O CUCO - Conto Fantástico - Daniela Marino
O CUCO
Daniela Marino
(Santos/BR)
(Conto finalista
do I Concurso Literário “Contos Grotescos” – Prêmio Edgar Allan Pöe)
Onze badaladas e um susto. É a segunda vez que o cuco resolvia funcionar
desde que o trouxera para casa há mais de dois anos. Sempre odiei este relógio,
desde quando minha avó era viva.
Curioso pensar que ela se fora exatamente às onze horas da noite de um
dia 11 de novembro: 11 do 11 às onze horas.
Agora, olhando para o imponente relógio, eu tento me lembrar como foi
que acabei ficando com este trambolho no meio da minha sala.
Nunca acreditei nessas estórias de espíritos, mas já tinha ouvido falar
de relógios que paravam de funcionar quando seus proprietários morriam. Até aí,
nada de mais, se não fosse o fato de que o cuco da minha avó não só havia
parado de tocar, mas que todo dia onze de novembro às onze horas o infeliz
resolvia trabalhar. Suas badaladas podem ser ouvidas a um quarteirão, causando
arrepio em todo mundo que as ouve.
Há muitos anos atrás, cheguei a morar com minha avó e na época, o tal
cuco funcionava perfeitamente, para o meu desespero e infelicidade. Anunciava
as horas com precisão e com aquelas badaladas ensurdecedoras. Várias vezes
cheguei a cobrir o relógio com um cobertor na tentativa de abafar o som e poder
dormir, mas a velhinha acordava cedo e no dia seguinte sempre reclamava do
cobertor que eu havia deixado no relógio.
Soltei fogos quando finalmente consegui sair do apartamento de minha avó
para morar com meu marido. Só teria que ouvir o relógio quando a visitasse.
Infelizmente, eu era uma das poucas pessoas que a visitavam e sendo a
primeira neta, tão logo ela se deu conta que um dia não estaria mais neste
plano, me convenceu a ficar com uma chave do apartamento e me fez prometer que
quando ela se fosse eu não deixaria nenhum parente entrar para pegar suas
coisas. Sempre fora muito apegada a seus pertences e em especial aquele
relógio. Por anos eu fui responsável por sua manutenção e por mais que eu
rezasse para que algum dia alguém me dissesse que o cuco não iria mais
funcionar, não teve jeito, a engenhoca continuava lá, firme e forte.
Minha avó chegou a escrever num pedaço de papel o que ela achava ser um
testamento, deixando a velha máquina de costura para minha tia e o relógio para
mim.
Obviamente, eu não estava muito tentada a cumprir a promessa de cuidar
do cuco quando ela se fosse.
Pouco antes de morrer, minha avó começou a agir estranhamente.Dizia que
meu avô a visitava em sonhos e que em um dos sonhos chegou a comentar que
queria seu cobertor de volta.Oras,não me perguntem que cobertor era esse,o que
eu sei é que dona Eunice estava convencida que havia me dado o tal cobertor e
que meu avô a perturbava dizendo que não devia ter me dado sua coberta
favorita.Insistiu durante meses que havia me dado um cobertor marrom e que eu
devia ter dado a outra pessoa,por isso meu avô a atormentava todas as noites:
—Filha, se você não queria o cobertor, não devia ter aceitado! – ela
dizia
E não adiantava eu dizer que não sabia do que se tratava, pois mesmo
depois de meses, embora não comentasse comigo, fiquei sabendo que comentava com
minha tia que eu devia ser uma cabeça de vento por não lembrar das coisas.
—Onde já se viu? Menina tão nova. Eu tenho 85 anos e nunca me esqueço de
nada.
Minha tia brincava dizendo que se eu não ficasse com o relógio, dona
Eunice viria puxar meu pé à noite, assim como meu avô fazia com ela por conta
do maldito cobertor.
O tempo passou e minha avó acabou adoecendo. Foi para o hospital e em
seu leito de morte me fez prometer mais uma vez que cuidaria das coisas que
havia me pedido.
Em seu enterro reencontrei parentes que não via há muito tempo, inclusive
meus tios, filhos da falecida.
Por ocasião de sua morte, nem pensei em promessa alguma. Entreguei as
chaves do apartamento a um dos tios e deixei que cuidassem do inventário.
O cuco havia parado de funcionar, marcando onze horas. Era uma verdadeira
raridade e por incrível que pareça, muita gente queria ficar com ele, mas
sugeri que meu tio Antônio ficasse com a peça, uma vez que ele mesmo havia
presenteado sua mãe com o relógio. Fiquei feliz ao pensar que não ouviria as
badaladas tão cedo e que não teria que encarar aquele objeto sinistro.
Ingenuidade a minha!
Assim que meu tio levou o relógio, percebeu que deveria enviá-lo a um
relojoeiro para conserto. O relógio não passou dois dias na relojoaria e voltou
sem esperanças:
—Me desculpe, seu Antônio, mas esta porcaria não tem conserto. Acho que
deveria se desfazer desta geringonça. Enquanto estava na oficina, o cuco não
parou de tocar, onze badaladas, de hora em hora, mesmo sem que eu desse corda. Devia
mandar benzê-lo.
Meu tio achou graça e resolveu colocá-lo em sua sala. Sua vida não seria
a mesma após a chegada do relógio. O maldito cuco passou a tocar de hora em
hora, sempre onze badalas. Seu filho mais novo, Pedro, de apenas nove anos,
passou a ter alucinações com a bisavó. Dizia que ela saía de dentro do relógio
e perguntava:
—Por quê? Por quê?
Os negócios do meu tio começaram a ir de mal a pior, mas seus irmãos
faziam disso tudo motivo de piada. Até que certa noite, já cansado do barulho
tão irritante do cuco, resolveu acertá-lo com uma paulada. Nada aconteceu ao relógio.
Nem rachou, muito pelo contrário, as badaladas pareciam cada vez mais altas.
Tio Toninho, como eu o chamava, não sabia mais o que fazer. Seu filho
chorava o dia inteiro e não passava mais pela sala. Insistia que sua bisa
continuava lhe perguntando “Por quê? Por quê?” até que notara algo no interior
do relógio. Era um bilhete, assinado por minha avó. Um testamento, como ela
chamava, no qual ela escrevera suas intenções em relação ao tão estimado
objeto. Estava claro o que meu tio deveria fazer: deveria entregar o relógio a
quem lhe era de direito. Eu!
E foi assim que o cuco veio parar no meio da minha sala. Meu marido não
gostou muito da idéia, mas a verdade é que desde que o relógio chegou, não
tocou uma só vez, a não ser pelos dias onze de novembro às onze horas da noite.
Meu priminho está melhor, diz que sua bisa não o visitou mais e meu tio
conta que após ter se livrado do relógio, sua mãe o visitara em sonho para dizer
“obrigada”.
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