UMA ALMA DO OUTRO MUNDO - Conto Clássico de Horror - V. P.
UMA
ALMA DO OUTRO MUNDO
V.
P.
(séc.
XIX)
I
—
Meu caro senhor, sei que tem uma linda casa de campo, que me convém
perfeitamente. Desejo alugá-la.
—
Essa casa do campo! Sim, senhor, ela é minha. Mas eu não a alugo — respondeu o
velho homem ao cavalheiro que lhe falava.
—
Mas por quê?
—
Porque, senhor — respondeu o outro, chegando-se com mistério e falando baixo —,
tenho sofrido muito por causa dos inquilinos. Chamam-me de feiticeiro. Dizem
que tenho pacto com o diabo e...
—
Como assim?
—
Já lhe conto — respondeu ele, olhando para todos os lados. — Na casa, aparecem
fantasmas. E asseguro mesmo que tem desaparecido objetos que nunca mais se
acham. Uma senhora gravemente enferma, que quase se achava restabelecida,
recaiu perigosamente naquela agradável habitação, e daí a dois meses morreu,
falando sempre, nos seus delírios, em uma alma do outro mundo. Outra, que se
quis fazer de animosa, enlouqueceu. Finalmente, um menino perdeu a fala. Bem vê
o senhor que não há interesse que me obrigue a causar novas desgraças...
—
Perdoe-me por interrompê-lo, meu amigo. O que o senhor me diz mais me excita a
querer a sua encantadora quinta para passar o verão.
—
Senhor, o que está a dizer? Quer mesmo arriscar-se?
—
Dê-me a chave. Nesta noite, dormirei lá, somente em companhia desse criado que
me segue.
Tremendo,
o velho homem obedeceu ao jovem cavalheiro. Rosnava entre os dentes:
—
Vigem Maria! Que temeridade! Isto é
tentar a Deus!
II
Deixemos
o pobre homem com o seu medo das almas do outro mundo e voltemos a nossa
atenção para uma pequena câmara de formosíssima quinta nos arrabaldes de Paris.
Lá se achavam um jovem elegante, reclinado num sofá, e uma linda moça de quinze
anos, fresca como uma rosa, viva e graciosa, que se ria com todo o gosto
possível, havia um quarto de hora, fazendo uma boa segunda voz ao seu amável
companheiro.
—
Mas, diga-me, bela alma do outro mundo — disse finalmente o jovem conde de S.,
alisando com dois dedos afilados seu pequeno bigode negro, um pouco
desarranjado havia alguns minutos. — Diga-me como você pôde abrir este rombo na
parede e cobri-lo com esse grande quadro de Ticiano?
—Eu
lhe conto — respondeu, ainda rindo, a alegre Pauline. — Morou aqui, há alguns meses, o general B.
com sua filha, moça encantadora, que me inspirou a mais viva amizade. Como a
minha tia, devota consumada, não consentia que eu tivesse relação com pessoa
alguma, resolvemos eu e ela abrir esta fenda na parede por detrás dos
cortinados da cama: tudo isto na ausência do general e às escondidas de minha
tia.
—
Mas como foi possível que os outros inquilinos não pudessem descobrir o que
você fazia?
—
Eu lhe digo. Quando eu supunha que todo mundo dormia, era então que vinha fazer
a minha vida. Divertia-me em pregar
algumas peças nas pessoas de casa. De
uns, eu escondia a caixa de rapé; de outros, o livro que tinha na estante. E se
alguém acordava, de pronto apagava a luz, saltava pela fenda e repunha o
quadro, enquanto a pobre dama, assustada, tocava com a mão trêmula a campainha.
—
E a sua tia nunca soube disso? — perguntou o conde, apertando com ambas as mãos
a delgada cintura da bela fantasma.
—
Nunca, nunca... — respondeu ela, pulando com ligeireza para trás e continuando
sempre a rir.
—
Terei um verão delicioso — pensou o conde, fitando os seus olhos nos olhos
negro de sua visita noturna e admirando a doçura cheia de fogo que os animava.
— Fico com a casa. Não terei que aturar os ciúmes da condessa, nem os sermões
de minha mãe.
III
Fácil
é acreditar que o amável locatário da quinta a quis também para o verão
seguinte e para todos os verões.
Uma
bela noite, depois de um passeio pelo jardim, achavam-se os nossos dois
imprudentes na mesma câmara misteriosa, entregues às delícias de um amor que
durava dois anos.
Tanto
tempo tinham-se ocupado das almas deste mundo que, naquela noite, sentiram
vontade de falar nas do outro. Depois de terem exaurido todas as reflexões que
comumente se fazem sobre tal assunto, de terem contado as histórias de almas
que apareceram à avó ou a alguma tia velha, o conde bem lembrou-se finalmente
da deliciosa visão que tivera e que tanta realidade tinha neste momento.
—
Como o coração desta alma do outro mundo bate tão fortemente! — disse ele,
apertando-a nos braços. — Como brilham os seus olhos baços! E como esta mão
gelada aperta a minha com tanto calor! E quantos males causou esta linda
fantasma!
—
Males? Nenhum! — acudiu ela vivamente.
—
E a mulher que ensandeceu? E a outra que, estando já convalescente, morreu daí
a alguns meses? E o menino que perdeu a fala?
—
De que você está falando, Alfred? De que menino você fala? Ignoro tudo isso!
Por acaso teria sido eu que motivei a recaída da boa senhora? Que causei essa
loucura que sempre atribuí a origem diversa? Oh, céus! — exclamou, levantando-se
espavorida. — Alfred, você fala seriamente?
Diga-me, meu anjo, meu amor! Não se ria desse modo, que assim me
desespera. Fala com sinceridade?
—
Assim me contou o proprietário desta casa. Não se assuste, porém, a ponto de quase
perder os sentidos, minha querida. Não devo a minha felicidade a esta boa
lembrança? E, depois, tudo aconteceu há tanto tempo! Agora devemos pensar em
amar-nos.
Apesar
dos cuidados do conde, do seu amor e das distrações que lhe proporcionava,
falando em coisas diversas, fazendo-lhe leitura agradáveis quando se achavam
juntos, Pauline caiu em profunda melancolia.
Estremecendo a cada momento, recusando tomar alimentos, tornando-se
pálida e triste, atraiu assim a atenção de sua tia, que logo suspeitou que a
atormentava alguma inclinação secreta.
IV
—
Quanto me arrependo de haver-lhe contado as impertinências de meu velho
senhorio! — dizia o conde uma noite, contemplando o rosto de Pauline. — Você
emagrece a olhos vistos. Está toda mudada! Até julgo que não mais me ama tanto.
Pauline
sorriu tristemente e suas faces se encheram de lágrimas. Encostou seu rosto
pálido ao ombro de seu amante e ambos ficaram em silêncio por muito tempo. Eram
duas horas da noite. O mais profundo sossego reinava em toda casa, e só seria
interrompido de vez em quando pelo piar das aves noturnas e pelos sibilos dos
ramos das árvores que o vento empurrava de encontro às gelosias.
De
repente, Pauline estremeceu e olhou espavorida para o quadro.
—
Não é nada, disse o conde, sorrindo. Para que se assustar sem motivo?
A
moça tornou a encostar a cabeça ao ombro de Alfred e, tomando-lhe vivamente a
mão, levou-a ao seu coração, que batia como se quisesse despedaçar-lhe o peito.
—
Sempre criança! — disse ele. — Sempre em tudo exagerada. Acalme-se e falemos de
outra coisa.
Pauline
quis responder, mas desta vez o susto lhe tirou a voz.
O
quadro de Ticiano movia-se vagarosamente!
O
conde queria procurar as suas armas, mas não podia arrancar-se dos braços de
sua amante, que, convulsa, o apertava. Ele observou, pois, o quadro, que se ia
levantando, deixando ver gradualmente um fantasma pálido, vestido de branco, e
com grandes sobrancelhas negras, carregadas de severidade!
A
infeliz não pôde reconhecer sua tia que, tendo finalmente descoberto o seu
segredo, vinha buscá-la no lugar do crime para que a sua justiça aí fosse
aplicada. Durou um quarto de hora essa crise. E a infeliz que lhe serviu de mãe
recebeu por fim em seus braços um cadáver.
V
Viram
no dia seguinte o conde de S. vestido de luto, com os braços cruzados e a
cabeça caída sobre o peito, ir entregar a chave da quinta ao velho
proprietário.
Há
oito anos a quinta está fechada e a gente dos arredores, quando passa por ali,
benze-se.
Tradução de autor
desconhecido.
Fontes: “O Recreador
Mineiro”, ed. 03, 1846, p. 424 e “O Brasil”, edição de 21 de outubro de 1843.
Imagem: Ticiano
Vicellio (c. 1473 – 1576).
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