A VIRGEM DE CERA - Conto Clássico Fantástico - Abraham Valdelomar
A VIRGEM DE CERA
(Narrativa
Irlandesa)
Abraham
Valdelomar (1888 – 1919)
Tradução
de Paulo Soriano
Para
o Dr. Castro Rojas
I
—
O rei...
—
Sempre contos de realeza!...
—
Os reis são esplêndidos e generosos. Em suas cabeças triunfa o ouro cinzelado e
em seus tronos riem as pedras da África. E tornam as nossas narrativas
magníficas. Têm joias, mulheres e cavalos. Favoritas do Cairo e leitos de
mármore rosa. Eles compram cantos dos trovadores sentimentais e as graves
máximas dos filósofos; a honorabilidade dos gentis-homens, a discrição das
damas e a fina condescendência dos cavaleiros.
Falemos
dos reis! Eles tornam esplêndidas nossas narrativas e enchem de pompa nossos
pensamentos. O ouro dos reis!
O
palácio de campo da senhorita Indrash estava envolto por uma atmosfera de
superstição. Não havia na aldeia quem tivesse atravessado as grades de seus
jardins ou o mistério de seus aposentos. Uns diziam que viram a dama sair, à
noite, rodeada por enormes vampiros que a mantinham escrava e se alimentavam de
seu sangue. Outros diziam que ela roubava as crianças das aldeias para
beber-lhes o sangue fresco. Outros mais diziam vê-la fugir, à noite, aos
bosques das comarcas vizinhas.
Certa
feita, propagou-se na aldeia a notícia de que um peregrino, que havia chegado
às grades do castelo, vira Indrah chorando atrás de umas sebes. Mais tarde
chegou a dizer-se que a enigmática senhorita havia saído à noite, em procissão,
pelas ruas da aldeia. O medo apavorou os singelos aldeões e, como ninguém mais
voltou a sair de noite, as procissões se multiplicaram.
Então
começaram as súplicas e as orações públicas. Ofereceram sacrifícios de flores
nos templos e queimaram cabelos de crianças nas chaminés. Por fim, guardaram as
aves brancas nos sarcófagos e pensaram em oferecer em holocausto a mais jovem
virgem. Apesar disto, um jovem camponês, ao voltar à noite da gelosia de sua
amada, teve que ocultar-se apressado. A procissão estava passando...
—
Indrah ia nela?
—
Ia em meio a um grupo de encurvados, com aspecto de vampiros negros, dos quais
só se viam os olhos. No centro, quase morrediça e apoiada nos braços de um
deles, ia a virgem pálida de cera. Indrah tinha uma transparência opalina e
nenhuma cor profanava a brancura da jovem. Os acompanhantes, com amplas capas
escuras, ruminavam surdamente sonatas incompreensíveis.
No
dia seguinte, encontraram o camponês desorientado, vítima de uma crispação
horrível. Morreu descrevendo entrecortadamente a procissão de Indrah. Então, na
aldeia, ao medo sucedeu o espanto. Os homens começaram a preocupar-se; os
velhos caminhavam taciturnos e encurvados, como se pensassem em algo sombrio;
as mulheres não assomaram nos jardins secos e mortos; os rapazes já não iam ao
campo; e as crianças, tristes e pálidas, dormiam nos cantos úmidos de seus
casebres.
A
cada dia aparecia um cadáver crispado e aquele lugar tomou o aspecto de cidade
morta. Os velhos calavam sempre, os jovens não se amavam, as crianças não riam
e as mulheres eram vítimas de alucinações. Aquela raça começou a extinguir-se.
II
—
Quem era Indrah?...
—
Ninguém sabia. Um aventureiro louco, um assassino original, um decepcionado ou um
ser extraordinário vivia nos rochedos de um país do Norte, que dá para o mar, e
onde não sai o sol. Era o rei Míndor.
Para
chegar à sua atalaia, era preciso cruzar os pampas, onde o vento zumbia sempre;
um vento gelado que arrancava as roupas e rachava os lábios. Em doze jornadas
se chegava ao castelo de Míndor. O rei tinha vassalos que traziam os viajantes
perdidos, os quais, pela generosidade de Míndor, dormiam no castelo, depois de
serem convidados a ceias extraordinárias, em que os viajantes ficavam loucos de
prazer, por razões que alguns creem e atribuem a bebidas excitantes. Neste
estado de felicidade suprema, os viajantes eram trasladados para o jardim do
castelo, onde havia um poço circular com beirada de ônix. O poço tinha uma
escadaria de mármore como a entrada de um palácio subterrâneo que, ao girar,
lançava em suas profundezas aquele que pisava a famosa escadaria.
Para
lá eram levados os viajantes, ébrios de uma suprema felicidade, os quais, ao
cair no poço, mesclavam-se aos cadáveres dos desgraçados que lhes haviam
precedido nas ceias do castelo. Muitos homens ainda viviam, loucos, nesse poço,
que era uma boca do inferno. Uma vez a cada vinte dias, ao pôr-se o Sol,
abriam-se as portas enormes desse poço profundíssimo e sinistro. O rei, apoiado
ao parapeito do poço, com sua taça de ouro, olhava, dominado por um prazer
febril, quando as comportas se abriam e precipitavam-se as águas, pujantes e
enormes, que tragavam num redemoinho os escombros humanos.
Logo,
o elemento selvagem enchia todo o poço e, então, fechavam-se as comportas e
deixava-se sair a água novamente.
—
Mas... E quanto a Indrah?
—
Era a filha do rei. Certa tarde, os vassalos cavaleiros desenhavam suas
silhuetas nos pampas frios e escuros da comarca. Pouco a pouco, as formas foram
se tornando nítidas e já aos pés do castelo viram chegar um novo peregrino, um
jovem louro, de cor ardente, com a tez seca e os lábios rachados. Indrah teve
por ele um sentimento que jamais experimentara por qualquer dos viajantes que
chegavam ao palácio para morrer no poço. Só os via durante os banquetes e as
ceias que Míndor oferecia às suas vítimas. Desta vez, Indrah estava apaixonada.
—
Ela assistiu ao banquete?...
—
Sim. Com olhos de tristeza, ao ver os obséquios dispensados ao jovem, sofria
horrivelmente. Ao terminar a ceia, quando Nildo — assim se chamava o mancebo — embriagara-se
pelo efeito os vinhos dourados e tintos, os pajens levaram-no, numa cadeira, ao
pequeno jardim do poço. Indrah, que havia visto tudo, seguiu o seu pai.
—
Ainda não, pai!
Míndor
não respondeu. Os pajens seguiram seu caminho entre as sebes e instalaram Nildo,
que não se dava conta de nada, no anel do poço. O rei lhe dizia:
—
Mas te falta ver, mancebo louro, meus palácios encantados. Irás penetrar no
maior e poderoso reino. Lá os jardins são eternos. Suaves e excitantes são os
aromas das mulheres belas e pródigas. O Sol da manhã nunca se põe e os que
foram aos meus reinos jamais regressaram. Gostarias de vê-lo?
—
Sim, magnífico!
—
Pai! — gritou Indran, num arranque gutural e selvagem. — Pai, este não!
Nildo,
sem nada perceber, sorria, pensando em deleites ainda melhores. Os lacaios
fizeram-no entrar no poço por umas das escadarias de mármore que cobriam o
horrível segredo. Nildo avançou tranquilamente.
—
Pai!...
A
escada girou. A pancada do homem sobre a água produziu um estalido que soou
lugubremente no profundíssimo poço. O rei deitou o ouvido, enquanto Indrah,
enlouquecida, se perdia através das sebes do jardim. O rei olhava, apoiado ao
parapeito, com uma satisfação imensa. Via, em meio à escuridão do poço, como os
homens famintos mordiam os dedos de Nildo e outros, loucos, riam da fúnebre
aventura, em meio à lama daquele ninho infernal.
—
Abri as comportas! — gritou Míndor.
E
as águas enormes e selvagem se precipitaram, afogando, em seus redemoinhos, os
gritos de dor, de loucura e os espasmos terríveis. O poço estava cheio.
—
Fechai!... Fechai mais depressa!...
A
água começou a chegar às bordas do anel do poço, em vez de retirar-se. O rei
gritou mais forte ainda:
—
Fechai, vassalos, fechai mais depressa!...
Na
área das comportas ninguém respondia. O poço começou a transbordar louca e
desordenadamente. Parecia que todo o mar se precipitava furioso por esse
vórtice gigantesco. No fundo, houve um ranger de correntes e rasgaduras
formidáveis; tremeu a terra em que pisava o monarca e tudo se perdeu no
avassalador impulso das ondas. Uma monstruosa invasão do mar lançou-se sobre o
palácio, inundou os jardins reais vertiginosamente e, em poucos instantes,
aquilo era domínio do mar, que, depois de profanar as galerias do rei e salões
de ouro, invadiu a região e lá
permaneceu... permaneceu por muitos dias.
—
E indrah?
Quando
viu Nildo cair, louca e desesperadamente pegou as chaves das comportas, matou o
velho guardião e abriu para sempre as goelas do selvagem elemento. Quando o seu
pai exclamou “ Fechai, vassalos, fechai depressa as comportas!”, Indrah lançou
as enormes chaves ao fundo do mar e fugiu em seguida...
Ninguém
sabe quando ela veio morar no palácio de campo daquele país, onde dizem os
aldeões que sai nas noites procurando Nildo.
—
Mas, e os encurvados?....
—
Peregrinos jovens que ela havia salvado e que não mais a abandonaram. Nas
noites de seu passeio, levavam-na com grande solicitude e, depois de passear pela
cidade, voltavam à ao palácio antes do nascer do Sol.
III
Mas
na aldeia morriam as pessoas, vítimas de espasmos horríveis. Certo dia, os
habitantes se reuniram e combinaram surpreender o palácio de Indrah. Chamaram
os campônios das regiões vizinhas e todos, à hora do crepúsculo, lançaram-se ao
palácio armados de pedra, picaretas e enxadas.
Atropelaram
velhos guardas e penetraram no grande salão escuro onde acreditavam que iriam encontrar
Idrah e os vampiros. Os antigos servidores de Indrah fugiram e, ao fazê-lo,
deixaram cair o corpo da virgem, sobre o qual avançaram os aldeões.
—
Era o cadáver de Indrah?
—
Não. Era uma representação em cera que se fazia passar por ela. Indrah havia
morrido com certeza e aqueles homens, em sua honra, fizeram-na viver naquele
bloco modelado que, como se fosse a própria Indrah, levavam a passeio todas as
noites na aldeia.
—
Quando fizeram o manequim?
—
Ninguém sabe ainda, mas quando se viaja aos países do Norte, frios, secos e
cheios de atalaias, os velhos contam esta lenda da virgem de cera e o rei
Mindor.
Causa-nos
muita melancolia viajar pelos países do Norte. Eles têm lendas muito tristes —
a Europa não sabe disto — e, nos rochedos abruptos e abandonados, vivem ainda
aqueles reis.
Estás
triste. Nem sempre são belos os contos de realeza.
Imagem: Michael Zajkov.
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