PIERRÔ - Conto Clássico Cruel - Guy de Maupassant
PIERRÔ
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
Madame
Lefèvre era uma senhora do campo, uma viúva, uma destas semicampesinas que usam
fitas e chapéus de folhos, destas pessoas que falam com pretensões, tomam ares
grandiosos em público e ocultam uma alma pretensiosamente brutal sob aparências
cômicas e variadas, da mesma maneira que encobrem mãos grossas e vermelhas com
luvas de seda crua.
Tinha
por criada uma camponesa simplória chamada Rose.
As
duas mulheres habitavam uma casinha de persianas verdes ao longo da estrada, na
Normandia, no centro do país de Came.
Como
possuíam um jardinzinho estreito, defronte da casa, cultivavam aí alguns
legumes e hortaliças.
Ora,
certa noite surrupiaram-lhe uma dúzia de cebolas. Rose, assim que deu pelo
furto, correu a prevenir a senhora, que desceu ao jardim em saia curta.
Foi
uma desolação e um terror. Haviam furtado, furtado, furtado Madame Lefèvre! Já
se vê que havia larápios ali perto e podia ser que voltassem.
E
as duas mulheres, assustadas, contemplavam os vestígios dos passos,
tagarelavam, supunham várias coisas.
—
Olhe, passaram por aqui. Puseram os pés do muro; saltaram para o alegrete.
E
o futuro aterrorizava-as. Como era possível agora dormirem sossegadas?!
O
boato do roubo espalhou-se. Os vizinhos vieram verificar, discutiram também. E
as duas mulheres explicavam a cada recém-chegado as suas observações e as suas
ideias.
Um
caseiro que morava ao lado deu este conselho:
—
A senhora deveria ter um cão.
Isso
era verdade. Deveriam ter um cão, ainda que apenas para dar o alerta. Não era
preciso nenhum canzarrão. Valha-me Deus! O que haviam de fazer a um canzarrão? O
sustento as arruinaria! Mas um cãozinho — na Normandia diz-se cãezinho — que latisse.
Logo
todos foram embora e Madame Lefrève discutiu muito tempo essa ideia do cão.
Depois de refletir, fazia mil objeções, aterrorizada pela imagem de uma tigela
cheia de comida. Porque era desta raça parcimoniosa de damas campesina que
trazem sempre miúdos na algibeira para darem esmolas ostensivamente aos pobres
das estradas e, na igreja, no peditório de domingo.
Rose,
que gostava de animais, deu suas razões e defendeu-as astuciosamente. Por
consequência, decidiu-se que teriam um cão. Um cão pequeno.
Começaram
à procura dele, mas acharam apenas grandes devoradores de sopa que eram de
arrepiar. O tendeiro de Rolleville tinha um, pequenino. Mas exigia por ele dois
francos para pagar as despesas da criação. Madame Lefrève declarou que estava
disposta a sustentar um cãezinho, mas
que não queria comprá-lo.
Ora,
o padeiro, que estava ciente dos acontecimentos, trouxe, numa manhã, em sua
carroça, um animalzinho estranho, todo amarelo, quase sem patas, com um corpo
de crocodilo, um focinho de raposa e uma cauda de trombeta, um verdadeiro
penacho, tão grande como ele. Um freguês queria desfazer-se do animal. Madame
Lefrève achou lindo aquele gozo imundo que não lhe custava dinheiro. Rose
beijou-o e perguntou como se chamava.
O
padeiro respondeu:
— Pierrô.
Instalaram-no
num velho caixote de sabão, ofereceram-se água primeiro. Bebeu. Em seguida,
apresentaram-lhe um bocado de pão. Comeu. Madame Lefèvre, inquieta, deve uma
ideia:
— Quando já estiver acostumado à casa, vamos
soltá-lo. Ele há de encontrar comida, farejando aí pelas terras.
Soltaram-no,
efetivamente, o que não impediu que ele andasse esfomeado. Quanto a latir, não
o fazia senão para reclamar a sua ração. Mas, neste caso, ladrava com
verdadeiro furor.
Todo
mundo podia entrar no jardim. Pierrô recebia todos os recém-chegados com festas
e afagos, e ficava absolutamente mudo.
Madame
Lefrève, apesar disso, acostumara-se ao animal. Chegava até a gostar dele, e
dar-lhe com a mão, de vez em quando, bocadinhos de pão ensopados no molho de
seu guisado.
Mas
nunca se lembrara do imposto, e quando lhe pediram oiti francos — oito francos,
santo Deus! —, por aquele enguiço que nem mesmo ladrava, esteve quase a
desmaiar de surpresa.
Resolveram
imediatamente desembaraçar-se de Pierrô. Todos os habitantes dos arredores o
recusaram. Então, à falta de outro meio, decidiu-se que fariam “piquer du mas”.
“Piquer
du mas” é “comer marga”. Quando alguém quer ver-se livre de um cão, obriga-o a
“piquer du mas”.
No
meio de uma vasta planície, avista-se uma espécie de cabana, ou antes um
pequeno telhado de colmo assentado no chão. É a entrada da margueira. Um grande
poço desce direto vinte metros debaixo da terra e vai dar numa série de
galerias de minas.
Desce-se
a essa pedreira uma vez por ano, na época em que se margam as terras. O resto
do tempo serve de cemitério aos cães condenados. E, muitas vezes, quando se
passa junto do edifício, sentem-se uivos lastimosos, queixumes suplicantes,
latidos furiosos ou desesperados.
Os
cães de caça e o gado fogem, espavoridos, das proximidades dessa cova
assustadora. E quando alguém se curva por cima da abertura, sente o cheiro
abominável da podridão.
Ali,
no meio da sombra, desenrolam-se dramas horríveis.
Quando
um animal agoniza, no fundo, há dez ou doze dias, alimentando-se com os restos
de seus predecessores, outro animal maior, mais vigoroso, decerto, é lançado no
poço repentinamente. Estão ambos sós, esfaimados, de olhos luzentes.
Observam-se mutuamente, seguem-se e hesitam, ansiosos. Mas a fome os excita:
atacam-se, lutam durante muito tempo, desesperados. E o mais forte come o mais
fraco: devora-o vivo.
Logo
que resolveram levar Pierrô a “piquer du mas”, tratou-se de procurar o
executor. O encarretado de reparar a estrada pediu dez soldos pelo trabalho.
Madame Lefèvre achou isto um exagero. O garoto vizinho contentava-se com cinco
soldos. Ainda era muito. E, como Rose observava que era melhor levarem-no elas
mesmas, porque assim não seria maltratado pelo caminho e prevenido da sorte que
o esperava, resolveram ir ambas, ao anoitecer.
Nesta
tarde ofereceram-lhe uma bela sopa, com dois dedos de manteiga. Ele devorou até
a última gora e, quando estava agitando a cauda de contentamento, Rose o pegou
e o embrulhou no avental.
Caminhavam
rapidamente, como ladras, através da planície. Não tardou que avistassem a
margueira e se aproximassem dela. Madame Lefèvre debruçou-se para ouvir se
algum animal gemia. Não! Não havia nenhum! Pierrô ficaria só. Então Rose, que
chorava, beijou-o e, sem seguida, deitou-o pela abertura. E curvaram-se ambas,
de ouvido à escuta.
Primeiro
ouviram um ruído surdo. Em seguida, o grito agudo, dilacerante, horrível, de um
animal ferido. Depois, uma série de gritinhos dolorosos. Em sequência, chamadas
desesperadas, súplicas de cão, com a cabeça erguida para a abertura.
Como
ele gemia agora!
As
duas mulheres sentiram-se possuídas de remorso, de pavor, de um medo louco e
inexplicável. E fugiram correndo. E, como Rose ia mais depressa, Madame Lefèvre
gritava:
— Espera aí, Rose! Espera aí!
Nessa
noite, tiveram pesadelos horríveis.
Madame
Lefèvre sonhou que ia sentar-se à mesa para tomar a sopa, mas, quando
destampava a terrina, Pierrô estava lá dentro. Saltava e mordia-a no nariz.
Acordou
e pareceu-lhe que ainda o ouvia ganir. Pôs-se à escuta: enganou-se.
Tornou
a adormecer e viu-se em uma grande estrada, uma estrada interminável, por onde
ela caminhava. De repente, no meio do chão, avistou um cesto de junco, um
grande cesto caseiro, abandonado. E aquele cesto a assustava.
Contudo,
acabou por ouvi-lo, e Pierrô, que estava dentro, agachado, agarrava-lhe a mão e
não a largava. E ela fugia, aflita, levando o cão pendurado no braço, com os
dentes cerrados.
De
madrugada, levantou-se quase louca e correu à margueira.
O
cão gania. Gania ainda e ganira a noite toda. Madame Lefèvre começou a soluçar
e chamou-o com mil palavras carinhosas. Ele respondeu com toda as ternas
inflexões da sua voz de cão.
Ela,
então, quis tornar a vê-lo, prometendo a si mesma fazê-lo feliz até a morte.
Foi
à casa do homem encarregado da extração da marga e contou-lhe o acontecido. O
homem ouvia sem dizer palavra. Quando ela acabou, o homem lhe disse:
— A senhora quer o seu cãozinho? São quatro
francos.
Madame
Lefèvre teve um sobressalto. A dor desapareceu imediatamente.
— Quatro francos? Era o que me faltava! Quatro
francos!
— A senhora julga — respondeu o homem — que eu
vou buscar as minhas cordas, minhas manivelas, arranjar tudo, e ir lá embaixo
com o rapaz, e ser mordido, ainda por cima, pelo raio do cão, só para lhe dar
gosto? Que não o jogasse lá!
Ela
foi-se embora indignada.
— Quatro francos!
Assim
que chegou a casa, chamou Rose e contou-lhe as pretensões do homem. Rose,
sempre resignada, repetia:
— Quatro francos! É muito dinheiro, minha
senhora.
Depois
acrescentou:
— E se a gente levasse de comer ao pobre
cãozinho, para ele não morrer assim?
Madame
Lefèvre aprovou, muito contente. E puseram-se ambas a caminho, com um grande
pedaço de pão com manteiga.
Cortaram
aos bocadinhos e deitava-os, um após outro, falando sempre com Pierrô. E logo
que engolia um bocado, gania para reclamar o seguinte.
Voltaram
à noite, e, no dia seguinte, e todos os dias. Mas já não faziam senão uma
jornada em cada um.
Ora,
uma manhã, no momento em que deixaram cair o primeiro bocado, ouviram, de
repente, um latido formidável dentro do poço. Eram dois! Tinham arrojado lá um
outro cão, um enorme canzarrão.
Rose
gritou:
— Pierrô!
E
Pierrô ganiu, ganiu. Começaram a deitar-lhe a comida. Mas, a cada bocado que
caía, distinguiam perfeitamente uma algazarra terrível, depois os gritos
lastimosos de Pierrô, mordido pelo companheiro, que, sendo mais forte, comia
tudo.
Era
em vão que elas explicavam:
— É para ti, Pierrô!
Pierrô
não apanhava nada, era evidente.
As
duas mulheres olhavam uma para outra, interditas.
Madame
Lefèvre declarou, em tom azedo:
— Mas eu não posso sustentar todos os cães que
atirarem aqui. Temos de renunciar a isto.
E,
sufocada com a ideias de todos esses cães vivendo à sua custa, foi-se embora,
levando até o resto de pão, que foi comendo pelo caminho.
Rose
seguiu-a, enxugando os olhos com o canto do avental azul.
Tradução de autor
desconhecido do séc. XIX.
Fonte: “A Leitura”,
Tomo VIII, 1895
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