OS PORCOS - Conto Clássico de Horror - Júlia Lopes de Almeida
OS PORCOS
Júlia Lopes de Almeida
(1862 – 1934)
A Artur Azevedo.
Quando a cabocla Umbelina apareceu grávida, o pai
moeu-a de surras, afirmando que daria o neto aos porcos para que o comessem.
O caso não era novo, nem a espantou, e que ele havia
de cumprir a promessa, sabia-o bem. Ela mesma, lembrava-se. Encontrara uma vez
um braço de criança entre as flores douradas do aboboral. Aquilo, com certeza,
tinha sido obra do pai.
Todo o tempo da gravidez pensou, numa obsessão
crudelíssima, torturante, naquele bracinho nu, solto, frio, resto dum banquete
delicado, que a torpe voracidade dos animais esquecera por cansaço e enfartamento.
Umbelina sentava-se horas inteiras na soleira da
porta, alisando com um pente vermelho de celuloide o cabelo negro e corredio. Seguia assim,
preguiçosamente, com olhar agudo e vagaroso, as linhas do horizonte, tugindo de
fixar os porcos, aqueles porcos malditos, que lhe rodeavam a casa desde manhã
até a noite.
Via-os sempre ali arrastando no barro os corpos
imundos, de pelo ralo e banhas descaídas, com o olhar guloso luzindo sob a
pálpebra mole e o ouvido encoberto pela orelha chata, no egoísmo brutal de
encontrar em si toda a tenção. Os leitões vinham por vezes, barulhentos e às
cambalhotas, envolverem-se na sua saia e ela sacudia-os de nojo, batendo-lhes
com os pés, dando-lhes com torça. Os porcos não a temiam, andavam perto,
fazendo desaparecer tudo diante da sofreguidão dos seus focinhos rombudos e
móveis, que iam e vinham grunhindo, babosos, hediondos, sujos da lama em que se
deleitavam, ou alourados pelo pó de milho, que estava ali aos montes,
flavescendo ao sol.
Ah, os porcos eram um bom sumidouro para os vícios
do caboclo! Umbelina execrava-os e ia passando de modo de acabar com o filho
duma maneira menos degradante e menos cruel.
Guardar a criança... mas como? O seu olhar
interrogava em vão o horizonte frouxelado de nuvens.
O amante, filho do patrão, tinha-a posto de lado...
diziam até que ia casar com outra!
Entretanto, achavam-na todos bonita, no seu tipo de
índia, principalmente aos domingos, quando se enfeitava com as maravilhas
vermelhas, que lhe davam colorido à pele bronzeada e a vestiam toda com um
cheiro doce e modesto...
Eram duas da madrugada, quando a Umbelina entreabriu
um dia a porta da casa paterna e se esgueirou para o terreiro.
Fazia luar; todas as coisas tinham um brilho
suavíssimo. A água do monjolo caía em gorgolões soluçados, flanqueando o rancho
de sapé, e correndo depois em fio luminoso e trêmulo pela planície fora. Flores
de gabiroba e de esponjeira-brava punham lençóis de neve na extensa margem do
córrego; todas as ervas do mato cheiravam bem. Um galo cantava perto, outro
respondia mais longe, e ainda outro, e
outro, até que as vozes dos últimos se confundiam na distância com os mais
leves rumores noturnos.
Umbelina afastou com a mão febril o xale que a
envolvia, e, descobrindo a cabeça, investigou com olhar sinistro o céu
profundo.
Onde se esconderia o grande Deus, divinamente
misericordioso, de quem o padre falava na missa do arraial em termos que ela
não atingia, mas a faziam estremecer?
Ninguém pode fugir ao seu destino, diziam todos;
estaria então escrito que a sua sorte fosse essa que o pai lhe prometia − de matar
a tome aos porcos com a carne da sua carne, o sangue do seu sangue?!
Essas coisas rolavam-lhe pelo espírito,
indeterminadas e confusas. A raiva e o pavor do parto estrangulavam-na. Não
queria bem ao filho, odiava nele o amor enganoso do homem que a seduzira.
Matá-lo-ia, esmagá-lo-ia mesmo, mas lançá-lo aos porcos... Isso nunca! E
voltava-lhe à mente, num arrepio, aquele bracinho solto, que ela tivera entre
os dedos indiferentes, na sua bestialidade de cabocla matuta.
O céu estava limpo, azul, num céu de janeiro,
quente, vestido de luz, com a sua estrela Vésper enorme e diamantina, e a Lua
muito grande, muito forte, muito esplendorosa!
A cabocla espreitou com olho vivo para os lados da
roça de milho, onde ao seu ouvido agudíssimo parecera sentir uma bulha
cautelosa de pés humanos: mas não veio ninguém, e ela, abrasada, arrancou o
xale dos ombros e arrastou-o no chão, segurando-o com a mão, que as dores do
parto crestavam convulsivamente. O corpo mostrou-se disforme, mal resguardado
por uma camisa de algodão e uma saia de chita. Pelos ombros estreitos
agitavam-se as pontas do cabelo negro e luzidio; o ventre pesado, muito
descaído dificultava-lhe a marcha, que ela interrompia amiúde para respirar
alto, ou para agachar-se, contorcendo-se toda.
A sua ideia era ir ter o filho na porta do amante,
matá-lo ali, nos degraus de pedra, que o pai havia de pisar de manhã, quando
descesse para o passeio costumado.
Uma vingança doida e cruel aquela, que se fixara
havia muito tempo no seu coração selvagem.
A criança tremia-lhe no ventre, como se pressentisse
que entraria na vida para entrar no túmulo, e ela apressava os passos nervosamente por sobre as
folhas da trapoeraba-maninha.
Ai, iam ver agora quem era a cabocla!
Desprezavam-na? Riam-se dela? Deixavam-na à toa como um cão sem dono? Pois que
esperassem! E ruminava seu plano, receando esquecer alguma minúcia...
Deixaria a criança viver alguns minutos, fá-la-ia
mesmo chorar, para que o pai lá dentro, entre o conforto do seu colchão de
paina, que ela desfiara cuidadosamente, lhe ouvisse os vagidos débeis e os
guardasse sempre na memória, como um remorso.
Ela estava perdida. Em casa não a queriam; a mãe
renegava-a, o pai batia-lhe, o amante fechava-lhe as portas... e Umbelina
praguejava alto, ameaçando de fazer cair sobre toda a gente a cólera divina!
O luar com a sua luz brancacenta e fria iluminava a
triste caminhada daquela mulher quase nua e pesadíssima, que ia golpeada de
dores e de medo através dos campos. Umbelina ladeou a roça de milho, já seca, muito
amarelada, e que estalava ao contato do seu corpo mal firme: passou depois o
grande canavial, dum verde d’água, que o luar enchia de doçura e que se alastrava pelo morro abaixo, até lá perto do
engenho, na esplanada da esquerda. Por entre as canas houve um rastejar de
cobras, e ergueu-se da outra banda, na negrura do mandiocal, um voo fofo de ave
assustada. A cabocla benzeu-se e cortou direito pelo terreno mole do feijoal
ainda novo, esmagando sob a sola dos pés curtos e trigueiros as folhinhas tenras
da planta ainda sem flor. Depois abriu lá em cima a cancela, que gemeu
prolongadamente nos movimentos de ida e volta, com que ela o impeliu para
diante e para trás, entrou no pasto da fazenda. Uma grande mudez por todo o
imenso gramado. O terreno descia numa linha suave até o terreiro da habitação
principal, que aparecia ao longe num ponto branco. A cabocla abaixou-se
tolhida, suspendendo o ventre com as mãos.
Toda a sua energia ia fugindo, espavorida com a dor
física, que se aproximava em contrações violentas. A pouco e pouco os nervos
distenderam-se e o quase bem-estar da extenuação fê-la deixar-se ficar ali,
imóvel, com o corpo na terra e a cabeça erguida para o céu tranquilo. Uma onda
de poesia invadiu-a toda: eram os primeiros enleios da maternidade, a pureza
inolvidável da noite, a transparência lúcida dos astros, os sons quase
imperceptíveis e misteriosos, que lhe pareciam vir de longe, de muito alto,
como um eco fugitivo da música dos anjos, que diziam haver no céu sob o manto
azul e flutuante da Virgem Mãe de Deus...
Umbelina sentia uma grande ternura tomar-lhe o
coração, subir-lhe aos olhos.
Não a sabia compreender e deixava-se ir naquela vaga
sublimemente piedosa e triste...
Súbito, sacudiu-a uma dor violenta, que a tomou de
assalto, obrigando-a a cravar as unhas no chão. Aquela brutalidade fê-la
praguejar e ergueu-se depois raivosa e decidida. Tinha de atravessar todo o
comprido pasto, a margem do lago e a orla do pomar, antes de cair na porta do
amante.
Foi; mas as forças diminuíam e as dores repetiam-se
cada vez mais próximas.
Lá embaixo aparecia já a chapa branca, batida do
luar, das paredes da casa.
A roceira ia com os olhos fitos nessa luz,
apressando os passos cansados. O suor caía-lhe em bagas grossas por todo o
corpo, ao tempo que as pernas se lhe vergavam ao peso da criança.
No meio do pasto, uma figueira enorme estendia os
braços sombrios, pondo uma mancha negra em toda aquela extensão de luz. A
cabocla quis esconder-se ali, cansada da claridade, com medo de si mesma, dos
pensamentos pecaminosos que tumultuavam no seu espírito e que a Lua santa e
branca parecia penetrar e esclarecer. Ela alcançou a sombra com passadas
vacilantes; mas os pés inchados e dormentes já não sentiam o terreno e
tropeçavam nas raízes das árvores, muito estendidas e salientes no chão. A
cabocla caiu de joelhos, amparando-se para a frente nas mãos espalmadas. O
choque foi rápido e as últimas dores do parto vieram tolhê-la. Quis reagir e
ainda levantar-se, mas já não pôde, e furiosa descerrou os dentes, soltando os
últimos e agudíssimos gritos da expulsão.
Um minuto de pois a criança chorava sufocadamente. A
cabocla então arrancou com os dentes o cordão da saia e, soerguendo o corpo,
atou com firmeza o umbigo do filho, e enrolou-o no xale, sem olhar quase para
ele, com medo de o amar...
Com medo de o amar!... No seu coração de selvagem
desabrochava timidamente a flor da maternidade. Umbelina levantou-se a custo com o
filho nos braços. O corpo esmagado de
dores, que parecia esgarçarem-lhe as carnes, não obedecia à sua vontade. Lá
embaixo, a mesma chapa de luz alvacenta acenava-lhe, chamando-a para a vingança
ou para o amor. Julgava agora que se batesse àquelas janelas e chamasse o
amante, ele viria comovido e trêmulo beijar o seu primeiro filho. Aventurou-se
em passadas custosas a seguir o seu caminho, mas voltaram-lhe depressa as dores
e, sentindo-se esvair, sentou-se na grama para descansar. Descobriu então a
meio o corpo do filho; achou-o branco, achou-o bonito, e num impulso de amor
beijou-o na boca. A criança moveu os lábios na sucção dos recém-nascidos e ela
deu-lhe o peito. O pequenino puxava inutilmente, a cabocla não tinha alento, a
cabeça pendia-lhe numa vertigem suave, veio-lhe depois outra dor, os braços
abriram-se-lhe e ela caiu de costas.
A lua sumia-se, e os primeiros alvores da aurora
tingiram dum róseo dourado todo o horizonte. Em cima, o azul carregado da noite
mudava para um violeta transparente, esbranquiçado e diáfano. Foi no meio
daquela doce transformação da luz que Umbelina mal distinguiu um vulto negro,
que se aproximava lentamente, arrastando no chão as mamas pelancosas, com o
rabo fino, arqueado sobre as ancas enormes, o pelo hirto, irrompendo ralo da
pele escura e rugosa, e o olhar guloso, estupidamente fixo: era uma porca.
Umbelina sentiu-a grunhir. Viu confusamente os
movimentos repetidos do seu focinho trombudo, gelatinoso, que se arregaçava,
mostrando a dentuça amarelada, forte. Um sopro frio correu por todo o corpo da
cabocla, e ela estremeceu ouvindo um gemido doloroso, dolorosíssimo, que se
cravou no seu coração aflito. Era o filho! Quis erguer-se, apanhá-lo nos
braços, defendê-lo, salvá-lo... Mas continuava a esvair-se, os olhos mal se
abriam, os membros lassos não tinham vigor, e o espírito mesmo perdia a noção
de tudo.
Entretanto, antes de morrer, ainda viu, vaga,
indistintamente, o vulto negro e roliço da porca, que se afastava com um montão
de carne perdurado nos dentes, destacando-se isolada e medonha naquela imensa
vastidão cor-de-rosa.
Ah, esse não tinha visto aqui no site. Mas essa autora é incrível e detalhe: na época escrever contos assim, sendo uma mulher, não era fácil. Note que esses autores meio que obscuros , estão voltando a ser lidos, graças aos sites literários como o vosso.
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