A NOIVA DO DEMÔNIO - Narrativa Clássica de Terror - Antonio de Torquemada
A NOIVA DO
DEMÔNIO
Antônio de Torquemada
(c. 1507 – 1569)
Uma
donzela muito rica e bela, e de mui grandes qualidades, vendo um cavalheiro
muito gentil-homem e rico, que estava na mesma cidade, enamorou-se dele.
Olhava-o com grande afeição e vontade, sem que o cavalheiro soubesse ou disso
se desse conta.
Assim
se passaram alguns dias, sem que ela, por sua honestidade, fizesse alguma
mostra de si para ser percebida. Mas um demônio, vendo a ocasião que se lhe
oferecia para poder enganá-la, tomando a mesma figura daquele cavalheiro,
tratou de amores com ela. E de tal modo a persuadia a que satisfizesse a sua
vontade, que ela veio a fazê-lo, cumprindo, primeiro, com o que à sua honestidade
convinha, em lograr com que ele a desposasse.[1]
Assim
demônio o fez e, destarte, vinha vê-la muitas noites, e estava com ela na cama
como se fosse realmente o gentil-homem que ela tinha por certo que era.
Desta
maneira, passaram-se alguns meses, persuadindo-a sempre o demônio a que não lhe
enviasse mensagem nenhuma, porque convinha, por então, permanecer secreto o
compromisso, e que ele, quando a visse, dissimularia, como se apenas a
conhecesse.
E,
por conta desta cautela, estando algumas vezes em sua em presença o verdadeiro
enamorado, pensava que era dissimulação a sua em não lhe falar, nem dar a
entender algo concernente a seus amores.
Assim
correndo as coisas, sucedeu que donzela ganhou de sua mãe um relicário, para
que usasse consigo, contendo coisas tão santas que o demônio, pelas virtudes
que havia nelas, não mais teve o poder de entrar onde ela estava, nem de
enganá-la como de costume. E assim se passaram mais três meses.
E
como a donzela entendesse que o cavalheiro estava enamorado e servia a outra,
vendo que ele não mais a via e a visitava como antes, perdeu com os ciúmes a
paciência e, assim, mandou-lhe um recado para que, em todo caso, viesse falar
com ela, porque tinha um negócio a tratar com ele.
O
cavalheiro, sem entender por que era chamado, mas como comedido homem de bem,
cumpriu logo aquele mandado, indo vê-la num momento em que a mãe estava ausente
da casa e a donzela encontrava-se sozinha. Em chegando, com mui grande
comedimento e cortesia, perguntou por que motivo ela o convocara. A donzela,
parecendo-lhe que lhe falava ele como quem apenas a conhecia, começou a
ofender-se de seu descuido e de passar tanto tempo sem querer vê-la ou
falar-lhe.
O
cavalheiro, muito espantado, sem entender o que se passava, lhe respondeu de
maneira que a ela pareceu que aquela dissimulação era demasiada, pois não havia
mais ninguém presente, e, assim, começou a entrar em cólera e a brigar com ele,
dizendo-lhe que, porque tanto tempo havia desfrutado dela, não pensasse em
deixá-la enganada, eis que haveria de cumprir a palavra que lhe havia dado em
casamento; e que, quando o contrário fizesse, demais que queixar-se a Deus e ao
mundo, faria as suas diligências para que ele cumprisse à força a obrigação que
tinha, pois não queria fazê-lo de bom grado.
O
cavalheiro, com isto muito mais admirado, respondeu que não a entendia, nem
sabia o que ela dizia; porque não lhe havia falado em segredo, nem a desposara,
e ela nada lhe tinha a donzela que pedir.
A
donzela, saindo de seu entendimento com o que ouvia, tornou a dizer-lhe: “Não
sabeis que haveis passado comigo isto e isto?”, dando-lhe conta particular de
tudo o que com o demônio havia sucedido, dizendo-lhe ademais: “E, por conta
disto, não podeis deixar de ser meu esposo e eu, vossa mulher.”
O
cavalheiro, muito confuso, persignou-se e começou a fazer promessas e
juramentos de que ela se enganava em pensar que aquilo fosse verdade. E, estando
nesta porfia, ela sublinhou o dia dos esponsais, porque havia sido um dia de
uma festa importante. O cavalheiro, então, lhe disse:
—Senhora,
nesse dia, e vinte dias antes e vinte dias depois, eu não estava nesta cidade,
senão muito longe dela, e disto eu darei tão bastantes informações que ficareis
desenganada. E se alguém vos enganou em meu nome, não tenho culpa alguma nisto.
E para que saibais que digo a verdade, logo vos a mostrarei.
E
assim, sem sair dali, fez vir sete ou oito pessoas de sua casa e de fora, as
quais, sem saber por que finalidade, juraram e declararam que o cavalheiro
dizia a verdade, e que em todo aquele tempo havia estado ele ausente, em outra
vila, a mais de cinquenta léguas dali.
A
donzela ficou muito confusa e envergonhada, tanto por isto como por algumas
coisas particulares que com o demônio havia passado e se lhe vinham à memória,
as quais lhe pareciam impossíveis de realização por obra de uma pessoa humana.
Aclarando-se o seu juízo para entender que tudo fora obra do demônio, começou a
dar-se conta do sucedido, e, pouco a pouco, logrou o conhecimento de tudo o que
acontecera.
Assim,
e desde então, viveu recatada, até que veio a ingressar num monastério, onde
passou santamente o que lhe restava de vida.
Versão em português: Paulo Soriano.
Narrativa constante do Jardín de Flores Curiosas,
1575.
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