A MÃO DO LOBISOMEM - Conto Clássico Humorístico de Horror - Paul L. Jacobs
A MÃO DO LOBISOMEM
Paul
L. Jacobs
(1806
– 1884)
Os
lobisomens vieram-nos, provavelmente, dos Caldeus e dos povos pastores que se
viam obrigados a defender seus gados contra os lobos. E o terror que esses animais infundiam,
divagando, à noite, em volta dos currais, favorecia os malfeitores, que se
disfarçavam em lobos furiosos para cometer roubos ou atos de vingança. Daqui
provém esta superstição de todos os tempos e de todos os países, conhecida por
nomes diferentes, e rodeada por circunstâncias mais ou menos estranhas: Luciano[1],
Plínio[2],
Virgílio[3] se
ocuparam destas coisas. Finalmente, esses homens antropófagos, que andam de
noite solitários e furiosos, tendo sinais característicos de lobo, se perpetuam
ainda em muitos pontos da França.
Há
anos que a aldeia de Ryans, que foi uma grande cidade, cinco léguas distantes
de Bourges, tinha uma família de lobisomens, pobres trabalhadores, aos quais
muitas vezes recusavam trabalho e pão, porquanto as pessoas acreditavam, há
muitas gerações, nesta sina original que o pai a transmitia aos filhos. Os
Gordes, que deviam sem dúvida esta má reputação a seus antepassados, não tinham
um amigo nas campinas vizinhas. Atribuíam-lhes sempre as desgraças das quais o
acaso era o único autor.
Se
o incêndio consumia uma quinta, se os gados morriam, era acusado Simon Gorde, e
consagrado à execração pública.
O
cemitério e a cruz do lobo serviam de teatros noturnos à maldade dos Gordes,
que ali se apresentavam ao luar, segundo diziam, para roer os ossos dos mortos
e chupar o sangue dos vivos. Verdade é que, no inverno, os lobos desciam o
monte de Sancerre e penetravam no cemitério para desenterrar os mortos; era
também verdade que a cruz do lobo, que se achava na encruzilhada dos dois
caminhos, tinha sido ensanguentada por um mendigo que ali tinha caído
embriagado. Mas atribuíam todos esses acidentes à intervenção criminosa dos
Gordes e dos lobisomens.
Todavia,
esta pobre família não tratava de desmentir tão monstruosos preconceitos. Sabia
muito bem a calúnia de que era vítima e, como não podia desmenti-la, sofria sem
se queixar da posição em que se achavam; não aparecia nunca de dia, e ocupava-se
nos seus trabalhos domésticos.
Habitavam
estes infelizes uma pequena cabana, meio arruinada pelos temporais. Como essa
habitação era separada das outras à entrada da cidade, todos evitavam passar
por ali, principalmente quando o crepúsculo começava o terror naqueles ermos
medonhos.
Apareceu
na cidade uma epidemia causada pelos vapores pútridos das lagoas, em que se
macerava o linho. Simon Gorde, o pai, foi o primeiro atacado, e ainda tinha o
corpo morno quando sua mulher deu também a alma a Deus. E aquele, por desgraça,
morreu sem médico, nem confessor. Simon Gorde, seu filho, abriu a cova e
lançou-os nela. Um camponês que passava e viu essa cena persignou-se e fugiu,
pensando que tinha visto a procissão dos diabos. No dia seguinte, houve geral
contentamento na região com a notícia destas duas mortes, as quais todos atribuíam
a um benefício do céu, e até já se preparavam para mandar tocar sinos e dizer
missas em ação de graças.
Simon
Gorde, tornando-se chefe de família, composta de duas irmãs de tenra idade, da
irmã de seu pai e do irmão de sua mãe, viu-os partir todos para o cemitério no
espaço de uma semana. Quando enterrou o último, hesitou se devia deitar-se ao
lado dele para ali dormir um sono eterno. Não foi com lágrimas e suspiros que
exprimiu a sua dor: foi em uma contemplação silenciosa, ao lado do túmulo de
seus parentes. Durante três noites consecutivas, saiu da choupana para vir
chorar ao lado da sepultura de seus antepassados, e havia três dias que não
tomava o menor alimento.
O
inverno tinha interrompido o trabalho dos campos, e Simon se tinha apresentado
em vão aos proprietários locais para ganhar alguma coisa pelo seu trabalho.
Respondiam com ameaças. Até lhe recusaram a esmola que é dada aos pobres. Injuriavam-no,
desprezavam-no.
Devia
expirar de inanição, ou livrar-se deste tormento por via de um suicídio. Haveria
abraçado esta última resolução como um consolo, se não o apegasse a esse mundo
um sentimento de amor. Sim, esse miserável tão desesperado, que estorvava a
espécie humana, esse pária que já não tinha confiança em Deus, testemunha
indiferente de seus males, esse homem isolado dos afetos sociais que compensam
as penas da vida, sem mais outro apoio do que a sua consciência, amava. Eis
porque lhe custava tanto acabar com a própria vida.
Simon
Gorde seria o mais formoso rapaz daquelas plagas se as fainas e as privações, pelas
quais passava, o não tivessem desfigurado e abatido consideravelmente. Apesar desta
inquietação e desta tristeza, sempre se notava aquela nobreza selvagem que
tanto distingue certos homens, mesmo debaixo dos andrajos da pobreza. Em suma,
diferia tanto das pessoas de sua condição que parecia que só a inveja era causa
desta perseguição: só as mulheres tinham dó dele e não o temiam.
Solanges,
mulher de Claude Lorry, açougeiro de Aix d’Angillon, tinha reparado em Simon,
certo dia, ao passar por ele a cavalo. Não teve medo. Ao contrário, voltou-se
muitas vezes para observar melhor este estimável lobisomem. Simon Gorde
percebeu aqueles olhares.
Eram
nove horas da noite. Todos os habitantes estavam em suas casas ao serão. Porém,
o desgraçado Simon, solitário na sua choupana, encostado ao lado da lareira,
arranjava o lume para se entreter. A
fome, o frio, tudo o fazia pensar na triste posição em que se achava.
–
Ah – dizia ele –, antes eu fosse lobisomem como eles dizem, não para lhes comer
as carnes, mas para ressuscitar minha desgraçada família!
No
meio destas meditações, o fogo ia-se apagando, e ele não teve outro remédio senão
vasculhar os cantos da casa, e ver se achava algo que pudesse queimar. Encontrou,
com efeito, algumas tábuas, tamancos velhos e outras coisas, e entre elas se deparou
com uma caixa velha fechada, que nunca tinha visto antes.
Levado
pela curiosidade, abriu-a cuidadosamente, e qual não foi a sua admiração quando
encontrou todos os trajes de lobisomem: peles de lobo, luvas com unhas e uma máscara
lupina.
Simon
assustou-se à visão destes objetos, e recordou-se, então, de todas as histórias
que tinha ouvido acerca de sortilégios. O desgraçado estava faminto. Lembrou-se,
então, de procurar por um estratagema, alcançar alguma coisa de comer. Esta
herança criminosa, que seus ancestrais lhe tinham deixado, lhe revelou o que
deveria fazer. Pôs a máscara, calçou a luva misteriosa e partiu para a estrada.
Porém, naquela época do ano, o caminho era pouco frequentado, e por isso Simon
se fartou de viver sem proveito, quando, repentinamente, avistou uma carroça
que seguia a estrada da aldeia. Era Claude Lorry, marido de Solanges, que
levava carne para outra vila, viagem que costumava fazer todas as madrugadas.
Simon
lembrou-se de duas coisas ao mesmo tempo: ir à casa onde, provavelmente, a
mulher do açougueiro estaria só, ou atacar o marido para lhe arrancar algo de
comer. A fome foi superior ao amor. Simon dirigiu-se à carroça e começou a
uivar com tanta força que o supersticioso Claude ficou aterrorizado.
Simon
tinha tido o cuidado de lançar mãos às rédeas do cavalo, para melhor se mostrar.
Mal o viu, Claude exclamou:
–
És tu, Simon Gorde? Por Deus, diz o que queres!
–
Quero comer, pois tenho fome.
Claude
procurou, então, a melhor peça de carne e a entregou. E Simon teve o cuidado de
mostrar muito bem a mão peluda de lobo, a fim de manter a ilusão.
O
desgraçado açougueiro pagava todas as madrugadas a propina de carne ao
lobisomem, porém isto causou-lhe tal impressão, e andava sempre tão triste e
pensativo, que sua mulher instou com ele para que lhe dissesse o que tinha, e
ele não teve outro remédio senão contar-lhe toda a história do lobisomem.
–
É impossível! – replicou a mulher. – Não acredites em loucuras. Simon Gorde é
um homem muito agradável, não pode ser lobisomem, e juro-te que só acreditaria
se o visse transformado.
–
Pois bem – replicou Claude –, virás comigo amanhã e estou certo que hás de
encontrá-lo, e poderás certificar-te.
Com
efeito, nessa madrugada partiu Solanges com seu marido, porque estava ansiosa
por saber a verdade a respeito daquele a quem tanto amava.
Mal
havia chegado a carroça ao local de costume, surgiu o lobisomem para buscar a
pitança de sempre. Ao ouvir os primeiros gritos, Solanges ficou aterrorizada, e
o seu espanto chegou ao auge quando viu a terrível mão peluda agarrando a
carne. Soltou um grande grito, e Simon disse neste momento:
–
Claude, tu não vieste só!
–
Não, não vim – respondeu ele. – Minha mulher veio comigo. Mas não me faças mal,
porque não te quero atraiçoar.
–
Pois bem, tua esposa que desça da carroça. E se não me entregares a mulher,
estejas certo que irás morrer!
Claude
se viu, então, em grande apuro, e estava refletindo no que deveria fazer,
quando o lobisomem saltou à carroça, agarrou Solanges, que tinha perdido os
sentidos, e fugiu com ela para o prado. Claude ficou, também, desmaiado. O
cavalo, todavia, acostumado a fazer aquele caminho, afastou-se do lobisomem, e
seguiu andando. E o pobre açougueiro achou-se, sem saber como, no lugar do seu
destino. Vendeu como pôde a carne, e voltou para casa, persuadido que não
acharia a sua mulher.
Porém,
qual foi a sua surpresa e admiração quando a viu deitada na cama, muito descansada,
conquanto um tanto pálida!
O
sacristão da aldeia era conselheiro natural de todos os habitantes. Claude foi
ter com ele e contou-lhe toda a história. O sacristão, que era homem
inteligente, aconselhou-o a se munir de um instrumento cortante e que com ele procurasse
ferir o lobisomem, porque assim quebraria o encanto.
Claude
assim o fez. E no dia seguinte, quando o lobisomem veio pedir a ração,
descarregou-lhe tal golpe com um cutelo que lhe cortou imediatamente a mão.
Simon
fugiu para o mato dando grandes urros. Claude veio para casa muito triunfante,
mostrando a mão do lobo à mulher, que chorou amargamente, tão logo a viu. Por
outro lado, o desgraçado do lobisomem, deitado na cama e embrulhado em seus
trapos, gemia com dores quando, no dia seguinte, ao amanhecer, viu entrar na
cabana uma mulher desgrenhada: era Solanges, que, aproveitando-se da ausência
do marido, vinha cuidar do amante.
Estava-lhe
ministrando os auxílios necessários, quando ouviu baterem à porta. Era o seu
marido que, pensando ter quebrado o encantamento ao lobisomem, vinha gozar da
sua vitória.
Solanges,
não tendo outro meio de escapar, escondeu-se dentro dos farrapos que serviam de
cama a Simon.
–
Bom dia, amigo! – disse Claude, ao entrar. – Estás doente? Deixa-me ver a tua
mão, que te quero tomar o pulso.
Simon
apresentou-lhe a mão esquerda, e, como o açougueiro instava para que lhe
apresentasse ao mesmo tempo a outra, Solanges, que estava escondida entre os
farrapos, lançou a não direita de fora. Claude assustou-se tremendamente com esta
aparição, porque tinha consigo a mão do lobisomem. E foi tal o seu terror que
foi daí para casa e morreu no dia seguinte.
Passado
um ano, Solanges tinha casado com Simon, que havia dado a sua demissão de
emprego de lobisomem[4].
Ilustração:
Paulo Soriano
[2]
O autor talvez se refira a Plínio, o Velho (23 – 79), escritor e naturalista
romano.
[3]
Públio Virgílio Maro (70 a.C. – 19 a.C), célebre poeta romado, autor das
Éclogas, das Geórgicas e da Eneida.
[4]
A presente narrativa foi publicada, sem qualquer
referência à autoria, como era de costume à época, no periódico carioca O Brasil, edição de 8 de outubro de
1840, p. 1-3. O texto, todavia, é uma versão condensada, em português, de uma
narrativa do autor e bibliófilo francês Paul L. Jacobs, pseudônimo de Paul
Lacroix (1806-1884), colaborador de Alexandre Dumas, que integra a obra Médianoches, publicada originariamente
em Paris pela Librairie de Dumont, no ano de 1835 (p. 136-169). O mesmo livro
foi publicado em Bruxelas, Bélgica, igualmente em 1835, por AD Wahlen, Imp. – Libr.
de la Cour (p. 83-102). Não nos foi possível, contudo, aferir a autoria da
versão em português. Fizemos algumas adaptações textuais.
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