A MORTA-VIVA - Conto Clássico de Terror - Guy de Maupassant
A
MORTA-VIVA
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
No
hotel daquela estação balneária sempre chegavam hóspedes novos.
Naquela
tarde, apareceram dois, porém muito estranhos. Eram pai e filha e pareciam
figuras de Edgar Pöe. O homem era muito alto e magro, um pouco corcunda,
fisionomia ainda jovem, mas com cabelos brancos. Tinha a atitude austera dos
protestantes. A filha, de uns 24 anos, era miúda, magra, pálida, com um ar de
fadiga e acabrunhamento. Era linda, de uma beleza diáfana. Comia com extrema
lentidão, como se fosse incapaz de mover os braços.
Pai
e filha ficaram sentados à minha frente, na mesa redonda das refeições. Notei
imediatamente que o velho tinha um tique nervoso singular. Toda vez que
pretendia alcançar um objeto, sua mão descrevia um rápido arco, um ziguezague.
Ao fim de alguns instantes, aquele movimento me fatigou e tive de desviar a
cabeça para não o ver. Notei também que a jovem conservava, embora à mesa, a
mão esquerda enluvada.
Depois
do jantar, fui dar um passeio pelo parque, onde, pouco depois, sem querer,
encontrei o estranho casal. Cumprimentei-os. O velho pediu-me, cortesmente, que
lhe indicasse um passeio agradável por perto. Dei algumas informações e
perguntei se queriam que eu os acompanhasse. E foi assim que nos pusemos a
passear juntos, conversando.
Falamos
a respeito da virtude das águas. O pai me disse:
—Minha
filha sofre de uma estranha doença, ainda não diagnosticada. São distúrbios
nervosos. Ora supõe-se que esteja atacada do coração, ora de uma doença do
fígado, ora de uma doença da medula espinhal. Agora julgam que ela sofre do
estômago. Por isto estamos aqui. Para mim, ela sofre dos nervos.
—Não
será um caso de hereditariedade? — arrisquei, lembrando-se do tique nervoso do
velho.
—Não
— respondeu ele, tranquilamente. — Tenho bons nervos.
Mas
logo em seguida:
—
O senhor se refere, naturalmente, ao meu tique. Isto provém de uma emoção
terrível que eu experimentei. Imagina que essa menina foi enterrada viva?
Enquanto
caminhávamos, o velho contou-me:
—Minha
mulher já tinha morrido. E Juliette sofria de graves distúrbios do coração. Um
dia, trouxeram-na para casa como morta, fria, inanimada. Acabara de cair no
jardim. Eu fiquei junto a ela, velando, um dia e uma noite. Eu mesmo a depus no
ataúde, que acompanhei até o cemitério, onde o seu corpo foi depositado no
nosso jazigo de família, na Lorena. Quis que ela fosse sepultada com todas as
joias que eu lhe dera e com o seu primeiro vestido de baile.
“O
Sr. pode imaginar o estado em que eu fiquei quando voltei para casa, só, sem
mais ninguém no mundo. Deixei-me cair numa poltrona e fiquei prostrado, sem
forças para nada, os olhos abertos e sem lágrimas, o corpo mole, a alma
desesperada. Não sei quantas horas se passaram.
“De
súbito, a campainha do vestíbulo tocou, ecoando na casa deserta como num
subterrâneo.
“Estremeci.
“Olhei
para o relógio. Lembro-me que eram duas horas. A campainha continuou a bater.
Quem seria?
“Fazendo
um grande esforço, ergui-me até a porta. Ao abri-la, recuei espantado: tinha
diante de mim, na sombra, uma forma branca, hirta, alguma coisa como um
fantasma. Recuei, transido de medo:
“—Quem...
Quem é você?
“E
uma voz respondeu:
“—
Sou eu, meu pai!
“Era
minha filha.
“Eu
me supus louco. Recuei diante do espectro que entrava na casa. Fui recuando, ao
mesmo tempo em que fazia um sinal com a mão para afastar de mim a estranha
visão. Fazia aquele mesmo gesto que o Sr. viu ainda há pouco e do qual nunca me
libertei.
“A
aparição voltou a falar-me:
“—Não
tenha medo, papai. Eu não estava morta. Quiseram roubar os meus anéis e
cortaram-me um dedo. O sangue pôs-se a correr e isto me reanimou.
“Percebi,
então, que ela estava coberta de sangue. Caí de joelhos, sufocado, soluçando.
“Quando,
afinal, recobrei um pouco de serenidade, mal compreendendo a felicidade
terrível que experimentava ao recuperar a minha filha, fi-la subir para o meu
quarto e sentar-se na minha poltrona. Depois, toquei repetidamente a campainha
para chamar Prosper, nosso criado, a fim de que ele acendesse o fogo da
chaminé, preparasse qualquer bebida quente e fosse buscar socorro médico.
“Alguns
instantes depois o velho criado entrou no quarto, olhou minha filha com um
olhar apavorado, abriu a boca num espasmo de horror e caiu de costas no chão,
morto.
“Fora
Prosper quem abrira o jazigo, mutilara a minha filha e em seguida a abandonara.
Nem sequer tomara o cuidado de repor o caixão no lugar, certo de que ninguém
iria suspeitar dele, que sempre merecera a minha inteira confiança.
“Como
o Sr. vê, somos — eu e minha filha — uns seres muito infelizes.”
Dito
isto, o pobre homem calou-se.
A
noite caíra, envolvendo o pequeno vale em que nos achávamos, solitário e
triste. Uma espécie de medo supersticioso me constrangia, por se sentir junto
daqueles seres estranhos, daquela morta reaparecida e daquele pai de gestos
alucinados.
Não
soube o que dizer. Apenas murmurei:
—Que
coisa horrível!
Ao
fim de um instante, acrescentei:
—Talvez
fosse bom nos recolhermos. Começa a fazer um pouco de frio.
E
voltamos para o hotel.
Tradução de autor
desconhecido.
Fonte: “O Jornal”,
edição de 27 de março de 1949.
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