A COISA NA CELA TEMPORÁRIA - Conto de Terror - Pedro Pantoja & Mephisto
A COISA NA CELA
TEMPORÁRIA
Pedro
Pantoja & Mephisto
— Alô? Polícia?
— Positivo – uma voz de mulher respondeu do outro
lado da linha.
— É o seguinte: estou aqui na festa junina do
colégio Crianças do Amanhã. Aqui em São Silício , distrito da cidade de Mar Azul.
— Continue. Estou anotando tudo – interrompeu a
policial.
— Certo. Tem um homem aqui que está armado. Parece
estar muito alcoolizado e brinca com uma arma. Falou que ia matar quem entrasse
em seu caminho ou quem tentasse sair. Mande algum policial aqui para nos
socorrer.
— Qual a rua?
— Rua Principal, número 202. No centro mesmo.
— Ok. Está registrado. Em breve chegará uma viatura
policial.
— Obrigada.
A diretora da escola desligou o telefone público e
foi para a cantina.
O homem bailava no centro do pátio onde se realizava
a festa junina da escola. Ele portava um revólver de calibre trinta e oito.
Apontado para baixo. Contudo, vez por outra o revólver acompanhava seus gestos
e era apontado para várias direções diferentes.
— O que há com vocês? – o homem perguntou enquanto
olhava todos, depois de terminar uma sessão de tosse aguda. — Eu quero que
liguem de novo o som. Esse som de forró, eu gosto! É muito bom andar! É muito
bom dançar!
O DJ se mexeu e religou o som. As crianças choravam.
Os pais, atônitos, tentavam acalmá-las.
— Ninguém vai sair. Senão, eu mando chumbo — disse. E
olhou para a arma, tossindo.
As pessoas do local estavam extremamente nervosas. O
homem, que vestia uma calça jeans desbotada
e uma camiseta verde cambaleou, mas não caiu.
— Quero ver as crianças dançando!
Ninguém se moveu. O homem arrotou e deu dois tiros para
o alto, furando o teto de aço e deixando duas goteiras escoarem a água da chuva.
A gritaria foi geral. Muitos se abaixaram.
— Caralho! Dancem para eu ver!
Algumas professoras tomaram a iniciativa e começaram
a dançar. Eram quatro professoras. Rodavam nos próprios eixos, davam os braços
e voltavam a rodar nos próprios eixos. O homem deu mais três tiros para o alto,
abrindo novas goteiras no teto da escola. As professoras pararam de dançar e se
afastaram. O som não estava muito alto. As bandeirolas flanando no ar. Os
galhos secos representando o sertão. E o homem desconhecido tossindo no salão.
— Quero ver mais gente dançando, porra!
Seus olhos continham o mal. Ele dançava ao som do
forró. Um sorriso macabro estampava seu rosto largo. A barba por fazer. Os
lábios grossos.
— Você! – O homem apontou a arma para uma mulher que
segurava o filho vestido de vaqueiro. A mulher exasperou-se com a escolha do
homem. Balançava a cabeça em sentido negativo.
— Ponha seu moleque para dançar.
— Não, não... — ela gaguejava. —Abraçou o filho,
protegendo-o do homem.
O estranho tossiu rapidamente e falou:
— Não, sua vadia? Então venha você e tire a roupa.
Ela também se recusou. Ele apontou a arma para ela e
puxou o cão. A mulher começou a chorar. Todos olhavam a cena. Abismados.
Nervosos. Preocupados.
— Polícia! Largue a arma no chão e ponha as mãos na
cabeça!
O homem virou a pescoço para a porta de entrada,
tossiu e riu. Viu dois policiais apontando suas armas para ele.
— Eu vou matar essa vadia aqui e depois cuido de
vocês.
— Largue a arma. Será melhor para você! – gritou um
policial em tom compassivo.
— Melhor é o cacete!
O homem puxou o gatilho e a arma clicou secamente. Puxou
mais duas vezes e praguejou. A mulher gritou e os policiais avançaram no homem
como panteras. Jogaram-no ao chão. Ele gritando de raiva e tossindo muito. Em
movimentos rápidos, afastaram a arma dele e o algemaram.
— Ok. Acabou a festa para você.
Os policiais o levantaram e já estavam saindo da
festa quando o homem respondeu:
— Acabou? A festa está só começando! – disse rindo,
enquanto era carregado para a viatura.
Os policiais saíram sob aplausos das pessoas
presentes na festa junina.
— Entra aí, machão – falou o sargento Rojas.
O homem entrou no banco de trás, algemado, e o
policial fechou a porta. O outro policial, o cabo Dirlei, abriu o tambor da
arma e conferiu as munições.
— Sargento, o valentão aí está sem munição. Gastou
todas. Por isso, não atirou na mulher.
O cabo ejetou
as cápsulas e deixou a arma com o tambor aberto em seu colo.
— Vamos para a delegacia — completou o sargento.
O para-brisa da viatura estava imundo. As paletas
sibilavam, mesmo com a chuva que caía. Também era audível o som do motor do
limpador de para-brisas. Havia um trincado na parte esquerda do vidro, se visto
de dentro para fora.
No caminho, o sargento chamou a central pelo rádio para
informar o ocorrido e foi ordenado a ir ao DPO pegar outro cabo e depois ir à
delegacia. No primeiro, iriam ficar um sargento e um soldado. Então eles
rumaram para o hotel — que é como os policiais chamavam o DPO — ainda com o
meliante no banco traseiro da viatura.
O plantão naquela noite estava composto pelos
seguintes policiais: sargento Rojas, sargento Iuri, cabo Dirlei, cabo Nelson e
soldado Sá. Apenas uma viatura estava disponível para aquele setor policial. O
próximo DPO, só na cidade de Mar Azul, a pelo menos 22 quilômetros .
— Você tem nome? — perguntou o sargento no banco do
carona da viatura.
O homem ficou quieto. Somente tossindo baixo.
— Tem porte de arma? Trabalha em quê? — continuou o sargento.
O homem continuava quieto. Ele estava de cabeça
baixa. As mãos para trás.
— Tem endereço fixo? – o motorista da viatura falou.
Nada de resposta.
— Não tem problema. Agora ele passará a ter: o
presídio estadual.
O sargento
olhou fixamente para o homem no banco de trás e completou:
— Pode ficar tranquilo, sua vaga está garantida lá!
O outro continuava de cabeça baixa. O rádio policial
emitiu um som de estática. E os policiais ouviram a central chamando aquela
viatura. “Viatura 2544, central chamando”.
— Prossiga, central, viatura 2544 na escuta – falou
o sargento, enquanto apertava um botão no microfone.
— Ok. Informando a esta “vtr” que a ponte da
travessa Azul caiu devido às fortes chuvas e que esta equipe não poderá chegar
à delegacia. Deverá permanecer com o preso na cela do DPO e esperar contato
desta central, quando a ponte estiver restabelecida ou houver algum desvio
preparado.
— Que merda, hein? – falou o cabo, antes de o
sargento responder pelo rádio.
— Positivo central. O detido ficará custodiado no
DPO de São Silício e, assim que a central fizer contato informando da liberação
da passagem, a equipe de plantão levará o detido às autoridades competentes.
— Qsl! – respondeu o rádio.
— Qsl e em qap permanente – finalizou o sargento
Rojas.
A viatura se aproximava do destacamento policial e o
homem que estava algemado no banco de trás ainda tossia insistentemente.
— Está nervoso, cara? – perguntou o cabo.
O meliante
respondeu com outra tosse.
— Deixe esse cara quieto – completou Rojas. Somente
agora o sargento percebeu que um cheiro pútrido emanava daquele homem.
— Por que ele não para de tossir, sargento?
— Deve estar gripado. Essa chuva forte gripa
qualquer um. Até bandido.
Os três seguiram quietos, a não ser pela tosse do
outro no banco de trás. Alguns quilômetros e o carro chegou ao DPO. Os dois policiais
desceram e Rojas abriu a porta de trás. Retirou o homem, ainda algemado. E o
acompanhou até o xadrez do setor policial. Ao ver o homem sendo levado, pelo
sargento, para a cadeia do destacamento, o cabo falou:
— Aproveite a estadia!
O homem virou o pescoço e olhou para ele, sério.
— Guarde a viatura, Dirlei — ordenou o sargento.
Quando o Rojas terminou de falar o nome de seu
colega de profissão, um raio rasgou o céu, iluminando a escuridão, e atingiu o
para-raios do prédio. Dirlei julgou ter visto outro homem no lugar daquele que
estava algemado. Um homem desfigurado, de queixo grande, olhos fundos e brancos
e pele azulada. Sem falar em uma extrema envergadura na coluna, saliente como
uma corcunda. Quando a iluminação do raio cessou, Dirlei viu que o homem, que
era conduzido pelo sargento, era realmente aquele que haviam detido na festa
junina, há alguns minutos atrás. O homem voltou-se para frente outra vez e
seguiu o caminho designado pelo policial que o levava. Entraram em um corredor,
dentro do DPO, e seguiram por uma porta de madeira. Passaram pelo sargento Iuri
e pelo soldado Sá. O jovem soldado estava sentado atrás de uma mesa de madeira,
de frente para a porta da rua, e encarou o preso nos olhos por segundos. Nenhum
policial viu — a não ser o próprio soldado — que os olhos do homem, que acabara
de chegar, refulgiram em um tom mortífero. Ígneos. As íris haviam sumido em
questão de segundos, dando lugar a duas brasas assustadoras, e rapidamente
retornaram ao normal. O sargento estava mexendo em uma pequena televisão preto
e branco, que havia desligado abruptamente depois do raio que atingira o prédio
da polícia. Deu uma olhada nos dois e voltou-se para o aparelho. Mesmo depois
que o meliante passou pela sala do plantão, Sá permanecia hipnotizado. No final
do prédio, o homem, que era conduzido pelo policial Rojas e ainda estava
tossindo muito, viu uma cela. Nas barras da grade da cela estava gravada em
metal forjado a frase: Cela Temporária.
Um outro policial, o cabo Nelson, se aproximou.
Portava um cacetete de madeira no coldre do cinto.
— A ponte caiu, não é? Escutei no rádio. – Abriu lentamente
a porta da cela, as chaves fazendo um barulho agudo. Eram várias chaves. Pelo
menos sete.
— Caiu. Este cidadão vai dormir aqui hoje à noite e
amanhã, se pudermos, o levaremos para a delegacia.
O cabo olhou o homem e falou:
— Se comporte, ouviu? Outra coisa: você está
precisando urgente de um banho.
O homem nada respondeu. Apenas tossiu. O sargento
empurrou o homem, e o cabo começou a fechar a cela. A cela possuía grades por
toda sua extensão. As barras eram grossas e enferrujadas. O cubículo estava
vazio até então. E, do lado de fora, era possível ver o que a pessoa, que lá
estivesse, fazia. O homem, já dentro da cela, sentou-se no fundo, ao lado de
uma poça de água que era formada por uma infiltração no teto e ficou tossindo,
enquanto os policiais se retiravam. Na cela havia somente jornais no chão e um
orifício em que os detidos faziam as suas necessidades fisiológicas. Era
conhecido como “boi”. Havia uma lâmpada, pouco potente, inacessível ao preso,
no teto mofado, coberto de estrias limosas. Os policiais, antes de deixarem a
sala, olharam o bandido e somente puderam vê-lo do pescoço para baixo. Seu rosto
estava escondido na penumbra que se fazia pela posição da luz incandescente.
Ouviram outra tosse e saíram.
Na sala do plantão, o sargento Iuri explicava ao
cabo Dirlei e ao soldado Sá que o raio danificara as linhas telefônicas e que
somente o rádio policial estava funcionando naquele momento. Pelo menos até a
bateria de carro que alimentava o rádio descarregar. A pequena televisão havia
se perdido, também. Rojas, que era o mais graduado naquele DPO, chegou à sala juntamente
com o cabo Nelson e falou que o plantão teria que ficar alerta, pois havia um
preso na cela temporária do setor. Os presentes concordaram.
— Eu vou descansar um pouco e dentro de uma hora
levanto. Cada um fará uma hora de sono. Os outros quatro estarão no plantão. São
sete horas.
— Qualquer problema, chamaremos o senhor, sargento –
falou o jovem policial Sá, olhando fixamente para a chuva através da porta de
madeira que caía fortemente.
O sargento concordou e o silêncio imperou por alguns
segundos. Irrompendo a quietude, a tosse fúnebre e insistente do preso nos fundos
do DPO. Antes de se retirar para o alojamento, o comandante falou, apontando o
polegar por cima do ombro direito:
— Nosso amigo
aí está doente.
As horas transcorreram rapidamente. Quase todos os
policiais já haviam dormido, mas não o soldado Sá. Ele refutara a hipótese.
Preferiu ficar fumando dentro da viatura. A primeira rodada de descanso, então,
havia-se completado.
*
O preso estava na escuridão da cela, agora deitado.
Tossia insistentemente. Ansiou vomitar por diversas vezes. Os olhos fixos dentro
das trevas. O pensamento no soldado Sá. Este saíra da viatura. E falara para o
sargento Iuri que iria dar uma olhava no preso. O cigarro frouxo nos lábios. O
sargento, parou de ler o jornal e o inquiriu sobre a arma.
— Sá?
O soldado, que estava quase saindo da sala principal,
o olhou, sem susto.
— Não vai deixar a arma? Você sabe que não pode
entrar na carceragem com arma.
— Claro – respondeu o soldado, que retirou sua
pistola e deixou com o superior.
— Agora pode ir – informou o sargento.
— Mas, antes, quero a chave da cela. O preso pode
estar passando mal. Já que eu vou lá, não custa ir com a chave, caso tenha que prestar
socorro.
— Tudo bem. Aqui está. – Iuri ofereceu o molho de
chaves ao soldado e completou:
— Dirlei foi fazer um lanche. Você o conhece. É um
comilão de mão cheia. Mesmo nessa tempestade, e ele saiu para comer. Nelson e
Rojas estão descansando. Agora o descanso será de dois a dois.
O soldado concordou com a cabeça e saiu da sala.
Sá caminhou em
direção à cela, situada nos fundos do destacamento policial militar. O boné
policial estava na mão esquerda. A mão direita estava livre. Oscilava de acordo
com o balanço do braço. Sá já escutava o homem tossindo. Entrou na carceragem e
o viu deitado. Aproximou-se da grade e pôs as duas mãos nela. O preso levantou-se
lentamente e caminhou em direção à grade. Quando o policial pôde ver seu rosto,
não se surpreendeu, mas viu que estava alvo. Extremamente branco. Os olhos
fundos. Algumas feridas já lhe assomavam na face. Ele, então, aproximou-se da
grade, também. Os dois se olhavam, frente a frente, pela grade enferrujada. As
mãos do homem preso estavam perdendo a pele. As unhas haviam caído. Os pelos
também.
— Preciso de você, agora – sussurrou o homem, depois
de tossir baixinho.
O soldado Sá balançou a cabeça afirmativamente. Não
falou nada.
— Entre aqui — falou o homem de camiseta verde.
O entrechoque de chaves fez bastante barulho, porém
o preso iniciou uma sessão de tosse extremamente forte, impedindo, assim, que o
sargento, na sala, escutasse algum ruído metálico e viesse ver por que motivo o
soldado estava abrindo a carceragem.
O soldado entrou.
Neste preciso momento, ouviu-se um chiado seco e a luminosidade
da cela encolheu-se à semiescuridão. Lá não estava o preso temporário. O que Sá
via era a réstia de homem desfigurado, com uma protuberância disforme nos
ombros e um queixo imenso. Na penumbra, as íris daquela criatura voltaram a refulgir
e a cintilar como ferro em brasa. E assim permaneceram, cada vez mais vibrantes
e intensas, enquanto o policial, atônito, dava um passo para trás.
Mas não deu mais que um passo.
A coisa avançou. Puxou-lhe a cabeça e encostou o seu
rosto ao do soldado. O policial, antes de gritar, viu que os olhos da coisa
perdiam a incandescência à medida que a luz da cela retomava a sua luminosidade
costumeira. Mas não sabia que, agora, eram os seus olhos que se enchiam de
brasas demoníacas. Aquela foi a última visão que Sá teve em sua breve e insignificante
existência.
*
Tendo ouvido o grito do colega, o sargento correu à
carceragem.
Encontrou o soldado de pé, junto ao prisioneiro, que
estava estendido no chão.
— Ele está morto?
O soldado tossiu seca e agudamente.
— Acho que sim – disse. E voltou a tossir.
— Que droga! — praguejou o sargento. — Era só o que
me faltava. Em vez de um meliante, tenho agora um cadáver. O cara estava mesmo
mal. Veja, parece que já estava morto há vários dias. Sente o cheiro? Esse cara
parece que está em decomposição há muito...
Não pôde concluir a frase. As mãos do soldado Sá estavam
agora em seu pescoço e exerciam sobre ele uma pressão extraordinária.
Ouviu-se novamente o chiado, seguido de um estalido.
Desta vez, porém, a lâmpada da cela explodiu, espargindo minúsculos fragmentos vítreos sobre chão molhado.
Enquanto morria, o sargento via que as feições do soldado
se alteravam drasticamente. Seu queixo crescia. Sua coluna envergava-se, fazendo
eclodir, sobre a espádua direita, uma intumescência tenebrosa. E, nos olhos, cada
uma das íris, engolfando e estorcendo as pupilas escarlates, reduziam-se a dois filetes de lâmpadas elétricas candentes, também prestes
a explodir.
*
Já amanhecia quando a coisa que habitava o corpo do soldado
Sá resolveu que era hora de comunicar-se com a central pelo rádio da viatura.
— Viatura 2544 chamando a central.
Seguindo-se a um breve um ruído de estática, a coisa
ouviu uma voz em resposta:
—Central na escuta. Tenente Vânia falando.
— Tenente, é uma emergência. Quatro policias mortos
na DPO de São Silício. Três baleados e um estrangulado. Mas logo serão cinco.
A coisa não esperou que a central respondesse. Deligou
o rádio. Após um prolongado acesso de tosse, deslizou o corpo ensanguentado do
cabo Dirlei para fora da viatura, assumiu a direção e partiu, tranquilamente,
para o minúsculo hospital distrital.
*
— Há quanto tempo ele está assim, enfermeira Fátima?
— Há vários dias. Parece em coma profundo. Mas, às
vezes, abre os olhos e tem breves convulsões, que, por mais estranho que possa
parecer, acho de que lhe são prazerosas. Como se fossem orgasmos. Já contamos
seis frêmitos deste tipo.
— Pobre coitado. Paralisado há mais de trinta anos...
— Às vezes, tenho a impressão de que ele não está
aqui. Que o seu espírito se afasta do corpo e vaga por aí. Mas, quase sempre, acho
que ele nos vê e nos escuta.
— Acha que esta coisa atrofiada e catatônica retém
ainda alguma consciência?
— Creio que sim, doutor. Mas, melhor seria que não
tivesse. Onde há consciência, há memória. E eu não queria ter as recordações
desse homem.
—Dizem que ele era um facínora.
A enfermeira abaixou a vista. Tentou olhar para o
homem encolhido no leito de hospital, mas não conseguiu. Sua cabeça permaneceu
inclinada, mirando desoladamente o chão.
O médico residente, um tanto constrangido, entendeu.
Era verdade. Aquele homem era um celerado e, de alguma forma, atingira a enfermeira
Fátima no passado.
—Dizem que ele é o meu... meu pai — disse a mulher,
sem erguer a vista. — Mas eu não posso acreditar nisto. Prefiro cuidar dele acreditando
que é um estranho.
A conversa entre o residente e a enfermeira foi subitamente
interrompida. Um policial militar acabava de entrar no quarto.
—Precisamos conversar, doutor — disse ele, tossindo.
— Uma emergência?
— Sim. Uma emergência. Mas antes, responda-me,
doutor: já viu alguém morrer?
— Sim — respondeu o médico, intrigado com a pergunta.
— É algo rotineiro em minha profissão.
— Mas já viu alguém ser assassinado?
— Creio que isto é bem mais comum na sua profissão,
não é mesmo, soldado? — redarguiu o médico, secamente.
O soldado tossiu rapidamente. Respirou fundo e
prosseguiu:
—Pois agora, doutor, você vai ter a oportunidade
ímpar de assistir a um homicídio.
O médico não teve tempo de piscar um olho.
O policial, com a rapidez de um pistoleiro de filme
de faroeste, puxou o revólver do coldre, apontou para a enfermeira e, numa sucessão
de tiros certeiros, quase esvaziou o tambor. Depois, estourou os miolos com a
bala que restara.
Durante a chacina, o paciente experimentava breves
convulsões. Passados os frêmitos deleitosos, ele abriu olhos. Ninguém — a não
ser o médico, subjugado pelo medo e pelo assombro, encolhido no umbral da porta
— viu que os olhos do homem monstruoso refulgiram em um tom mortífero. Ígneos. As íris haviam sumido em questão de segundos, dando
lugar a duas brasas assustadoras, e rapidamente retornaram ao normal.
O médico, prostrado, viu — ou pensou que viu — um
esboço de sorriso sardônico na face daquela criatura grotesca. Um homem
paralisado, desfigurado. Tinha o queixo grande, olhos fundos e pele azulada. O rosto
revirava-se para o lado, quase tocando uma corcova medonha, que irrompia por sobre o ombro direito.
“Sim — pensou a coisa, após retornar à cela
temporária daquele corpo monstruoso —, a festa está apenas começando...”.
Set. 2006/jan. 2020
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