O MISTERIOSO SR. ETIENNE - Conto Clássico de Horror - Paul Doffus


O MISTERIOSO SR. ÉTIENNE
Paul Doffus
(1867 — 1849)

A senhorita Cabri entrou para a Opera em 1787, pouco mais ou menos. Devia ter quinze anos, e é mesmo de acreditar-se que os tivesse. Em 1793, continuava a figurar, modestamente, nos bailados sem que prometesse chegar à consideração de uma estrela de primeira grandeza. Por isso, a chamada grande tempestade revolucionaria não lhe causou abalo. Cabri dançava no Triunfo da Republica, na Apoteose de Marat ou na Toitlon, submetida do mesmo modo que tinha dançado ou figurado nas Macieiras e o Moinho, nos Pretendidos ou no Feliz Estratagema. O seu sorriso era o mesmo, como as mesmas eram a sua ligeireza e graça.

Encurvar os braços no espaço e saltitar com os pezinhos eram a sua vida, e Cabri punha os braços em meneios circulares, e saltitava do mesmo modo, quer se tratasse de representar a ingenuidade alegre dos burgueses em dia de festa, quer a comoção das virgens republicanas acabrunhadas pela morte do “Amigo do Povo”. E o mais que a seu respeito se sabia era que completara a sua educação artística no Scala, de Milão.

Era o que se sabia ou supunha saber. De todo o tremendo acontecimento revolucionário nada a comovera, ela mesma não se apercebera da transformação por que passaram os habituais dos bastidores. Em lugar de senhores empoados, fazendo bofes e mangas de rendas, bocetas de ouro, espadins de copos encrustados de pedras preciosas, e bengalas de castões cinzelados, senhores que cheiravam a musgo e benjoim, que diziam docemente cousas com pretensões a espirito e que eram gentis, viam-se agora, no foyer, homens propositalmente desleixados, cabelos por pentear, barbas crescidas desmazeladamente, e que pareciam tão apressados de viver e gozar que, dir-se-ia, todos percebiam a aproximação da sua última hora.

Nem isso a turbou! A existência de Cabri continuava a ser a mesma, e o mesmo era o seu amante.

Parecia-lhe conhecê-lo desde longa data, porquanto havia dois anos que ela o via quase todas as noites sentar-se na sua cadeira da orquestra, invariavelmente a mesma cadeira, e sempre atento ao representavam, sempre comovido. Pela música que escutava, ainda que assistindo ao mesmo espetáculo pela décima a vez.

Ele vestia, sempre com a maior correção, uma casaca negra, sob a qual brilhava o linho o mais claro e o mais cuidado que se podia ver; seus botões eram de ônix negro e de ônix negro eram as fivelas dos seus sapatos.  Ao passo que, de semana em semana, se lhe acentuava uma certa negligencia na fisionomia, nada mudara no seu vestuário e por contraste, os linhos de que usava pareciam mais finos.

O seu falar era doce, o gesto sóbrio e calmo, uma palidez digna do antigo regime; em vez de evidenciar-se como todos faziam, procurava recatar-se; a todos tratava na segunda pessoa do plural, e pinçava o seu rapé em uma tabaqueira d’ouro, sobre a qual havia uma miniatura da rainha, e quando no foyer algum importuno, em vez de elogiar a beleza das dançarinas ou das artistas, pretendia conversar sobre os acontecimentos do dia, ele calava-se e tratava de recolher-se ao seu lugar de espectador.

Esse homem jamais fora visto em companhia de outro, andava só, mas parecia que era ele quem desdenhava das camaradagens. No entanto, algumas pessoas o cumprimentavam respeitosamente, e quando chegava atrasado à sala do espetáculo, deixavam-no passar com visível deferência.

Cabri o estimava muito, porque ele não tinha exigências. Duas ou três vezes por semana ele a levava a cear, depois reconduzia a sua pequena dançarina ao domicílio que lhe alugara, e onde ela morava com sua mãe, uma mulher italiana. E isso sem destoar dos seus modos, sempre o mesmo, atencioso e calmo, apenas encantado por ouvi-la, ainda que nas suas puerilidades de moça, que se importava demasiado com as fitas ou as joias de pechisbeque, ou se desfazia em lagrimas queixosas por ter sido preterida em melhor colocação no bailado. Porque Cabri, apesar de tudo, gostava de se mostrar interessada na sua profissão, e na ocasião em que figurou na Apoteose de Marat, sentiu-se desvanecida com a colocação que obteve no cortejo, e de tal sorte que foi consultar com o amante se seria crime tomar um banho nesse dia, porquanto Marat tinha sido assassinado numa banheira.

O polido senhor achou-lhe graça na ingenuidade e, retomando o seu ar grave, respondeu-lhe:

— Há coisas mais simples que são crimes... Mas não falemos nisso, que é política, e a política, minha pequenita Cabri, não foi feita para as moças bonitas. Contai-me, se vos aprouver, a carinha que tínheis durante a grande aria fúnebre.

Ela fez uma careta tão cômica (uma careta de pequerrucha que está a arrebentar de riso sem lhe conhecer a causa e pelo mesmo motivo se contem) que o grave senhor, por sua vez, desatou as gargalhadas até as lágrimas.

Ora, não obstante esse amor de dois anos, e esse viver íntimo, demoisele Cabri só conhecia o amante por seu prenome, que era Étienne, o que, de resto, pouco ou mesmo nada a impressionou porque o Sr. Étienne lhe trazia sempre amêndoas e confeitos, fazendo-se passar por um simples homem de comércio.

Uma noite, porém, Cabri notou no peito do Sr. Étienne um rosário com o crucifixo. Era estranho, porque já ela não ignorava que a república proibira esse uso, considerando-o suspeito. Essa prova de religião a fez temer pela vida do seu bom homem, e também por sua própria vida... Ai, se lhe cortassem, a ela, a sua pequenina e linda cabeça! Que horror! Perder a sua cabecinha, que com tanto amor penteava e ornamentava de cabeleiras diversas, ora brancas, ora louras, ora negras, conforme os tipos a representar... Perder a sua cabecinha! A sua cabecinha de boneca!... Deus, que horror!... E deitou-se com febre, passou uma noite agitada.

Mas, o seu espanto foi maior quando viu o Sr. Étienne, ao levantar-se pela manhã, se ajoelhar junto aos pés da cama e fazer uma longa oração acompanhada de muitos sinais da cruz.

O terror apoderou-se da pequenina Cabri e, a primeira vez que cearam juntos, ela perguntou-lhe, discretamente, se não temia despertar suspeitas trazendo aquele rosário e fazendo orações tão ardentes!

— Sim — respondeu o Sr. Étienne. — É um crime trazer um crucifixo ao pescoço e mais imperdoável de rezar com fervor. Cai-se na suspeição... Mas... eu tenho este direito... O melhor, porém, é não falarmos nisso, minha pequena Cabri, que é política e a política não foi feita para as moças bonitas...

Ela calou-se, mas, desde então, a sua cabecinha de boneca encheu-se com a ideia da morte. Cabri, mau grado seu, não se podia furtar a estes pensamentos negros: volvia-os e revolvia-os sem cessar. E, de quando em quando, um calafrio a arrepiava toda só ao pensar naquela terrível máquina de morte de que ora tanto se falava e cuja imagem seus olhos constantemente viam em berloques e brincos. E obcecada por essa ideia, curiosa de vê-la no seu original, na sua tremenda verdade, Cabri chegou a ter coragem de, um dia, pedir ao Sr. Étienne que a levasse a assistir uma execução.

O Sr. Étienne respondeu-lhe:

— Far-me-eis o favor de vos calar! É indigno de uma moça honesta tal desejo...

Cabri obedeceu, seus lábios se fecharam. Mas, da sua cabecinha de boneca, não saiu aquela ideia. Ao contrário, parece que tomou maior vulto. Uma noite correu pelos bastidores, abalou todo o foyer, a notícia de que, no dia seguinte, iam guilhotinar a que fora Maria Antonieta. Muitas dessas demoiselles, que ali estavam, tiveram, em tempo passado, a honra de cantar e dançar diante da ex-rainha. E, no em tanto, preparavam-se para assistir o triste fim dessa infeliz! Cabri resolveu acompanha-las.

A angústia do que ela ia ver a fez levantar-se muito cedo, e ainda uma vez surpreendeu o Sr. Étienne a rezar devotamente com os repetidos sinais da cruz e beijos fervorosos ao crucifixo do pescoço.
O Sr. Étienne vestiu-se, abraçou-a paternalmente e houve um momento em que ela pareceu-lhe surpreender uma indecisão, uma como vontade de não sair. Isso contrariou a sua resolução da véspera, agitou-lhe os nervos. Por fim o Sr. Étienne partiu.

Cabri correu logo a vestir-se, e foi com surpresa que encontrou sobre um móvel a tabaqueira de ouro, com a miniatura da rainha, que o Sr. Étienne usava. Cabri meteu-a no seu saquitel para a restituir ao amante, se o encontrasse. Devia fazer-lhe falta.

*

Depois de duas longas horas de espera, a carreta fúnebre entrou na praça da República. Da carreta foi retirada uma pobre mulher envelhecida, de cabelos brancos, uma palidez de cera no rosto, e que de momento a momento fazia esforços para se ter aprumada. De repente, um clarão brilhou, um golpe surdo cortou o silencio, a multidão rompeu em uivos, e aclamações estrondaram, enquanto um homem, que estava no cadafalso, se abaixou, agarrou uma cabeça decepada e levantando o braço a expôs à contemplação do imenso povo.

Cabri deu um grito e caiu desmaiada: o homem vestido de negro, que suspendia a cabeça, era o seu amante.


Tradução de autor desconhecido.
Fonte: Fon-Fon, edição de 27 de agosto de 1910

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