A VALSA E A MORTALHA - Conto Clássico de Terror - Domingos Manoel de Oliveira Quintana
A
VALSA E A MORTALHA
Domingos
Manoel de Oliveira Quintana
(Sec.
XIX)
I
Quem
é aquele vulto que se debruça, em hora tão avançada, sobre a borda de um abismo
insondável e que parece medir-lhe a profundidade?
Vejamos
de perto.
É
uma jovem de dezoito anos, pura e cândida, que chora. Chama-se Helena. É bela e
poderia ser feliz.
Junto
a si há uma vestimenta fatal que a jovem contempla soluçando. Irá vesti-la. É
uma mortalha.
À
beira do abismo, a jovem mulher dirige a Deus uma prece por sua alma. Pede-lhe
que não desampare o seu pobre e velho pai, que amanhã chamará em vão pela
querida filha. Feita a oração, resta-lhe, apenas, lançar-se no abismo e
desparecer para sempre.
Sente,
porém, um rumor na folhagem. Volta-se, confusa, e vê aparecer um estanho que é
tão jovem quanto ela. Ambos ficam surpresos, porque procuravam o desfiladeiro
para o mesmo fim.
Chamava-se
Ernesto. Era um jovem esbelto, pálido, de olhos expressivos, cabelos negros e
lábios breves. Criado ao lado da bela Adelina, sob os mesmos cuidados e as
mesas impressões, e dirigidos por iguais sentimentos, ambos conheceram, bem
depressa, que uma corrente mais forte que a simples amizade prendia a um o
coração do outro.
Mas
Adelina o rejeitou, pois Ernesto não era glorioso o bastante para desposá-la.
Ela queria um amante herói.
Na
noite anterior, houve um festejo no palácio de um patriota, a flor da nobreza
guerreira.
Entre
os jovens cavalheiros, havia um que reunia em si todos os predicados para
satisfazer a ambição da inconstante Adelina. Era jovem, belo, tinha a fama de
herói e um nome glorioso. Bem depressa eles se avistam, o cavalheiro não se
separa mais de sua dama, Adelina só vê o seu herói.
A
nova conquista do cavalheiro circula todo o salão e é repetida de boca em boca.
Fala-se já em um próximo casamento, e esta notícia corre até por fora do baile,
e vai entrar em um solitário caramanchão onde Ernesto lastima-se, em silêncio,
por não poder dançar com a sua Adelina.
Com
essa notícia cruel, ele ergue-se como se tocado por um choque elétrico. Não
quer ouvir mais nada. Entra, apressado, no baile e procura Adelina.
A
orquestra tocava nesse momento uma calorosa valsa, e os pares passavam girando
à sua frente, embriagados de delícias, respirando o mesmo ar, enlaçados
voluptuosamente.
Ernesto
chegou à sua amada.
—
Adelina — disse ele —, dança comigo esta valsa?
O
cavaleiro soltou uma gargalhada.
—
Logo — respondeu-lhe Adelina, rindo também.
—Logo?
Logo quando?
—
Quando você for do outro mundo.
—
Sim, meu caro — disse-lhe também o estranho. — Quando você for do outro mundo.
Mas, até lá, tenha paciência.
E
afastaram-se de Ernesto, rindo às gargalhadas.
Ernesto
ficou como se ferido por um raio. Duas grossas lágrimas caíram-lhe dos olhos,
lançadas pela dor e pela raiva. Depois, tomou uma resolução desesperada. Fugiu
do baile, não apareceu todo o dia em casa e, à noite, dirigiu-se ao abismo
fatal, onde encontrou-se com a desventurada Helena.
—
Ela vai ser, em breve, a esposa de Justiniano — disse ele, após narrar a Helena
a sua história.
—
Justiniano? — exclamou helena, ao ouvir esse nome.
—
Sim, é esse o seu novo amante.
Helena
ergueu-se pálida. Derramava uma torrente de lágrimas.
—
Justiniano devia conduzir-me, hoje, ao altar. Ai de mim! Agora compreendo tudo!
—
Ele? — perguntou Ernesto.
—
Sim, o traidor. E eu o amava tanto! Cedi ao seu amor!
—
Oh, desgraçado!
—
Mas me prometeu que eu seria, hoje, a sua mulher. Esta manhã, escrevi-lhe. Ele
me respondeu: “Helena, torne-se digna do que eu te
remeto; então, venha reclamar os seus direitos.” O que ele me remetia,
senhor, era esta mortalha. Justiniano repudiava a pobre Helena porque já amava
uma outra mulher!
Houve
um momento consagrado às lágrimas.
—
Só me resta morrer! — murmurou Helena.
E
dirigiu-se, resoluta, à boca do abismo.
—
Espere, irmã — disse Ernesto. — Eles vão se unir na vida para se esquecerem de
nós. Unamo-nos, pois, na morte para cuidarmos somente deles!
—
Unamo-nos! — disse Helena, dando-lhe a mão que ele apertou na sua.
Avançaram
então um passo e desapareceram no fatal abismo.
II
Um
ano depois deste fúnebre acontecimento, as portas de um magnífico palácio se
abriam para dar entrada a inúmeros convidados, que num baile de máscaras deviam
festejar o casamento de Justiniano e Adelina.
Um sussurro geral ergueu-se de todos os lados
quando apareceu um novo cavalheiro, e sua fantasia era tão sinistra que as
pessoas recuavam quando ele passava.
Era
alto, magro em extremo, trajando roupas cor de sangue e, pendendo-lhe do chapéu,
duas negras plumas caiam-lhe até os ombros. Por entre as aberturas da sua máscara,
também negra, não apareciam indícios da existência de uns olhos que devessem
brilhar à luz do dia. E quem por essas aberturas quisesse interrogar o olhar do
cavalheiro, somente interrogaria, em vez de uns olhos, duas covas escuras que,
sem luz, apareciam sob a máscara do desconhecido.
Não
se sentia dele nem um arfar do peito, nem um frouxo respirar, e nem um só
estremecimento muscular. Andava, cruzava os braços, e não fazia mais nada.
Pouco
a pouco, o temor converte-se em admiração.
—
É um convidado de bom gosto que se disfarça excelentemente — diziam alguns.
Outros, porém, o julgavam estrangeiro, e quase todos concordavam que não seria
fácil adivinhar quem era o misterioso cavaleiro.
As
damas, movidas pela curiosidade, disputavam para saber quem seria a primeira a
penetrar o incógnito e revelar seu nome à multidão. Algumas, mais
desembaraçadas, já o haviam convidado para um passeio, ou para uma contradança.
Mas cavalheiro permanecia sempre impassível, nem parecia ouvi-las!
Nesse
instante, Justiniano apareceu ao lado de Adelina; ambos sem máscaras para serem
conhecidos, e trajando belas fantasias. Justiniano representava um altivo turco
e Adelina uma gentil pastora da Alsácia.
A
multidão saudou-os com entusiasmo. Os noivos tornaram a pôr as suas máscaras, a
orquestra rompeu em uma calorosa valsa, e os pares enlaçados engolfaram-se nas
delícias da dança arrebatadora.
Adelina
viu, então, um cavalheiro oferecer-lhe o braço em silêncio, como que a convidando
a participar com ele daquela dança, a cujos encantos os velhos chamam de
loucura.
Ela, só cuidando da sua ventura, louca de
alegria leviana, aceitou esse mudo convite e, nos braços do seu cavalheiro,
confundiu-se nos delírios de uma valsa ofegante, por entre a diversidade dos valsistas.
Seu par era o cavalheiro sinistro!
Com
o braço esquerdo, ela cingiu a sua cintura e, alçando o direito, apertou em sua
mão a mão esquerda do cavalheiro.
Adelina
estremeceu.
A
mão que ela apertava era mirrada e fia, e a cintura que cingia com seu braço parecia
a de um esqueleto!
Quis
gritar.... a voz prendeu-se garganta.
Uma
das portas do salão, que se abria para um jardim, estava deserta. O cavalheiro,
sempre valsando, por lá saiu com a sua dama... Ninguém percebeu isto, a dança
lhes atraía as atenções.
Mísera
Adelina! Ela vai quase sem sentidos, falta-lhe ar, e o temor agita os seus
delicados membros. Passam o jardim, internam-se por um bosque emaranhado, e a valsa
continua sempre, subindo ou descendo um penhasco, saltando ou pulando, por
serras ou vales!
Pararam,
enfim, à borda de um abismo.
O
cavalheiro estreita-a em seus braços, pretende beijá-la amorosamente e, nesse
instante, a sua máscara cai aos pés de Adelina, que solta um grito pavoroso.
A
cabeça do seu cavalheiro era uma caveira horrenda, que movia uma grande
queixada buscando proferir frases que ela, a custo, percebia.
—Adelina
— disse-lhe, então o horrível esqueleto, sentando-se e fazendo-a sentar-se a
seu lado — dança comigo esta valsa?
E
prosseguiu, simulando um diálogo:
—
Logo.
—
Logo? Logo quando?
—
Quando você for do outro mundo.
Os
dentes da caveira rangeram a estalar. Adelina quiz fugir, e o horrendo fantasma
segurou-a pelos cabelos.
—
Piedade, Ernesto! — murmurou a mísera, caindo de joelhos.
—
Não! Não!
E
o fantasma precipitou-a no fundo do abismo.
Era
meia noite.
IV
A
essa mesma hora dava-se por findo o baile no palácio de Justiniano. Pouco a
pouco, os salões tornam-se desertos: apenas uma ou outra sombra fugitiva via-se
escoar sutilmente do recinto. Nem mais um som de instrumento musical, nem mais
um espirituoso gracejo através de uma máscara de seda.
A
dama que conduzira a noiva ante o altar procura no salão a encantadora pastora
da Alsácia para leva-la ao leito nupcial. Reconheceu esse traje em alguém que
passava, e convidou-a a segui-la. Na porta da câmara, a pastora, ainda sem
tirar a máscara, inclinou-se, e a oficiosa dama, julgando que ela a despedia,
retirou-se dizendo-lhe:
—
Boa noite, minha filha.
E
deixou-a só.
Entrementes,
após livrar-se do mordomo inoportuno, Justiniano pôs-se a meditar.
Seu
pensamento é um mar de delícias, e seu coração um porto de esperanças. Adelina
está para o seu amor como a vaga para o oceano.
O
cavalheiro entrou na alcova.
—
Ela está dormindo! — diz ele, contemplando o vulto envolvido nos lençóis.
Justiniano
aproximou-se do leito.
O
coração quer saltar-lhe do peito, a extrema ventura o faz palpitar
violentamente.
—
Oh, Adelina! Oh, meu anjo, acorde.... Sou eu, o seu Justiniano.
Sempre
o mesmo silencio. Nem um só movimento anunciou que suas palavras tivessem sido
ouvidas. Ele dirige-se, então, a uma harpa para despertar a sua noiva, cantando
uma melodia que compusera para ela.
Um
pequeno bilhete está metido entre as cordas.
Justiniano
vai lê-lo. Ele diz assim: “Helena, torne-se digna do que eu te remeto; então,
venha reclamar os seus direitos.” Ele reconhece aquela letra, empalidece, e uma
ideia cruel o preocupa. Justiniano corre para o leito conjugal. Quer ocultar o
seu temor e os seus remorsos nos braços da sua noiva.
Eis
que os lençóis se agitam, caem por terra.
Um
esqueleto horrível ergue-se e senta-se no leito.
O jovem recua horrorizado e quer fugir. Mas é inútil: o ressequido fantasma já
o tem seguro em seus braços, e lhe apresenta uma mortalha manchada de sangue.
—
Olhe, você me pertence! — disse-lhe o espectro com voz sinistra. — E eu venho
reclamar os meus direitos!
—
Helena! — exclamou o desgraçado, caindo sem sentidos.
—Sou
a sua noiva! Venha....
E
levou-o de rastros até o abismo fatal.
Chegados
ali, precipitou-o, e o fez rolar até o fundo, onde ele se fez em pedaços.
No
outro dia, ninguém soube dizer o que era feito dos noivos.
Fonte: “Correio das
Modas”, 1854. A presente edição é uma versão condensada e adaptada do original.
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