A ARMADILHA DA SOLIDÃO - Conto de Horror - Davi M. Gonzales
A ARMADILHA DA
SOLIDÃO
Davi M. Gonzales
(São Caetano do Sul/BR)
(Conto finalista
do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)
Vivemos, agimos e reagimos uns com os
outros; mas sempre, e sob quaisquer circunstâncias, existimos a sós. Os
mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos.
Aldous Huxley —
As portas da percepção, 1954.
As pessoas queixam-se da solidão.
Acreditam conhecer as maneiras pelas quais uma alma se esvazia, tornando-se
inerte. A pior das solidões, entretanto, é justamente a das almas desejosas de
vida e que são amputadas precocemente para apenas vegetar, impotentes na
corrente dos acontecimentos.
Naqueles dias, fui chamado de a
grande promessa e, quando me graduei no curso de psicanálise aplicada, meus
mestres criaram uma expectativa sem precedentes sobre a tese que eu defenderia.
E realmente seria um trabalho inédito e brilhante, pensado e preparado por
longos meses. Meu brilhantismo nessa área concedia-me a rara faculdade de
literalmente adivinhar os pensamentos e reações das pessoas, mesmo
conhecendo-as apenas superficialmente. E com toda a certeza, essa habilidade
seria dispensável para compreender que seria taxado de louco ao revelar
a tese que preparava...
Louco? Pois bem, podemos discorrer um
pouco a respeito da loucura: conceitualmente, a sanidade depende apenas do referencial.
De quem observa e percebe diferenças nos padrões de comportamentos e valores.
Ser diferente é ser louco. Iguais é o que se espera que sejamos.
Parece simples?
Não se engane.
Existem
procedimentos clínicos que visam diagnosticar os diversos tipos de doenças mentais.
São contudo imprecisos e levam para os centros de tratamento muitas pessoas
sãs, que acabam recebendo terapias inúteis e muitas vezes até cruéis. O método
por mim proposto era completamente seguro, tanto no diagnóstico como na definição
do tratamento a ser aplicado. E para comprovar essa minha tese, o primeiro
passo seria levantar as estatísticas e atestar definitivamente os enganos e os
danos causados pelos métodos convencionais. Esse, aliás, foi o problema
principal com o qual me deparei: todos as informações são sigilosas, já que
podem comprometer as instituições e os profissionais envolvidos.
Então surgiu Susanne: jovem, bonita e
assistente do diretor, o célebre doutor H.P. Elioth, uma autoridade na pesquisa
e tratamento das doenças mentais. Susanne era profissionalmente medíocre, mas
esperta o suficiente para ajudar-me com os elementos que eu tanto necessitava.
Em pouco tempo nos tornamos namorados e as informações começaram a surgir.
Após dois longos meses tudo estava
pronto e poria em prática a última fase do projeto: iria ao sanatório e
provocaria minha própria internação. Convenceria o renomado especialista da
minha indiscutível loucura e, dessa forma, desbancaria todos os métodos
utilizados — o golpe final nas antigas concepções — e depois, triunfalmente,
mostraria a maneira correta de se fazer. Seria um marco na história do
tratamento das doenças mentais. Seria reconhecido por toda a comunidade
científica.
Tomei então algumas providências: tratei
de mudar o visual — uma precaução que visava dificultar meu reconhecimento, na
eventualidade de encontrar algum colega. Preparei também uma procuração junto a
meus familiares, já que viviam no exterior, autorizando Susanne a tomar as
decisões de cunho familiar em relação ao meu tratamento — pensei nisso como uma
precaução para o caso de ter dificuldades em sair do sanatório. Então, tive que
explicar a ela que faria uma espécie de experimento prático. Fiquei surpreso
com sua reação: imediatamente saiu em defesa do Dr. Elioth, temerosa que isso
pudesse desacreditá-lo, prejudicando sua carreira. Foi difícil convencê-la e
muito a contragosto ela disse que ajudaria.
Liguei e marquei um horário. E logo me
vi diante daquele médico, olhos penetrantes, fala calma e compassiva. Tracei
alguns sintomas que pudessem ser diagnosticados como algum tipo de
esquizofrenia: falei das vozes que costumava ouvir, das estranhas perseguições
e de como era permanentemente vigiado. Sentia-me apreensivo com aquela
situação, mas era confiante o suficiente para manter o controle. O mais difícil
já havia passado e, agora, voltava a comportar-me normalmente — deixava de lado
as encenações e aguardava as conclusões brilhantes dos psiquiatras que
acompanhavam meu caso.
Esporadicamente, Susanne me visitava e
trocávamos algumas palavras, com muita discrição. Passados alguns dias, avaliei
que tudo corria exatamente como eu havia delineado — logo teria meu trabalho
concluído e sairia dali. Até então não contava com a pequena turbulência
que se apresentaria. Turbulência? Não sei se posso chamar exatamente de
turbulência o que houve naquele dia, mas certamente foi o início de tudo.
Aguardava pacientemente minha sessão
semanal com o analista e me encontrava sozinho na sala, pois o doutor estava
atrasado. Mas quem entrou pela porta não foi o médico e sim um dos pacientes —
Jeremias. Naquela manhã, notei que estava muito diferente — trazia no rosto um
estranho ar de triunfo... Seus olhos brilhavam e suas vestimentas eram também
muito diferentes do habitual: usava o terno e gravata, tinha os cabelos
aparados e muito bem penteados com gel, além de um barbeado impecável.
Disfarcei a surpresa e em tom amigável comentei que ele estava muito alinhado.
A princípio, Jeremias abriu um sorriso
largo, para logo em seguida demonstrar certo nervosismo:
— Bom que notou meu caro. — Depois de
pensar por alguns segundos, continuou: —Certamente já ouviu falar dos kamikazes
japoneses. Sabia que quando saíam para a última batalha, traziam por baixo do
uniforme sua melhor roupa, aquela com a qual iriam morrer?
Um frio percorreu minha espinha e
simultaneamente olhamos, eu e Jeremias, para a larga janela aberta bem a nossa
frente. Estávamos no oitavo andar. Ele correu em direção à janela. Eu pulei e
agarrei seus pés. Foi tudo muito rápido: Jeremias era forte e desvencilhou-se
com facilidade.
Cheguei à janela ainda a tempo de
assistir sua queda livre... Meu pavor foi interrompido apenas pela fisgada que
senti no ombro esquerdo — dois enfermeiros acabavam de entrar na sala e
certamente não presenciaram a cena toda. Quando acordei, estava em uma sala do
sanatório onde nunca havia estado antes. A camisa de força incomodava e logo
surgiu o médico com seu bloco de notas.
Não tive escolha, contei tudo. E a única
resposta que obtinha era claro ou eu entendo. Eu sabia bem como
era aquilo: o médico concentrava-se apenas nas reações do paciente — o
que dizia era totalmente irrelevante. Não sei por quanto tempo fiquei isolado
naquela sala. Foram dias de desespero e solidão, e só pensava em encontrar uma
saída. Pensava também em
Susanne. Por que não vinha? Estava preparada para uma
emergência desse tipo — eu havia planejado tudo...
Um dia Susanne
veio. Estava acompanhada do Dr. Elioth e pediu, docemente, que não me
preocupasse com nada — cuidaria de mim. Quando deu as costas eu gritei, mas ela
apenas sorriu e se foi. Jamais esqueci aquele sorriso... Jamais esqueci o
pânico que me tomou conta, quando percebi que me preparavam para uma cirurgia.
Conhecia alguns dos procedimentos. E enquanto ia perdendo a consciência ouvi um
dos médicos referindo-se à Lobotomia. Lobotomia — o mais cruel dos
tratamentos. Consiste na remoção cirúrgica dos canais nervosos que unem os
lóbulos direito e esquerdo do cérebro. Foi usada durante algum tempo em
epiléticos e loucos perigosos e logo abandonada, por ser muito arriscada.
Quando acordei, sentia-me muito bem. Uma
incrível sensação de leveza no corpo. Absolutamente nenhuma dor, nenhum
sentido, nada — era como se o corpo flutuasse acima da cama. Aos poucos fui
recuperando a audição. E tudo o que consegui perceber, dali por diante, foram
as vozes das pessoas que entravam na sala. Não havia nenhum outro sentido além
da audição, não conseguia saber se continuava respirando, ou em que posição me
encontrava na cama.
Não sei precisar quantos daqueles
terríveis dias se passaram, até que em uma ocasião reconheci a voz de Susanne.
Acompanhada pelo Dr. Elioth, ela ria e fazia gracejos e, aproveitando a
ausência dos enfermeiros, transaram ali mesmo na minha frente — podia ouvir
suas respirações ofegantes... Após esse incidente, nunca mais apareceu.
E eu, continuei exatamente no mesmo estado. Apenas ouvindo os dias se
passarem.
É esta a minha solidão. Algo muito
próximo da morte, onde o tempo é cruelmente dilatado, para que eu possa
relembrar todos os acontecimentos que me levaram ao fim. E você, caro leitor?
Acredita realmente saber o que é a solidão?
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