O SOLITÁRIO - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga


O SOLITÁRIO
Horacio Quiroga
(1878 – 1937)
Tradução de Paulo Soriano

Kassim era um homem enfermiço, joalheiro de profissão, embora não tivesse estabelecimento próprio. Trabalhava para as grandes casas do ramo e a montagem de pedras preciosas era a sua especialidade. Havia poucas mãos como as suas para os engastes delicados. Com mais ímpeto e tirocínio comercial, teria sido rico.  Mas, aos trinta e cinco anos, continuava em seu cômodo, transformado em oficina, debaixo da janela.

Kassim, de corpo mesquinho e rosto exangue, sombreado por uma barba rala e negra, tinha uma bela mulher, de natureza profundamente apaixonada. A jovem, criatura das ruas, havia aspirado, com a sua beleza, a um casamento com alguém de melhor condição. Esperou até os vinte anos, provocando, com o seu corpo, os homens e suas vizinhas. Mas, por fim, receosa, aceitou Kassim nervosamente.

Todavia, extinguiram-se os sonhos de luxo. O seu marido, embora artesão habilidoso, carecia completamente de aptidão para fazer fortuna. Por isso, enquanto o joalheiro trabalhava recurvo sobre as pinças, ela, apoiada nos cotovelos, mantinha sobre o marido um lento e pesado olhar, para, depois, retirar-se bruscamente, e seguir com a vista, através das vidraças, algum transeunte de posição, que poderia ter sido o seu marido.

Apesar disto, tudo o quanto Kassim ganhava era para ela. Ele trabalhava, também, aos domingos, a fim de poder oferecer-lhe um pouco mais. Quando María desejava uma joia ― e com que paixão ela a desejava! ―, ele trabalhava também à noite. Depois, sucediam-se a tosse e as pontadas no flanco; mas Maria não deixava de obter as suas centelhas de diamante.

Pouco a pouco, o contato diário com as gemas a fez admirar o trabalho do artesão e, assim, ela acompanhava com entusiasmo as íntimas delicadezas do engaste. Mas, quando a joia estava pronta ― devia ser entregue, não era feita para ela ―, María desabava mais profundamente na decepção que era o seu casamento. Parada diante do espelho, experimentava a joia. Por fim, largava-a por ali, e recolhia-se ao quarto. Kassim se levantava ao ouvir os seus soluços, e a encontrava sobre a cama, sem querer escutá-lo.

― Eu faço tudo o que posso por você ― dizia ele por fim, tristemente.

Com isto, os soluços aumentavam, e o joalheiro, lentamente, voltava a se instalar no seu banco.

Tais acontecimentos se repetiram de tal forma que Kassim não mais se levantava para consolá-la. Consolá-la? De quê? Mas isto não o impedia de prolongar os serões noturnos para propiciar-lhe alguma coisa a mais.

Era um homem indeciso, irresoluto e calado. Os olhares de sua mulher se detinham, agora, mais fixamente sobre aquela tranquilidade muda.

― Você é um homem! ― murmurava.

Kassim, inclinado sobre os engastes, não deixava de mexer os dedos.

― Você não é feliz comigo, María ― dizia ele, depois de uns instantes.

― Feliz!  E você tem coragem de dizer isto! Quem pode ser feliz com você?  Nem a última das mulheres!... Pobre diabo! ― concluía, com um riso nervoso, evadindo-se.

Então, naquela noite, Kassim trabalhou até as três horas da madrugada, e logo a sua mulher ganhava novas centelhas, que ela apreciava por breves instantes, com os lábios apertados.

― Bem, não é um diadema surpreendente! Quando você o fez?

― Trabalhei desde sexta-feira ― ele a olhava com uma ternura descolorida. ― Enquanto, à noite, você dormia.

― Oh, você deveria ter dormido! E... E esses brilhantes imensos...

Assim dizia porque sua paixão eram as imensas pedras que Kassim estava a montar. Acompanhava o trabalho do marido com a louca expectativa de que fosse logo concluído. E, assim que estava pronta a joia, corria com ela ao espelho. Sucedia-lhe, então, um ataque de soluços.

― Todos... Qualquer marido... O último dos maridos faria um sacrifício para agradar a mulher. Mas você... Você... Quanto a mim, não tenho nem mesmo um miserável vestido!

Pode a mulher, quando transpassa certo limite do respeito ao varão, chegar a dizer-lhe coisas incríveis.

A mulher de Kassim transcendeu tal limite com uma paixão no mínimo igual à que sentia pelos brilhantes. Uma tarde, ao guardar as joias, Kassim notou a falta de um prendedor ― cinco mil pesos em dois solitários. Procurou em suas gavetas novamente.

― María, você viu o prendedor?  Eu o deixei aqui.

― Sim, eu o vi.

― E onde está? ― ele voltou-se, desconfiado.

― Aqui!

A mulher, de olhos ígneos e lábios galhofeiros, se ergueu com o prendedor já colocado.

― Fica muito bem em você ― disse Kassim, logo depois. ― Mas vamos guardá-lo.

María deu uma risada.

― Nada disso. Ele é meu!

― Isto é uma brincadeira?

― Sim, é brincadeira! É claro que é brincadeira! Como lhe é doloroso pensar que ele poderia ser meu... Amanhã, eu lhe devolvo. Hoje vou ao teatro com ele.

A expressão de Kassim alterou-se.

― Assim, você age mal... Poderia ser vista com ele. E perderiam toda confiança em mim...

― Oh! ― ela o interrompeu, com um enfado raivoso, batendo violentamente a porta.

De volta do teatro, María colocou a joia sobre o aparador. Kassim levantou-se e guardou-a em sua oficina, cerrando-a a chave. Quando voltou, a mulher estava sentada na cama.

― Então, quer dizer que você teme que eu lhe roube a joia!  Que eu sou uma ladra!

― Não me olhe assim... Você foi imprudente, nada mais.

― Ah!  A você eles confiam a joia! A você! A você! E quando a sua mulher pede-lhe um pouco de agrado, e quer... Quanto a mim, você me tacha de ladrona! Infame!

Depois, ela dormiu; ele, não.

Pouco tempo depois, encomendaram a Kassim o engaste de um solitário, o mais admirável diamante que já havia passado por suas mãos.

― Veja, María, que pedra! Nunca vi outra igual.

A mulher nada disse; mas Kassim percebeu que ela respirava ansiosamente sobre o solitário.

― Que brilho maravilhoso! ... ― ele prosseguiu. ― Deve custar uns nove ou dez mil pesos.

― Um anel! ― murmurou María, finalmente.

― Não, é de homem... Um alfinete.

Ao longo da montagem do solitário, Kassim recebeu sobre os ombros trabalhadores o quanto ardia de rancor e vaidade frustrada em sua mulher. Dez vezes por dia, ela o interrompia para correr ao espelho com o brilhante. Depois, provava-o com diferentes vestidos.

― Por favor, peço-lhe que experimente a joia depois ― atreveu-se a dizer Kassim. ― É um trabalho urgente.

Esperou a resposta em vão. A mulher abria a varanda.

― María, alguém pode vê-la.

― Tome! Eis aí a sua pedra!

O solitário, violentamente arrancado, rolou pelo chão.

Kassim, lívido, o apanhou, examinando-o. Depois, ergueu os olhos à mulher.

― Ora, por que está me olhando assim? Danifiquei a sua pedra?

― Não ― replicou Kassim. E retomou o trabalho, embora as mãos tremessem penosamente. Mas teve de erguer-se para ver a mulher no quarto, em plena crise nervosa. Os cabelos haviam-se soltado e os olhos saltavam-lhe das órbitas.

― Dê-me o brilhante! ― implorou. ― Dê-me! Nós fugiremos! Para mim! Dê-me!

― María... ― gaguejou Kassim, tratando de desvencilhar-se dela.

― Ah! ― rugiu a mulher, enlouquecida. ― Você é que é o ladrão, miserável! Roubou-me a vida, ladrão, ladrão! E você achava que eu não iria me vingar? Cornudo! É isso mesmo! Olhe-me. Você nunca desconfiou de nada, hein? Ah! ― e levou ambas as mãos à garganta, sufocada. Mas quando viu que Kassim debandava, saltou da cama e lançou-se ao chão, conseguindo alçá-lo pela perna.

― Não importa! Dê-me o brilhante! Eu só quero isso, nada mais! Ele é meu, Kassim miserável!

Kassim a ajudou a levantar-se, lívido.

― Você está doente, María.  Depois, conversamos. Vá se deitar.

― Meu brilhante!

― Bem, veremos se é possível.  Vá se deitar.

― Dê-me!

E novamente veio o aperto na garganta.

Kassim voltou a ocupar-se com o seu solitário. Como suas as mãos tinham uma precisão matemática, faltavam poucas horas para concluir o trabalho.

María levantou-se para comer, e Kassim comportou-se solícito com ela, como sempre. Terminado o jantar, a mulher olhou diretamente para ele.

― O que eu falei é mentira, Kassim ― disse-lhe.

― Oh! ― respondeu Kassim, sorrindo. ― Não foi nada!

― Juro-lhe que foi tudo mentira! ― ela insistiu.

Kassim sorriu novamente, tocando-lhe a mão com um carinho desajeitado.

― Louca, já esqueci!

E se levantou para retomar o trabalho. A mulher, com o rosto entre as mãos, seguiu-o com o olhar.

― E ele só me diz isso ― murmurou. E com uma repugnância profunda por aquele homem pegajoso, flácido e inerte, que era o seu marido, rumou para o quarto.

Não dormiu bem. Acordou bem tarde e viu a luz na oficina. O marido continuava trabalhando. Uma hora depois, ele ouviu um grito:
― Dê-me a joia!

― Se é para você, falta pouco, María ― ele replicou, afobado, levantando-se. Mas a mulher, após esse grito de pesadelo, dormia novamente. Às duas da manhã, Kassim pôde dar por concluída a sua obra. O brilhante resplandecia, firme e viril, em seu engaste. Com passos silenciosos, foi ao quanto e acendeu o abajur.  Maria dormia de costas, na brancura gelada de sua camisola e do lençol.

Foi à oficina e voltou novamente. Contemplou por um instante o seio quase descoberto e, com um sorriso insípido, afastou um pouco mais a camisola solta.

A mulher nada sentiu.

Não havia muita luz. O rosto de Kassim adquiriu, de súbito, uma dura imobilidade e, suspendendo um instante a joia à flor do seio desnudo, mergulhou ― firme e perpendicularmente, como se fosse um prego ― o alfinete inteiro no coração da mulher.

Houve uma brusca abertura de olhos, seguida de uma lenta queda de pálpebras. Os dedos se arquearam, e nada mais.

A joia, sacudida pela convulsão do órgão ferido, tremeu por um instante, desequilibrada. Kassim esperou um momento. E quando o solitário ficou, por fim, perfeitamente imóvel, pôde então retirar-se, fechando a porta atrás de si sem fazer barulho.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe