
constante do Jardín de Flores
Curiosas, 1575.
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