A VINGANÇA DO SENHOR DE VERMANDOIS - Conto Clássico de Horror - Pedro María Olivé
A
VINGANÇA DO SENHOR DE VERMANDOIS
Pedro
María Olivé
(1767
– 1843)
Tradução
de Paulo Soriano
Imaginem um antigo castelo situado em meio a um bosque sombrio e melancólico. Suas altas ameias dominam as árvores frondosas. Vê-se uma ponte levadiça sustentada por fortes correntes. Adiante está a praça de armas, onde os cavaleiros costumam exercitar-se em combates simulados. Um majestoso silêncio reina nesta solidão. Sente-se um certo pavor ao entrar neste recinto.
Tudo
anuncia a morada isolada de um dos antigos cavaleiros. De fato, é o castelo de
Eudes, senhor de Vermandois.
Acompanha-o
nesta fortaleza a sua esposa Gabrielle de Levergies, mais conhecida por sua formosura
que por seu ilustre nascimento.
Esta
senhora fora, muitas vezes, o objeto de grandes e magníficas festas. O castelo
ressoava então com vozes de alegria: tudo era música e dança. Lá se reunia a
brilhante juventude da Provença.
O
magnífico Eudes acolhia os seus hóspedes com esplendor. Estes se divertiam por
muitos dias em festas e torneios.
Gabrielle,
acompanhada das damas de seu feudo, a tudo assistia numa formosa galeria. Mas,
agora, Gabrielle nela não mais assoma. Recolhida nos mais solitários rincões,
apenas chora e suspira. Já não ressoam no castelo mais que seus suspiros e
lamentos. Gabrielle não vê mais o seu amado, o elegante jovem Raoul de Couci,
ao qual consagrou a sua primeira e única paixão. Razões de estado,
circunstâncias cruéis e inevitáveis, obrigaram-na a dar a sua mão ao conde de
Vermandois. Mas quem poderá mudar os corações? O de Gabrielle é e será sempre
do amável Raoul.
Raoul
marchou, seguido de um brilhante exército, para as remotas regiões da Ásia. Em
seu peito se distingue a cruz vermelha, símbolo da cruzada.
Ah,
o quão terna foi a despedida destes dois amantes! Raoul se aparta do caminho,
disfarça-se. Somente um criado o acompanha. Penetra por bosques sombrios.
Aproxima-se silenciosamente, com o passo trêmulo, do castelo. O farfalhar das
árvores o inquieta. E o crocitar do mocho agourento o enche de pavor. Uma luz
vacilante o conduz ao pé de uma ameia. Abre-se uma janela. Ele distingue, entre
as sombras, a silhueta da bela Gabrielle.
Eles
querem falar-se e choram. O coração bate no peito e anuncia sinistros
presságios.
—
Ah, eu te perco para sempre! — disse a dama. — Esta é a minha última despedida.
Não voltarei a ver-te mais. Irás atravessar pélagos imensos, a sulcar os mares
desconhecidos. Quanto perigos te aguardam! Estremeço somente em imaginá-los. As
penas de uma longa viagem, a perfídia dos gregos, a peste, os males que
assaltam os exércitos em tão extensas travessias. Ah, quão poucos são os que
retornam de uma expedição em que o perigo equivale à glória! E tu serás um desses
poucos? Tua coragem, teu espírito, tua honra irão arrastar-te aos mais
sangrentos combates. Buscarás as ações mais perigosas... Ah, querido Raoul, tu
não consideras que a minha vida se subordina
à tua.
Gabrielle
não pôde prosseguir. As ideias terríveis transtornam os seus sentidos. Treme,
agita-se, desmaia.
O
jovem senhor de Conci contempla a sua dama no limiar da morte. Hesita em seguir
para a guerra. Seus olhos, fixos em Gabrielle, anunciam a terrível agitação de
seu peito, a profunda meditação em que se abisma.
—
Não! — disse resoluto e com ar intrépido. — O amor não me fará faltar à minha
honra e à minha glória. Marchemos à guerra.
Sem
aguardar que Gabrielle voltasse a si, sem olhar para ela, separa-se pressuroso
daquelas paragens. A ideia da honra o ampara. Não dá lugar a reflexões
contrárias. O coração é arrancado de seu peito, despedaçado. Ele se vê morrer,
mas segue em frente.
Já
estava Gabriel na Ásia, mas conservava consigo a imagem de Gabrielle. Sente o
castelo próximo de si. Parece-lhe que apenas deu alguns passos. Permanece no
mesmo transtorno, na mesma agitação. Em nada a suas paixões arrefeceram.
Busca,
furioso, os combates. Lança-se aos maiores perigos para acabar com uma vida que
é apenas um tormento cruel.
Voltemos
a Gabrielle.
Suas
criadas lhe dão prontos e eficazes socorros. Recobra os sentidos. Abre os olhos,
que procuram Raoul e não o encontram. Cai de novo em seu desmaio.
—
Por que não me deixais morrer? — disse ela aos que, interessados em sua saúde,
buscam e solicitam seu alívio. — Vida de
um contínuo padecer não é vida. É mil vezes mais dolorosa que a morte!
Realmente,
desde então Gabrielle passa seus tristes dias num contínuo padecer, num eterno
suspirar. Retirada no mais escuro e lúgubre quarto do castelo, longe de suas
gentes, parece sepultada em vida.
Compraz-se
em renovar ideias que aumentam e agravam o seu mal. Suas criadas a surpreendem
ora a contemplar e banhar de lágrimas o retrato de Raoul, ora a percorrer os
lugares em que costumava falar-lhe. Outras vezes, viam-na assomada à grade da
fatal despedida. Seus olhos, eclipsados por ternas lágrimas, seguem a trilha
que se perde na profusão do bosque e creem descobrir o objeto de suas ânsias.
Eudes
estava, há algum tempo, ausente do castelo. Quando volta, as cruéis suspeitas dilaceram
o seu coração. Não encontra em sua mulher a antiga alegria. Gabrielle
dissimula, mas, ainda assim, Eudes vislumbra em sua esposa um fundo de
melancolia e dor.
Já
havia tido ligeiros indícios do amor de Gabrielle e Raoul. Sabe que este,
seguindo às cruzadas, não passou distante do castelo. Um vassalo disse-lhe que
vira Raoul percorrer disfarçado os bosques que rodeiam a fortaleza,
aproximar-se das ameias e falar com uma dama.
O
coração de Eudes arde de ciúmes. Espiona todos os passos, todas as ações de sua
esposa. E a surpreende banhada de lágrimas. Acha-a, muitas vezes, assomada à
grade da janela que domina o caminho seguido pelos cruzados.
Quer
esclarecer ainda mais as suas desconfianças. Fala-se dos cruzados, das
expedições à Ásia. Inventam-se tristes notícias: umas vezes diz-se que os
gregos acabaram com eles; noutras, assegura-se que os principais cavaleiros
pereceram em um combate. Alguém se refere, como se por casualidade, ao
cavaleiro de Conci. Gabrielle escuta com atenção, põe-se pálida, perturba-se.
Retira-se para derramar livremente as suas lágrimas, para desafogar o seu peito
com ternos suspiros.
Eudes
firma-se em suas ideias. Seus espiões enchem os caminhos e, às vezes, ele percorre,
sozinho, no silêncio da noite, os arredores do castelo.
Certa
noite, vê um escudeiro, que, tomando uma trilha e ocultando-se na densidade dos
bosques, aproxima-se do castelo. Segue-lhe os passos. Vê que este rodeia as
muralhas e fita, com atenção, as janelas.
Eudes
junta a sua gente, cerca o escudeiro e o captura. E o conduz a uma sala onde,
sob a luz, reconhece nele o pajem do senhor de Couci. Manda que o revistem. Com
ele encontram uma carta e um pequeno cofre de prata.
Eudes,
agitado de furor, rompe impacientemente o selo e lê o seguinte:
“Ah,
minha querida Gabrielle! Tuas suspeitas eram demasiadamente certas. Raoul não existe mais.
Ditoso instante o de minha despedida, que não pude prolongar por séculos
eternos. Ó, honra fatal! Ela me arrancou de teus braços. Rendeu o meu amor. Eu
te deixei a morrer. Meu coração não podia estar sem ti. Parecia que o
arrancavam de meu peito. Caminhava sem saber para onde. O escudeiro guiava os meus
passos. Queria voltar para resgatar a minha vida. Havia perdido o uso de meus
sentidos. Sentia uma angústia espantosa.
Assim
me achei na Ásia. Mas — ai, Gabrielle! — um mar imenso me separava de ti. Eu
pude fugir de tua companhia, mas minha imaginação, meu coração, meus sentidos
estavam todos no fatal castelo de Vermandois. Eu ouvia as tuas palavras;
via-te.
Volto
aos combates, busco os perigos, persigo uma morte que me liberte de uma odiosa
existência... Ah, já a achei. Fui ferido mortalmente. Combati com honra. Logrei
aplausos. Fui visto como um herói. O nome de Gabrielle foi a senha fatal que
fez tremer o campo inimigo. Imagem bela e amável, tu foste fatal para o
exército turco. Meu furor, meu amor, o nome de Gabrielle sacrificaram milhares
de inimigos.
Meu
braço não tombaria definitivamente antes de derramar abundantemente o sangue
inimigo.
Estou
coberto de feridas mortais. Mas morrerei amando Gabrielle. Como poderia
privar-te de um coração que sempre foi teu? Que ache em ti a sua sepultura.
Quem melhor o estimará? Meu escudeiro fez-me um solene juramento de apresentá-lo
aos teus pés.
Recebe
com o meu coração as preciosas joias, ditosos presentes que recebi de tuas
mãos. Elas têm sido meu único consolo de tua terrível ausência. Estão tingidas
de meu sangue. Eram o meu brilhante adorno no dia do combate. E não se
separarão de mim até que haja exalado o último suspiro.
Amada
Gabrielle, as pálidas sombras da morte giram ao meu redor. Minhas ideias se
confundem. Posso apenas escrever-te o último adeus. Faleço e...”
Furioso,
Eudes arrebata o cofre das mãos do mensageiro. Seus cruéis ciúmes se comprazem
em meditar a atroz vingança. Olha com um sorriso cruel as provas que confirmam
e esclarecem as suas suspeitas.
A
infeliz Gabrielle ignora a fatal catástrofe. Certas notícias felizes chegam a Gabrielle.
Dizem que Raoul triunfara perante os inimigos. Mas são notícias falsas que,
inventadas pela crueldade de Eudes, estendem uma luz de alegria em sua alma
abatida.
Eudes
prepara um banquete para comemorar — segundo finge — o triunfo dos cruzados. Gabrielle
sorri pela primeira vez. Seu esposo a obsequia, dispensa-lhe carinhosa atenção,
exibe-lhe uma face serena... Mas, que face! É um véu que cobre uma negra e terrível
tempestade.
Depois
de servidas as aves mais delicadas e refinadas, põe-se sobre a mesa um
magnífico prato, maravilhosamente adornado e trabalhado, coroado de flores. Diante
dele, desparece a confusa multidão de iguarias. Este prato, em cuja redoma se
veem grinaldas de flores formando emblemas amorosos, e no qual o cinzel
representava os principais triunfos do amor, chama a atenção de Gabrielle. Ela
se entretém, com o esposo, em simplesmente contemplar, em admirar o primor do
artista, em explicar os emblemas e as representações. Eudes elogia o primoroso
trabalho de duas medalhas: uma representa os ciúmes de Juno; a outra, Vênus,
Marte e Vulcano. De nada desconfia a inocente dama.
Eudes
levanta a redoma. Uma deliciosa fragrância embalsama a atmosfera. O apetite se
excita novamente.
—
O cozinheiro — disse — esgotou nesta salada todo o primor de sua arte. É o mais
fino prato que já produziu. Asseguro que te parecerá muito saboroso ao
degustá-lo, e não cansará o teu paladar. A carne é das que mais te agradam,
está cortada em pedaços pequenos e misturada com as mais aromáticas e saborosas
ervas.
—
Realmente — disse Gabrielle, que come da carne fatídica sem qualquer receio —,
jamais provei de um prato que me agradasse tanto.
—
É claro que te agradou — disse Eudes, lançando-lhe um olhar feroz, que a
aterroriza e faz estremecer. — Comeste o coração de teu amante... Raul morreu
em combate. E deixou como prova de seu amor o próprio coração e as joias que um
dia lhe deste. Aqui as tem.
Dizendo
isto, lançou sobre a mesa o cofre e a carta.
Gabrielle
cai em profundo desmaio, fatal precursor da morte. Volta a si, mas jura que
jamais tomará algum alimento na vida. Em poucos dias expira nos mais cruéis
tormentos.
Em
seu sepulcro foram enterradas, também, as joias de Raoul. Gabrielle tem em sua
mão a carta fatal, que não deixou de ler e banhar em lágrimas até o seu último
instante.
Esta
cena cruel aterrorizou aquele que a havia causado. O próprio Eudes estremeceu
de pavor ante a própria atroz vingança.
Horrorizou-se de si mesmo. Os remorsos despedaçaram o seu coração e lhe
causaram em pouco tempo uma morte acompanhada dos mais funestos delírios.
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